sexta-feira, maio 25, 2007

Piano

Visitei uma amiga que mora num desses prédios imensos, em Copacabana, construção típica do bairro. Ao nos despedirmos, ela falou em voz baixa:

"Quando você dobrar o corredor e passar na frente do apartamento que fica logo à direita, não olhe nem pare, o homem que mora ali é perigoso."

"Como assim?" quis saber.

"Já tentou agarrar várias mulheres."

"Ah, que besteira; segrede-me, será que você não gostaria de ser agarrada?"

"Sim, só que não por ele; é nojento."

Segui em direção ao elevador. Ao passar pela porta proibida, fisgou-me intensa curiosidade. Dizem que nas despedidas não se deve olhar para trás, e que, da mesma forma, deve-se passar ao largo de algo que nos tenta. Mas, como gosto de aventuras, quis mergulhar em mais uma.

Na verdade, o que pude ver em primeiro plano foi um piano. Estaquei junto à porta e admirei o nobre instrumento musical. A seguir, percebi que a casa era arrumada ao extremo: um pequeno sofá, uma mesa, dois quadros na parede de fundo. Pensei não haver ninguém. Quem sabe o perigoso ser masculino saíra e esquecera a porta aberta, ou mesmo armara o alçapão.

"Que deseja a belíssima senhora?"

Apareceu-me o homem. E era belo. Alto, um tanto desgastado na face pelos anos, mas os cabelos eram branquíssimos e limpos. Refiz-me da surpresa.

"Desejo uma música."

"Tenha a bondade", conduziu-me aposento adentro, ofereceu-me cadeira confortável.

"Alguma preferência?", perguntou sério.

"Comecemos pelos clássicos: Chopin!", pronunciei com entusiasmo.

"Comecemos?", repetiu, "então teremos um tipo de concerto".

"És um cavalheiro", completei.

As teclas soaram graves, seus dedos percorreram a parte baixa do instrumento para depois se esmerarem nos sons mais altos. Reparei que as mãos do pianista eram grandes e largas, pareceriam grosseiras se fossem admiradas longe dali. Mas sobre marfim quase níveo, intercalado de bemóis e sustenidos, corria ligeira, hábil, percebia-se que ele fora talhado para tal arte. Ouvi com prazer a primeira peça. Ao terminá-la, sugeri:

"Que tal fecharmos a porta? Assim o concerto se torna mais reservado."

"Oh, queira me desculpar", de pronto levantou-se, fechou a porta e voltou à banqueta. Espraiou as mãos e esperou nova sugestão.

"Beethoven", sussurrei.

"Não seria um tanto trágico?"

"Depende do momento e da peça", sentenciei.

Suas mãos deslizaram de novo, lançando-me à deriva, imersa num mundo de som e cor.

Quando terminou, perguntou:

"Que tal Evans?"

"O Bill?"

"Sim, ele; as big bands eram compostas de pessoas alegres, viviam em estado de contínuo êxtase", fez a observação enquanto investiu com rapidez no teclado.

Executou uma série de peças de jazz; ao terminar, ensaiou uma de Jobin.

Não hesitei em aplaudir aquele homem, que tocava com honestidade.

"Quero oferecer à senhora um café", lembrou-se a tempo: "à senhora que nem mesmo sei o nome..."

"Ah, queira me desculpar, não me apresentei. A seu dispor e ao dispor de sua arte: Margarida."

"Oh, uma flor!"

"E talvez das menos nobres", completei.

Caímos na gargalhada.

"Não diga isso, todas as flores são nobres."

Desapareceu em direção à pequena cozinha. Fiquei a admirar a cortina e a paisagem exterior. Daquele décimo andar via-se uma floresta de edifícios. Pude perceber também os ruídos externos que a música deixara escondidos.

"Cara Margarida", pronunciou com ligeiro sorriso enquanto me entregava uma xícara de porcelana. Acompanhava o café, prato de sobremesa com alguns biscoitos champanha.

"Seu apartamento é muito aconchegante."

"Agradeço a sua boa vontade, sei que as coisas por aqui precisam ser melhoradas, mas, a senhora me entende, vida de aposentado...", e fez um gesto vago com as mãos. Acompanhou-me no café.

Após alguns segundos de silêncio e expectativa, sua voz, como música melodiosa, soou suave:

"A senhora me entende, não leve a mal a maledicência dos vizinhos; talvez algo de negativo a meu respeito já tenha chegado a seus ouvidos", repousou a xícara e por fim sorriu.

"Não se preocupe, também segundo alguns não tenho boa fama."

"Veja", continuou "estou velho; o que me resta? Talvez a música e a companhia de poucos amigos."

"Se tens tudo isso, és um felizardo; a música e amigos. É tudo que muita gente deseja."

"Tenho alguma tristeza, pois pouca gente me dá atenção."

"Pois não acabaste de dizer que tens amigos?"

"Poucos, na verdade, coisa de dois ou três."

"É tudo e, se pensas bem, não precisas de atenção, és um concertista, as pessoas é que perdem por não atentarem em ti."

"Mas vez ou outra sou abatido por intensa melancolia, aí fico sem tocar, às vezes até esqueço algumas peças."

Voltei-me à parede, percebi um bonito diploma emoldurado. Levantei, queria ver seu conteúdo.

"Oh, bons tempos, toquei com a orquestra sinfônica."

"A do teatro?", perguntei.

"Esta; entre outras; mas o diploma é da do teatro."

"Não há razão para sofreres, és músico, és feliz."

"E a respeito das mulheres..."

"Que tem as mulheres?", interrompi.

"São raras e distantes."

"Como as flores...", falei e ri de novo. Ele gostou do argumento.

"Como a senhora me inspira!"

"Não sou eu, tens fonte de inspiração própria."

Demonstrei intenção de partir.

"Oh, não vá, sua presença me causou extremo ânimo e felicidade."

"Podemos nos ver mais vezes; virei visitá-lo."

"Deixe que eu lhe ofereça mais uma música."

"Então eu canto", falei.

"Que surpresa!, também cantas?"

"O que não faço nessa vida?", atalhei, "mas... deixa que eu começo."

Pus-me a cantar Smile, aquela velha canção imortalizada por Sinatra, que tem entre seus autores Charles Chaplin. Iniciei à capela, logo depois seguida pelo correr suave de suas mãos sobres as teclas. Confesso que foi o ponto alto do fim de tarde. Ao terminarmos a canção ele, contagiado, aplaudiu-me.

Ao levantar-me para partir, pronunciou em voz baixa, quase um segredo:

"Não demore a voltar, sofro muito."

"No seu lugar, eu não sofreria. És um artista, tocas de modo maravilhoso, vestes-te bem, podes freqüentar bons lugares."

"Sabe, a presença da senhora me fez pensar em algo novo. De agora em diante, tentarei encarar a vida de modo positivo. Veja o que me aconteceu em pleno sábado à tarde; surge-me, não sei de onde, a senhora, que é tão bonita, que parece demonstrar intensa paixão pela vida, alguém que possui luz interior, e que ainda canta maravilhosa, na verdade uma flor..."

"A vida é boa, é bela, basta que se saiba viver; muitas pessoas perdem essa oportunidade; quando se tem esse espírito, as outras coisas vêm como acréscimo", eu disse e lhe beijei a face. Deixei sobre a pequena mesa o número do meu telefone.

Dali em diante, encontramo-nos várias vezes. Em algumas ocasiões, sob o som do piano; em outras, em restaurantes aconchegantes, na Zona Sul.

Nunca pude comprovar o que minha amiga dissera. Se havia alguma pessoa perigosa nessa história não era ele, mas eu. Um verdadeiro vulcão.

sexta-feira, maio 11, 2007

Sobre a poltrona

Certa vez arranjei um namorado empolgante. Saímos para jantar várias vezes. Ele era culto, tinha uma conversa fascinante, mas tive de esperar um tempo enorme para que me levasse para cama. Cheguei a pensar que ele não gostasse de mulher. Quando me convidou à sua casa, adorei. Ele era aquele tipo de homem que adora fantasiar; como também amo uma fantasia... Logo que entramos, atirei-me sobre o grande sofá da sala de estar e lhe disse "deita comigo". Ele retrucou "você vai ficar toda amarrotada". Sentei-me, tirei o vestido e lhe entreguei para que o colocasse sobre a poltrona próxima. Foi a vez de ele investir "sabe o que senti vontade de fazer?" e sem esperar resposta continuou "vou amarrar você!" Então repliquei "pode amarrar, eu adoro". Atou-me com um cordão forte, acho mesmo que já o tinha usado outras vezes, quem sabe com outras mulheres. Arrepiei-me de corpo pleno. Ao sentir os laços fortes, apareceu em suas mãos uma fita adesiva grossa, e sem que eu pudesse reagir, grudou-ma à boca. Consegui manter o controle, queria saber aonde ele pretendia chegar. Desapareceu então por alguns momentos, retornando com uma enorme faca. Gelei. "Não se preocupe, não vou partir você ao meio" falou sarcástico, em voz baixa. Desejei correr dali, mas estava amarrada também ao estofado. Daí em diante, ele passou a lâmina sobre meu corpo, em alguns pontos chegou a me beliscar com a ponta, tocou-me o clitóris e viu que me excitava. A seguir deixou a faca de lado e pulou sobre meu corpo; primeiro livrou-me os lábios "quero te beijar" foi o que ouvi, pensei em mordê-lo com força, mas arrefeci; o corpo dele estava tão quente... Não só aceitei o beijo, como sussurrei em um de seus ouvidos "liberte minhas pernas, também quero gozar". Foi uma trepada e tanto, gozei com o perigo. Passei a freqüentar a casa dele uma vez na semana. E sempre havia novidades. Uma outra vez, prendeu-me os braços, laçou-me o pescoço, colocou-me sobre um pequeno banco e ameaçou durante todo o tempo derrubá-lo, caso eu não me mostrasse úmida por inteiro. Tremi, mas mantive a pose. Então ele subiu no mesmo banco e trepamos ali mesmo. Eu de pernas abertas e ainda com a corda no pescoço, temendo que o banco virasse ou se partisse. Mas ele gozou antes que isso acontecesse. Uma semana depois, ardeu-me as pernas com pequeno candeeiro. Eu imóvel, ele fazendo que me queimava, aquecendo-me as entranhas. Apesar do calor, eu tinha de me manter molhada; se não o conseguisse, queimaria-me todos os pêlos. Gozamos também a tempo. Da última vez que o encontrei, não preparou ardil algum. Desconfiei. Antes de recebê-lo nos braços, porém, vi que meu vestido ia em suas mãos. Recuou dois passos e escutei o rasgar da roupa fora do alcance dos meus olhos, em seguida vi que ele segurava uma tesoura e uma nesga da fazenda. Enquanto gozávamos, ele sussurrava "hoje, vou deixar você peladinha, vou guardar de lembrança algumas tiras da sua seda". Eu suspirei, ele ainda continuou "não adianta choramingar, agora já está feito". Deve haver uma saída, pensei. Mas não demorou e reagi: tomara que desta vez não haja saída alguma; senti que a fantasia me excitara. Voei por sobre o corpo dele e tentamos mais uma escalada sobre camadas de lava incandescente. Transamos maravilhosamente. Eu nada dizia, ele soprava episódios delirantes em meus ouvidos. Confesso que jamais conheci outro homem de tamanha imaginação. A iminência de estar nas mãos de alguém desconcertante sempre me excitara. Gozei descontrolada. Ao acabarmos, corri ao banheiro. O ardor mais brando, imaginei o que seria de mim dali em diante, nua na madrugada. Enquanto me ensaboava e me lavava com água quente, calculava minhas chances.

"Karina, minha filha (ai, ela só tem dezessete anos, que vergonha!), venha urgente e com algum vestido dobrado dentro da bolsa, depois explico o que aconteceu; anote o endereço; isso, pode ser, serve a canga; e corra que já amanhece, ou você e outros tantos verão a mãe louca chegando nua em casa. Não fale pra ninguém, viu; e, por favor, não demore!"

Seria a última vez que o veria, tinha de partir, aquelas brincadeiras já estavam ficando perigosas demais e eu sabia aonde tudo aquilo iria chegar...

Mas como a tentação sempre é maior, o desfecho teria sido outro se não acontecesse o que vai a seguir.

Ao sair do banheiro, voltando ao quarto, que decepção! Minha aventura noturna acabara. E cedo. Meu vestido jazia fácil sobre a mesma poltrona do começo da noite! Intacto. O que ele rasgara? Até hoje não sei.