sexta-feira, setembro 22, 2006

Noite púrpura

Os sobrados da rua dos Inválidos se alinhavam à meia luz na noite quente de quinta-feira. Subimos o de número 97. Nossos passos sobre os degraus de madeira ecoaram escada acima. Uma lâmpada pendurada por um fio pendia numa pequena sala onde, após serpentearmos, desembocamos. Reflexos de faróis de automóvel entraram através da ampla janela e deslizaram pelo teto. Ouvi choro de criança vindo do primeiro andar; a seguir, um grito de mulher, que o interrompeu; ao mesmo tempo, a violência do bater de uma porta se estendeu por todo o casarão. Adão deu-me uma chave comprida e num movimento com a cabeça apontou-me o cômodo. Disse depois com voz baixa: "espere lá, tenho que resolver um problema antes". Enfiei a chave e abri a porta. O teto tinha altura assustadora. O quarto estava dividido por tapumes de madeira; colei o ouvido junto a um deles e pude sentir a vibração do som da televisão vizinha. Por uma fresta bem acima de minha altura, reparei a luz acesa. O choro de criança ressurgiu como que trazido por vento inexistente. Precipitei-me à janela, mas não consegui abri-la. Não pude ver a noite. Sentei-me sobre uma cadeira simples. Na meia escuridão, percebi uma mesa de fórmica; adiante havia uma cama antiga, de madeira.

A porta se abriu vagarosa. Vislumbrei Adão; resolvera o problema. Entrou e disse: "tenho meia hora". Minhas roupas imediatamente se espalharam pelo chão. Em meio ao quarto escuro, tentando conter meus gemidos e a respiração ofegante, eu vibrava à medida que suas mãos percorriam-me o corpo. Por momentos deixou-me livre; desfilei então fazendo vez de modelo em pele e pêlo, fantasia de homem extasiado. Vestia apenas sapatos de salto; tentava tornar as pisadas leves, pegadas de anjo, disfarce sobre tábuas compridas e ressonantes a pulsações de amante em constante delírio. "Vista esta capa", atirou-me sobre a pele tecido negro e translúcido. Rodeou-me o corpo; apertava-me enquanto eu me desmanchava em seu abraço. "Não a deixe escorregar". Namoramos durante os trinta minutos. Depois disse: "vamos". Quando pensei em vestir-me, impediu que eu recolhesse as poucas peças: "você vai só com a capa". "Por que não ficamos aqui?", ainda perguntei. "Tenho mais assuntos a tratar".

Deixamos a porta trancada. Guardou a chave em um dos bolsos, enquanto eu descia a escada enrolada apenas no leve tecido, atemorizada. Quando já íamos no automóvel, reparei a noite cheia de estrelas.

Transitamos através de ruas e vielas do centro velho. Adão não me dizia qual seu trabalho. Mas rondávamos hotéis baratos, cortiços e outros sobrados. Reparei que ele carregava os bolsos cheios de notas de cinqüenta. Vi mulheres mal vestidas, algumas embriagadas, outras fumando alguma coisa que não era tabaco. Arrastamo-nos por quartos sórdidos, quase sempre com as luzes apagadas, mal podíamos distinguir as sombras nas paredes. Ele pedia que esperasse; depois voltava, me roubava o manto e me acariciava lentamente. No último edifício, num andar soturno, guardado na entrada por um negro de terno e com o rosto suado, meu homem piscou-lhe enquanto me dava passagem; o empregado fingiu que não me via. Quando atravessamos uma espécie de bar sofisticado, reparei mulheres em trajes mínimos. Havia uma nua por inteiro; era a mais alegre. Atirou-se em minha direção e roubou-me o tecido. "Puxa, que corpo!", sua voz partiu o silêncio enquanto eu, surpreendida, cobria os seios por instinto, como adolescente despida por primeiro amante. "Deixe a moça, ela está comigo". Num gesto displicente, ela ainda segurou o pano pelas costas, depois envolveu-me nele atando as duas pontas que se destacavam; beijou-me, suave, os lábios; sussurrou então palavras sem sons - apenas emanações de ar - enquanto apertava uma das metades de meu bumbum com a mão direita: "venha um dia sozinha, quero namorar você". Confesso que suas palavras deixaram rastros de alegria em minha alma; e, em meu corpo, uma ponta de excitação.

O quarto tinha pintura rubra nas paredes e dois abajures que deixavam entrever estrelas prateadas pintadas em teto azul; corpos de mulheres nuas, bem desenhados, eram temas de dois quadros grandes. Adão mordeu-me os seios, me fez cócegas em torno do umbigo e deixou a mão que me acarinhava escorregar, até tocar-me os poucos pêlos...

Terminamos a noite em um hotel de luxo; não digo o nome para não comprometer. Ainda insinuei: "esse hotel é de turismo, cinco estrelas..."; "eles também negociam conosco", foram suas únicas palavras. Ao voltar, tivemos o namoro completo: uma transa intensa e alucinante. Quando precisei ir ao banheiro, levei um grato susto: era lindo. Imagine o banheiro mais bem transado, confortável, aconchegante, que você ainda não vai acertar. Senti no ar odor de alguma erva exótica, talvez oriental. Deixamos o hotel às quinze para as três; ainda ia enrolada em meu manto. "Estou morta de fome", sussurrei sensual.

Dirigiu durante um quarto de hora. Paramos numa casa que depois descobri ser restaurante. Tinha pouca luz, funcionários discretos. Relutei, não queria sair nua do automóvel. "Pode descer, aqui não tem problema". Entramos e ocupamos uma das mesas do lado direito. Tudo era iluminado por luz de velas. Saboreei carpaccio de salmão, duas colheres de arroz à piamontese e salada de rúcula. O garçom, sem me dirigir o olhar, serviu-nos duas grandes taças de champanha. No final, meu namorado soprou-me quase em surdina: "tenho uma surpresa". Primeiro pediu café, depois sorvete de chocolate com amêndoas, chantilly e licor de amarula. Falou então num tom mais alto, mas sem que sua voz quebrasse o misterioso silêncio: "o chocolate é dinamarquês, experimente". A taça refletia a chama bruxuleante de uma vela. "Que delícia!", foram as palavras de uma mulher apaixonada e em êxtase permanente, surpreendida por paladar encantador.

Rodamos mais um pouco pela cidade. Ao perceber a hora avançada, assustei-me: "vamos!, não posso ser surpreendida pelo amanhecer..."

Ainda éramos presas das últimas sombras quando me deixou junto ao portão de casa. Cheguei à janela do automóvel para tocar-lhe a face com meus lábios úmidos e trêmulos. "Amanhã, vamos comprar mais roupas para você", falou. Sorri e soltei a capa; fiz que escorregasse janela adentro: "leve meu cheiro, é para não me esquecer". De olhos fechados, sorveu o tecido com volúpia.

Já ia entre o gramado e a porta principal, quando me voltei para lhe dar um último adeus.

sexta-feira, setembro 08, 2006

O ovo

Agachada, descalça, nua e plantada sobre chão frio, meu corpo era de contorcionista em evolução. Perdia-me em movimentos ora para dentro, ora em sentido inverso; tentava todo empenho numa façanha quase inexeqüível.

– O ovo, eu quero, você tem de fazê-lo –, a voz do homem explodia pela sala.

Tremia, arrepiava-me, suava.

– Por favor, dê-me mais uma chance, garanto que consigo.

– Ponha então o ovo!

Fechei os olhos. Concentrei-me. Tentava reunir todas as forças.

Foi aí que meu ventre num salto quase olímpico e em movimentos concêntricos anunciou algo expresso e frágil. De entre as pernas rolou coisa macia, sem cor, matéria visceral, que se aninhou atrás, sob minhas nádegas.

– Isso não é um ovo, e nem branco é.

– As mulheres põem-se ao labor de acordo com suas possibilidades; é um ovo sim; e, além disso, sei eu o que sai de mim –, anunciei séria.

Ele se aproximou, tomou-o nas mãos, levou-o próximo ao nariz. Fez expressão de dúvida. Sua cabeça pendeu um pouco para a esquerda; parecia tentar convencer-se de minhas palavras. Depois estendeu-o a mim:

– Se realmente é um ovo, experimente-o.

– Não posso provar o que produzo; o julgamento não cabe a mim, experimente-o você –, ainda agachada, sem me mover, falei resoluta.

– Você prometeu satisfazer todos os meus desejos; acho que esse você não vai conseguir. Não vejo a forma de um ovo.

– As mulheres dão forma vária. Você já olhou na direção do sol? Talvez pense que ele seja laranja!

– Sim, o sol, mas o ovo...

– Não precisa ser sempre branco, nem ter forma de ovo...

– Você quer convencer-me do que não vejo.

– Veja o que quiser; tenho certeza das coisas que faço.

– Você é esperta, não recua.

– Não há o que recuar ante evidência tão convincente – sentenciei.

– Evidências, evidências...

Ainda agachada, esforcei-me em posição fetal; juntei os braços, fechei as pernas, depois pronunciei em voz baixa, mantinha a calma e a convicção:

– Olhe-me, perceba: sou eu o próprio ovo. Veja minhas formas, toque minha pele; venha.

Ele pareceu hesitar.

– Teme aproximação maior? Toque-me, toque o ovo gerador.

– Ou a galinha...

– Sim, isso, ela também não deixa de ser ovo.

Resolveu-se. Agachou-se ao meu lado. Começou a tatear minha pele. Percorria ora vales que se moldavam à mão própria, ora montanhas, ora músculos rijos, intumescidos. Eu, pétrea, resistia a tremores internos; tentava não denunciar as batidas rápidas do coração; o fluir ligeiro de meu sangue; a fogueira que me ardia o baixo ventre. Avançou. Apalpou-me entre as pernas. Vagaroso. Qual cego que tateia caminho duvidoso. Então aconteceu. Deixei em uma de suas mãos mucosa translúcida e brilhante, cintilância reveladora de minhas ardências.

Não me poupou. Ovo ou ave, prendeu-me as curtas asas – não queria adorno sobre telhado alheio –; depois, untou-me de minha própria seiva e me penetrou com a violência do primeiro Homem. Proibia a fuga mas incitava o gozo. Eu tinha pressa. Agitava-me, sacudia sôfrega todo o corpo; não queria perder vôo interno e intenso, mergulho no inefável.