quarta-feira, maio 21, 2008

Corpo e prazer

Outro dia apareceu na loja um rapaz. Não tinha a intenção de comprar coisa alguma. Foi até lá para conversar um pouco e me emprestar um livro. Havia uma ou duas semanas que o conhecera num dos bares da orla enquanto bebia ou comia alguma coisa com uma amiga. Na verdade, era um colega dela. Apresentou-me na ocasião e ele ficou um pouco entre nós. Soube que era professor de literatura. Perguntei que tipo de livros costumava passar para seus alunos. Ele me respondeu que dependia da série e da escola. Eu disse que gostava de ler, mas sem compromisso. Então apareceu na loja para me levar um livro.

“Você gosta muito de ler, todos deveriam ser como você, assim o mundo seria mais interessante”.

“Você acha?”, repliquei.

“Não acho, tenho certeza”.

“Os professores têm muitas certezas”, deixei escapar.

“Ora não pense assim, os professores são as pessoas mais confusas que existem, jamais confie neles!”.

Sorri e achei que ele poderia ser alguém interessante.

“Olha”, falei, “leio qualquer coisa que me caia nas mãos; outro dia li a vida de Charles Chaplin”.

“Deve ser muito interessante, nunca li nada sobre ele”.

“É interessante, sim”.

Ao observar que alguém entrava para ver alguma roupa, deixou o livro e se foi. Fez sinal que qualquer dia voltava.

Li o livro que ele me emprestou. Livro interessante. Nada tinha a ver, creio, com sua profissão, e não era um livro a ser aplicado em escola. Tratava-se de um romance de uma escritora inglesa. A história tinha algumas idas e vindas e eu me deliciei naquele clima tortuoso que envolvia vários personagens e vários períodos do século XX.

Dias depois, apareceu de novo. Mas não pudemos conversar muito porque a todo momento entrava alguém para perguntar alguma coisa. Deixou um bilhete com o número do telefone. Numa outra vez, quando ele apareceu para uma visita rápida, também dei o meu número.

Encontramo-nos fora dali para um passeio e um chope numa noite de sábado.

Enquanto bebericávamos, começamos a conversar sobre livros.

“É difícil encontrar alguém que leia bastante e saiba conversar sobre o que está lendo”, ele disse. “As pessoas estão mais ligadas nas imagens”.

“Imagens? Como assim?”

“As pessoas estão mais fascinadas pelo mundo do áudio-visual, como cinema, DVD, computador etc.”

“Quanto aos outros não sei, mas gosto muito dos livros. Se o assunto me agrada, leio; não tenho método, nem pretendo ter. Ah, outra coisa, não gosto de jornais, quase não os compro”.

Ele ficou a me olhar, depois seus olhos se puseram distantes. Comecei a pensar se me desejava ou se estava ali apenas para conversar.

“Os livros fazem as mulheres mais belas”, falou.

Fiz-me de desentendida. Levou o copo à boca e completou:

“As mulheres que leem muito são fascinantes”.

“Não são todos os homens que pensam assim. Tive um amigo que só gostava de mulher que bebia o tanto quanto ele. Se ela ficasse num bar horas a fio e saísse quase bêbada, ele se apaixonava. Nunca leu sequer um livro nem desejou mulher fora desse círculo”.

“É verdade, não se pode generalizar”.

“Sabe, às vezes não me agrada falar para as pessoas das coisas que gosto; isso revela como sou. Não desejo que as pessoas me invadam; guardo muito a minha privacidade. Quando revelamos o que lemos ainda é pior, a outra pessoa, caso seja um pouco inteligente, logo deduz o tipo de pessoa que somos”.

“Interessante seu raciocínio, não tinha pensado ainda sobre isso. Então, quer dizer que você não gosta de se revelar...”

“Não”.

“Dizendo isso, você já está se revelando. Sinto muito, não vou perguntar mais”.

“Não precisa ficar aborrecido, é apenas uma colocação que gosto de fazer; amo estar comigo mesma”.

“Você não se sente muito só, desse modo?”.

“Às vezes, sim, mas faz parte da vida”.

“Existem pessoas que não suportam a solidão”.

“Não é solidão”, repliquei, "trata-se de um estar-consigo, ter prazer pela própria companhia e fazer as coisas de modo gostoso, sem precisar preocupar-se...”

“Não seria muito egoísmo de sua parte pensar assim?”.

“Não acho, não estou fazendo mal a ninguém...”

“Não se trata de fazer bem ou mal; se alguém se interessar por você e desejar sua companhia?”

Comecei a perceber quais eram suas intenções. Sorri, acendi um cigarro, dei um longo trago e soltei a fumaça com a cabeça inclinada um pouco para cima, depois respondi:

“Não sei, por acaso há alguém aqui interessado em mim? Caso a resposta seja positiva, não precisamos de tantas máscaras ou tantos livros...”

“Bem, você está sendo um tanto rápida, eu não tinha pensado nisso”.

“Eu, rápida?”, sorri e desviei meu olhar para um ponto indefinido. Depois acrescentei: “me acho tão lenta, preguiçosa”.

“Não é isso, de modo algum. Não estou aqui com a intenção de dar uma cantada em você, no caso seria uma cantada um tanto intelectual; minha intenção é apenas conversar com alguém interessante e, no fundo, manter a amizade”.

O garçom chegou trazendo mais dois chopes. Experimentamos a bebida quase simultaneamente. Meu recente amigo falou, talvez sem pensar:

“Amanhã vou ao Rio, pensei em convidá-la, mas devido a seu trabalho acho que você não pode, não é mesmo?”.

“Não é que eu não possa, se a viagem for marcada com antecedência...

“Ah, me desculpe é que pensei que você trabalhasse todos os dias...”

“Lógico que trabalho, mas se você quer me convidar precisa perguntar com antecedência, posso dar um jeito”.

“Verdade?”

“Claro, por que não?"

Não sei se ele queria na verdade convidar-me, ou se falava aquilo apenas para esticar a conversa. Achei que poderia ter um compromisso com outra mulher e por isso não me desejava a seu lado no Rio. Quando voltou, alguns dias depois, foi à loja e deixou um embrulho, que veio numa bonita sacola. Eram livros que ele me trazia de presente. Abri o pacote e me pus a manuseá-los. No da seguinte, telefonou. Marcamos um novo encontro.

O dia fora quente. Apesar da brisa que vinha do oceano, o calor de todo não se dissipara naquele entardecer. O sol se punha, e seus raios, já avermelhados, brilhavam sobre a superfície do mar. Aves brancas planavam rente ao espelho d’água; vez ou outra uma delas mergulhava para reaparecer num voo leve e límpido alguns segundos depois.

Estávamos nas imediações do Tênis e caminhamos em direção ao Sul. Quando o passeio e a ciclovia terminam e dali em diante se estende a grande faixa de areia, paramos e ficamos a apreciar toda a paisagem. Incentivei-o a continuar a caminhada, agora sobre as areias; despi as sandálias e desci a pequena escada que separa o calçamento do trecho da praia. Ele acompanhou-me, mas continuou calçado; pisava devagar, mantendo um equilíbrio precário, tentava evitar que os sapatos se enchessem de areia. Adentramos por cerca de quinhentos metros a área deserta. Depois paramos, virados para o mar, enquanto a noite caía e as luzes da orla, já distantes, reluziam como vaga-lumes.

“Esse lugar me faz lembrar uma namorada que tive quanto comecei a trabalhar nessa cidade”.

Pelas palavras dele, percebi que não tinha outras intenções em relação a mim que não fosse apenas a amizade. Não traria outra mulher ao nosso encontro, mesmo que feita de palavras, caso me desejasse. Ou seria inábil ao extremo.

“Uma namorada?”, incentivei-o a falar.

“Isso; uma pessoa que conheci quando cheguei aqui”.

“E o que houve?”.

“A maioria dos homens não gosta de falar sobre os próprios fracassos; mas vou contar a você. Sabe, até pensei em escrever sobre isso, mas o tempo passou e tudo ficou apenas como lembrança”.

“Quem sabe, ainda é tempo”, quis incentivá-lo.

“Os romances de amor muitas vezes têm um tema muito banal, mas acabam por fazer sucesso, você não acha?”.

“Sim, é verdade”.

Ele então começou a contar sua história.

“Cheguei nessa cidade em março do ano 2000, vim sozinho, fiquei a princípio num hotel. Trabalhava três dias na semana, dias seguidos. No último, voltava ao Rio, porque tenho lá um apartamento. Na semana seguinte estava eu aqui de novo, me hospedava no mesmo hotel. Num encontro de professores, conheci uma mulher que também era professora e fora nomeada pela prefeitura havia pouco. Embora ela lecionasse em outra escola, ficamos amigos. Almoçamos juntos no primeiro encontro, ela me deu, então, o seu número. Passamos a conversar e marcamos outro encontro. Ela compareceu toda animada. Descobri que também se hospedava num hotel. Começamos a nos encontrar todas as semanas, de repente ela passou a ficar no mesmo hotel que eu. Vinha de Niterói, para cumprir o seu horário bastava dormir duas noites aqui na cidade. Logo começamos a ter um caso. Apesar de ser casada, como me contou à época, seu relacionamento com o marido não ia bem; estavam para se separar. Alguns meses depois, aluguei um pequeno imóvel num prédio residencial próximo ao centro. Aí  ela passou então a dormir comigo. As noites em que permanecíamos na cidade, vivíamos um relacionamento ardoroso. No final daquele mesmo ano, ela realmente se separou. Nosso namoro se tornou mais constante e ela começou também a frequentar o meu apartamento do Rio. Mas sua vontade era morar em definitivo em M. Começou a procurar apartamento, pois achava que não poderia ficar no mesmo lugar que eu. Alegou que deixaria de vez Niterói. Uma vez que possuía muitas coisas, traria tudo para cá. Conseguiu um imóvel pequeno, próximo ao meu, e se mudou. Continuamos a nos encontrar, ora no apartamento dela ora no meu. Mas depois houve um período em que nos distanciamos. Ela, então, conheceu outra pessoa, alguém que morava quase ao lado. Daí para ficarem juntos não passou muito tempo. Acho que hoje estão casados”.

“E você, não quis se casar com ela?”

“Acho que o problema foi esse. Eu tinha saído de um relacionamento difícil e não queria casamento, pelo menos naquele momento”.

“Você não sofreu com isso? Já passaram alguns anos e do jeito que você conta parece que ainda tem mágoa”.

“Sofri no começo, mas depois vieram outras mulheres e tudo se resolveu. Tive uma mulher melhor que ela”.

“Essa história, bem contada, dá um romance”.

“Na época pensei em escrevê-la, depois, porém, perdi o entusiasmo. Hoje, quando me lembro de tudo, sinto que seria interessante escrever um romance ambientado aqui na cidade; mas não sei se teria condições”.

Voltáramos a andar pela praia; envolvidos pela conversa, atingíramos o outro extremo da faixa de areia, quase junto à lagoa.

“Está deserto aqui”, falou.

“Não creio que tenhamos problemas”.

Começamos a fazer o caminho de volta.

“Sabe o que me atraiu muito nela?”, continuou.

Virei o rosto a ele para demonstrar que o ouvia.

“Numa de nossas noites, descobri que ela tinha mais prazer caso eu me tornasse violento?”

“Como assim?”

“Numa das primeiras vezes, dei-lhe um ligeiro tapa. Aí passou a pedir que eu lhe batesse com mais força, até mesmo com o cinto.”

Apenas sorri. Ele ainda acrescentou.

“Na manhã seguinte, dizia que estava muito dolorida. Pedia para ver se havia marcas sobre as partes do corpo que ficavam descobertas. À noite, no entanto, queria de novo que eu a maltratasse. Pedia sempre que eu fosse cada vez mais violento, sobretudo no momento do orgasmo”.

Quando beirávamos o hotel Confort, voltamos ao calçamento da orla. Permanecemos então num pesado silêncio.

“Espero não ter estragado nosso passeio contando a você estas coisas”.

“Não, não; achei interessante”.

“Jura?”, ele quis saber.

“Juro”.

“E você?, me fala alguma coisa...”

“Eu?, não sou muito de falar”.

“Vamos beber alguma coisa?”

“Vamos”, concordei.

Durante boa parte do tempo em que permanecemos no pequeno restaurante, não voltamos à história que me contara. Mudou de assunto, falou sobre romances que lera e acabou por dizer que a literatura não deveria ser ensinada nas escolas, pois concluiu que as escolas destruíam tudo o que era bom.

“Quando você começou a gostar de ler?”, ele quis saber.

“Quando era bem menina. Sempre procurei os livros por minha conta. Hoje não sei dizer o papel da escola na minha vida, ou dos professores; nem mesmo tenho uma profissão em que se precise ser intelectual”.

“Intelectual?”, ele riu. “Você acha que eu sou intelectual?”

“Todos que trabalham com o intelecto são intelectuais, não?”

Riu de novo e falou:

“Nesse sentido, sim. Mas você não acha que as pessoas hoje em dia estão muito ligadas no corpo?”

“Sempre estiveram; você, não está também? Pois acabou de contar sobre uma relação de amor entre um homem e a mulher em que o corpo e a dor estavam em primazia...”

“Boa palavra: primazia”.

Depois de ter bebido dois dedos do chope, acariciei-lhe um dos braços e disse, enfim:

“Olha, sabe de uma coisa, você precisa ser mais carinhoso!”, comecei a rir.

Mas não nos beijamos ainda naquela noite.

quarta-feira, maio 07, 2008

Uma amiga em Rio das Ostras

Certa vez fui a Rio das Ostras visitar uma amiga. Ela morava numa casa linda, bem de frente para a praia. Era uma tarde de sábado, o dia fora de um sol intenso. Pusemo-nos a conversar sobre vários assuntos. Mas o que mais agradava a ela era falar de um senhor de quase setenta anos, que fora seu amante e ainda trabalhava; ele dava aulas numa faculdade, em Macaé.

“Foi um tempo bom, aquele que passamos juntos” dizia ela, “aproveitamos bastante; eu tinha um medo terrível de que a mulher dele descobrisse e viesse fazer escândalo. Trabalhávamos na mesma faculdade, todos nos conheciam, caso isso acontecesse seria o fim”.

Mantive-me calada enquanto ela continuava a conversa. Não quis perguntar se sabia o estado civil dele antes de começar o relacionamento. Ela parecia ter necessidade de continuar sua história. Mas de repente me perguntou:

“Você já teve um namorado assim?”.

“Assim, como?”, devolvi a pergunta com ligeiro sorriso e com a intenção de ganhar tempo.

“Um homem casado”.

“Quando tenho alguém, normalmente não faço essas perguntas”.

“Não faz perguntas? E se ele for casado? Se tiver o risco de vocês serem descobertos?”.

“Nunca fiz perguntas desse tipo. Às vezes alguém me vem contar alguma coisa, mas faço de conta que não me interesso”.

“Ah, então você faz de conta?” Ela queria que eu confessasse que me interessava pela vida particular do homem que no momento eu poderia ter.

“Na verdade, não quero me casar com ninguém, e não quero ninguém grudado em mim todos os dias”, falei.

“Isso, eu sempre fui assim, acabei ficando sozinha a vida inteira porque também nunca quis casamento. Porém não me arrependo, acho que foi bom”.

Ela servira um café com biscoitos, estávamos no terraço, e dali podíamos apreciar a praia, que era muito bonita. O mar estava agitado e um vento mais forte envolvia o continente num prenúncio de tempestade. Reparou que eu olhava, admirada, toda aquela paisagem; então, continuou.

“Você sabe que já tive um namorado mais novo que eu mais ou menos quinze anos. Foi também uma época boa. Eu tinha uns cinqüenta e ele mais ou menos trinta e cinco. Ele vinha pra cá e nós ficávamos bebendo e apreciando o mar, assim como você está fazendo agora, só que bebíamos uísque. E às vezes bebíamos demais. Ele me agarrava, me beijava e queria me levar nua pra praia. Uma vez fui, só uma vez, mas morri de vergonha. Ninguém nos viu, falei a ele ‘é só dessa vez, hein, não vá me fazer passar vergonha’, e foi tão bom.”

“E por que acabou?”, arrisquei.

“Acabou o quê?”

“O namoro; não era melhor com ele do que com o professor, que era bem mais velho?”

“Ah, sim, era melhor com o rapaz. Mas não sei por que acabou. Nem sei se acabou. Ele desapareceu e eu também não o procurei mais. Acho que deve ter arranjado uma mulher mais jovem, do tipo dele. Engraçado que ele vinha pra cá, tinha tudo do bom e do melhor e de repente desapareceu".

Acendi um cigarro. Sorvi-o longamente e soltei a fumaça. Ela me olhou e disse.

”Você parece uma pessoa feliz, gosto do seu jeito”.

“Será que ele morreu?”, sugeri trágica.

“Ele, quem?”.

“O rapaz”.

“Ah, não. Alguém me veio contar alguma coisa sobre ele, estava tudo bem”.

“Acho que sou feliz, sim”, falei retomando a opinião dela, “as pessoas se admiram; às vezes isso me chateia um pouco. Nos dias de hoje, parece que há um bando de mulheres que não consegue se realizar e, quando elas vêem uma que não é como a maioria, põem-se a admirar...”

“Não estou falando isso por inveja, não, viu? Sempre fui como você, por isso é que gosto de ser sua amiga”.

“Tenho muitos prazeres, procuro vivê-los nas pequenas coisas do dia-a-dia”.

“Você já fez análise?”, perguntou enquanto segurava a xícara com a intenção de tomar mais um gole de café.

“Análise, como assim?”

“Análise psicanalítica.”

“Ah, não, psicanálise não é coisa pra mim, mas acho que até poderia ser legal”.

“Você parece uma pessoa analisada. É uma mulher centrada”.

“Centrada? Eu?”, falei e caí na gargalhada. “Muita gente diz isso, que sou uma mulher equilibrada, ou centrada, nem sei. É muito engraçado, mas eu me acho tão desorganizada, preguiçosa, dorminhoca etc...”
Jussara riu do meu jeito de falar. Depois perguntou se não queria dar uma volta pela praia. Àquela hora o sol já quase se punha e o céu se avermelhava convidativo.

Lá pelas nove da noite, fomos a um restaurante. Não tínhamos fome, nossa intenção era passear, ouvir um pouco de música, já que no local havia música ao vivo, e observar as pessoas.

Jussara pediu uísque, sua bebida predileta. Eu preferi a caipirinha de sempre.

Continuamos nossa conversa iniciada à tarde. Enquanto ela falava, eu reparava o ambiente. Já estivera ali outras vezes, com outras pessoas; amigos, amigas e talvez algum namorado ocasional. O salão ainda não estava cheio. As pessoas chegavam pouco a pouco e se podia notar que algumas eram jovens; a maioria, porém, era de meia-idade. O garçom se aproximou com nossas bebidas. Serviu Jussara em primeiro lugar, depois se virou para mim, colocou o copo sobre a mesa e sorriu antes de voltar-se para as outras mesas.

“O uísque aqui costuma ser bom”, ela falou.

“Você gosta de uísque, não é mesmo?”

“Gosto, e tenho que tomar cuidado para não beber demais”.

Peguei meu copo, havia um pequeno canudo; sorvi alguns goles.

“Também já tomei uísque, hoje prefiro uma ou duas doses de caipirinha”.

“Graça, depois olhe à sua direita, há um homem conhecido meu, é engenheiro. Até pouco tempo atrás ele estava casado, mas acho que agora está só, e ele é interessante”.

“Você deve conhecer quase todos por aqui. A cidade não é grande e a população tampouco”.

“Conheço muita gente, mas têm aparecido rostos novos. Essa febre de emprego na região fez muitos se mudarem para cá. A cidade perdeu um pouco da graça que tinha há alguns anos”.

“Já sei quem é”, disse a ela, depois de ter identificado a pessoa a quem me chamara a atenção. “Já esteve lá na loja, mas acho que faz tempo”.

“É um bom partido, você não acha?”

“Não sei, sempre fui muito independente e ele parece ser do tipo galanteador, meio possessivo. Lembro que já conversei com ele”.

“Você fala que sempre foi independente, mas assim acaba não saindo com ninguém”, ela falou enquanto olhava o cardápio. “Não vai comer nada?”.

“Não sei, já lanchei na sua casa”.

“Mas isso foi há três horas”.

“Como pouco, pode ser que eu belisque alguma coisa; peça você”.

O garçom se aproximou novamente e ela fez o pedido.

Som de violão começou a ecoar pelo ambiente; era o casal que estava preste a começar a apresentação costumeira. O rapaz tocava e a moça, com uma voz muito bonita, se fez ouvir. As pessoas olharam para o pequeno palco e houve um momento em que o tom das conversas diminuiu de volume para ouvir a música.

Antes de o garçom trazer a comida, o homem que Jussara me apontara veio até onde estávamos.

“É um grande prazer ver você”, disse a ela.

“Fico feliz também por encontrá-lo, essa é minha amiga Graça, é quase dona de uma loja, em Macaé".

“Oh, me lembro de você, como vai? É um imenso prazer reencontrá-la. Acho que já estive na sua loja”.

Sorri, agradecida. Apertei-lhe a mão.

“Jussara, venha ficar conosco. Espero um amigo, nem sei se ele virá, por enquanto estou sozinho”.

“Fique você aqui, então”, ela o convidou, apontando uma das cadeiras vazias.

Ele olhou para a mesa onde estivera, e depois procurou pelo garçom para dizer que mudaria de lugar; tomou do encosto da cadeira o agasalho e veio juntar-se a nós.

“Espero não estar incomodando”, disse.

“Claro que não, se estivesse eu falaria, você já me conhece de outros carnavais”.

“Ah, é mesmo, de outros carnavais, e também de outras festas”.

“Minha amiga veio passar o sábado comigo, e decidimos vir beber alguma coisa e ouvir um pouco de música”.

Fiz sinal com a cabeça de que concordava com as palavras dela.

“E o trabalho, como vai?”.

“Lá vem você falar em trabalho em pleno sábado...”

“Sei que você adora o que faz, Jussara, não vá ficar aborrecida por causa disso”.

“Na verdade, gosto do que faço; mas quem gosta mesmo é a minha amiga Graça, não é? Ela é tarada por roupas e por aquela loja”.

Ele riu das palavras de Jussara.

“Heitor”, esse era seu nome, “você não vai pedir nada para beber?”

“Vou, mas até vir você ainda não tinha decidido; já que está tomando uísque, e do escocês, vou acompanhá-la”.

Chamou o garçom, pediu que ele trouxesse a bebida. Quando o empregado retornou fez que ele deixasse a garrafa sobre a mesa.

Jussara e o homem conversavam compassadamente. Às vezes ela começava a falar algo, como uma lembrança, ou sobre alguém da cidade que era conhecido de ambos. Então era a vez de ele completar, ou contrapor um assunto paralelo, ou falar também de alguém que achava interessante. Quando sentiu que o momento favorecia, ele revelou:

“Você sabia que eu me separei?”

“Ah, eu pensei que você já estivesse separado há tempos, sempre vejo você sozinho”.

Ele riu, levantou o copo, fez como quem ia tomar um pouco do uísque, mas interrompeu o gesto para dizer:

“Isso mesmo, sempre estou sozinho, então não adianta estar casado, não é?” Acabou por continuar o gesto e bebeu um gole.

“Quer dizer que agora você está livre para amar!” Jussara sorriu das próprias palavras.

Ele colocou o copo sobre a mesa, olhou para os pratos que estavam bem arranjados e creio que se intimidou em apanhar um pedaço do tira-gosto que o garçom acabara de trazer.

“Por favor, queira se servir”, ela disse ao observar o gesto interrompido.

Ele retomou o movimento e demonstrou aprovação pelo paladar do que experimentara.

“E, você, não fala nada?” Ele disse, se dirigindo a mim. Quis que o foco do assunto deixasse de ser ele para se sentir um pouco aliviado.

“Eu?”, ri e também tomei mais um gole da caipirinha.

“Isso, você, você é jovem e muito bonita”.

“Olha, Heitor, que revelação, já está à procura de uma mulher jovem?” Jussara quase o fez enrubescer.

A música tomava todo o ambiente, a moça cantava MPB, e cantava bem; o rapaz no violão era um exímio instrumentista. Olhei para eles, depois me voltei para o homem que nos fazia companhia e disse.

“Obrigada por me achar bonita, não creio que seja unanimidade”.

“Oh, unanimidade”, repetiu minhas palavras, “como não unanimidade, queira me desculpar, não estou lhe fazendo a corte, mas acho muito difícil que um homem não ache a senhorita muito bonita”.

“E seu amigo, será que não vem?”, quis saber Jussara.

“Ele me garantiu que viria, embora estivesse um tanto ocupado com um trabalho para a empresa”.

“Fala um pouco da sua vida de engenheiro, então, vai”.

“Minha vida de engenheiro é muito atribulada, não tenho tempo mais para nada; essa região aqui é muito propícia ao trabalho que desenvolvo, mas é como falamos no início, quase se vive só para isso, para o trabalho”.

“É bom, porque se ganha dinheiro, não?”

“Ganha-se”, respondeu voltando-se para ela, “mas nem tudo é dinheiro, é preciso viver, aproveitar a natureza, fazer umas viagens. Estou sempre adiando as coisas de que mais gosto”.

“Talvez o excesso de trabalho nos faça deixar de lado as pessoas de que gostamos”, arriscou minha amiga, creio que sem pensar.

“Não acho que seja isso que nos afasta. Se gostamos, quando estamos próximo colocamo-nos mais à sua disposição”.

“É, mas um afastamento longo não é bom para a relação”.

“Não tenho ficado no mar muito tempo, e agora, com as facilidades de comunicação, é possível se estar sempre por perto”.

“Mas há mulheres que exigem uma intensa presença física”, disse Jussara.

“Ah, sim, presença física, essa é boa!”, repetiu ele.

“Sabe o que estou querendo dizer com isso?”, ela retomou.

“Acho que sim”.

“Então, mulher que não tem presença física do seu companheiro acaba arranjando outro”, sentenciou.

“E, você”, ele virou-se para mim mais uma vez, “pensa assim também?”

Apenas sorri e fiz um movimento com os ombros.

“Olhem, até que enfim, meu amigo Raul...”

Seu amigo o procurava da entrada do restaurante; quando o descobriu, atendeu a seus acenos dirigindo-se até onde estávamos.

Raul era um homem gordo. Chegou com um cigarro entre os dedos e pareceu não se importar se era permitido ou não fumar no interior do restaurante. Como ninguém reclamou, continuou tranqüilamente fumando.

Depois das apresentações, sentou-se e procurou o garçom; desejava muito um chope. Apesar da temperatura amena, ele parecia sentir calor. Tirou o lenço de um dos bolsos e o esfregou em torno do pescoço.

“Minha amiga tinha acabado de perguntar se a pessoa com quem eu havia marcado não viria; não deixei de dizer que você é uma pessoa que cumpre seus compromissos”.

Ele sorriu.

“Não esperava que Heitor tivesse marcado encontro com duas pessoas tão simpáticas”.

“Oh, você acabou de nos conhecer, como acha que somos simpáticas?”, observou Jussara.

“Dá pra se notar, não diga que vocês não são pessoas adoráveis?”.

“Meu amigo sempre diz que conhece poucas pessoas, que bebemos sozinhos, mas veja, hoje temos companhia”, arriscou Heitor.

“Que bom, fico feliz por todos nós”, deu um largo sorriso e levou aos lábios o copo que o garçom acabara de trazer.

A conversa enveredou por sinuosas vias que privilegiavam o trabalho dos dois homens. Eles pareciam não ter outro assunto. Contavam episódios e atitudes de cada um como feitos monumentais. Como eram engenheiros, não deixavam de valorizar a profissão e a empresa onde trabalhavam.

Heitor começou a contar uma viagem que ambos fizeram com o objetivo de acompanhar o término da montagem de uma plataforma e de seu percurso até o Brasil. Relatava a quantidade de dias em que ficaram no mar, a vagarosidade da viagem e o fato de não haver mulher alguma a bordo.

Jussara, não sei se por pilhéria ou por ser assunto que sempre abordava, foi logo completando.

“Posso imaginar vocês dois quando chegaram, não devem ter feito outra coisa a não ser procurar por mulheres em todos os lugares...”

“Nem tanto”, interrompeu Heitor, “lembre-se de que na época eu era casado e minha ex-esposa me esperava com todo ardor”,

“Ardor?” disse minha amiga e continuou: “Ela deve ter sentido sua falta, mas na verdade deve ter gostado da liberdade de ficar seis meses sem o marido”.

“Você gostaria?”, perguntou ele.

“Você acha que eu não me casei por falta de convite? Sempre havia alguém atrás de mim, mas preferi a vida de mulher independente”.

Eu sabia que aquilo não era verdade. Se o professor que agora ia na casa dos setenta, ou mesmo o homem mais novo que ela dez anos houvessem proposto casamento, ela aceitaria, tenho certeza.

“Eu sei que às vezes é difícil a gente viver só, mas é melhor do que arranjar uma série de aborrecimentos”, Jussara disse sorrindo.

“Não sabia que éramos motivo de aborrecimento”, falou Raul e deu uma estrondosa gargalhada. Um homem que estava na mesa ao lado com a mulher olhou para nós um tanto surpreso e nossos olhos se cruzaram.

A conversa voltou ao assunto que os dois preferiam: o trabalho. Falaram ambos sobre energia, a questão vital segundo eles, a maior necessidade entre todas as outras coisas.

O salão do restaurante já estava lotado. O barulho um tanto exagerado atrapalhava quem quisesse ouvir a cantora. Os que já haviam bebido além da conta eram os mais animados e ruidosos. Jussara tinha o rosto vermelho, parecia satisfeita, ouvia o que os homens falavam, virando a cabeça ora para Heitor, ora para Raul.

Eu tomara a caipirinha e não quis outra quando o garçom se aproximou. Tentava manter-me interessada na conversa dos dois homens. Quis ser educada, ou ao menos aparentar. No diálogo deles não havia lugar para o sonho ou para a fantasia; eram tão terra a terra quanto o petróleo que ajudavam a descobrir e trazer do fundo do mar.

Em torno da uma da madrugada fomos embora. Jussara bebera mais do que costumava, mas apenas seu rosto mostrava os vestígios do exagero. Ela se comportava de modo adequado. Eles nos ofereceram carona, mas estávamos tão próximas da casa de minha amiga que não fazia sentido ir de carro. De súbito, foi ela que sugeriu:

“Vocês não querem ir até lá em casa? A gente toma a última dose”.

Heitor olhou para o amigo como se esperasse pela resposta deste. Raul se mostrou mais animado do que todos; o grande número de chopes que tomara parecia ter-lhe despertado um entusiasmo que não tivera quando chegara.

Jussara gostava de homens galanteadores como Heitor, por isso mostrava-se um tanto propensa a desejar sua companhia por mais algum tempo.

Entramos em casa. Jussara acendeu as luzes e pediu que nos sentássemos. Havia um grande estofado de cor creme, no qual os dois homens sentaram; em sentido transversal, havia um menor, onde me sentei. Ela foi até o bar apanhar a garrafa de uísque. Trouxe também cerveja para Raul; ofereceu-me, caso eu quisesse continuar tomando caipirinha, o que fosse necessário para prepará-la. Quando todos já estávamos acomodados, ligou o aparelho de som e uma música baixa, acho que um pop norte-americano, completou o ambiente.

Raul tentava a todo custo extrair de mim alguma conversa. Jussara correu em seu auxílio, dizendo que eu na verdade tinha mais assunto do que ela, porque sempre estava lendo alguma coisa.

“Oh, que interessante, você é uma leitora?, deve ser então uma pessoa muito especial. As mulheres que lêem muito são diferentes das outras”.

Sorri e ele começou a falar para mim, deixando o amigo junto a Jussara.

“Quando eu era estudante lia muitos romances, gostava de verdade”. Citou uma infinidade deles. “Tirava boas notas por isso. Naquele tempo para ingressar na universidade federal era preciso muita leitura”.

“E hoje, não lê mais?”, eu quis saber.

“Leio, mas não é a mesma coisa que antes; o trabalho me absorve muito e acabo por ler quase sempre manuais e livros técnicos”.

“Eu não viveria sem meus livros”.

“Hoje as pessoas vêem muita TV, por isso talvez a leitura não seja uma prática tão intensa”.

Levantou-se, foi até a mesa e completou seu copo de cerveja.

“Você costuma ir ao Rio?”, perguntou-me.

“Atualmente não, quase não saio dessa região; viajo apenas nas férias”.

“Há umas livrarias ótimas lá, convido você a passar um fim de semana. Levo você para escolher muitos livros e para passear”.

“Vamos ver”, falei, “vamos ver”.

Já estava muito cansada e, depois de mais um quarto de hora, pedi licença a eles dizendo que eu trabalhara no dia anterior e precisava descansar. Creio que Raul ficou um tanto decepcionado, pois falou:

“Amanhã é domingo, espere mais um pouco. Você não quer dar uma volta lá fora? A temperatura está amena e a essa hora creio que ainda há movimento”.

Olhei para Jussara, reparei que ela estava bem próxima a Heitor e ele tinha uma das mãos sobre suas pernas. Não quis estragar-lhe o prazer. Seus olhos voaram em minha direção; entendi o que ela queria.

Deixamos os dois e fomos passear lá fora. E demoramos bastante para voltar. Nada comentamos sobre eles. Raul bebera demais; foi capaz apenas de esticar a conversa. Não teve ímpeto para me fazer qualquer outro tipo de convite.