sábado, abril 26, 2014

O homem gosta mais de histórias do que da vida real

Eu poderia pedir socorro, ou fazer escândalo, mas achei melhor ficar quietinha e aguardar o que estava por vir. Ah, me deixe ir do começo. Não sei por que sempre essa mania de saltar a história. Explico melhor. Eu estava pelada, isso mesmo, pelada, e no corredor do quinto andar do prédio em que mora meu namorado. Eu perguntara: caso alguém me surpreenda você não terá problema com a administração do condomínio? Sua resposta foi não, seria difícil eu ser surpreendida, pois já passava das duas da madrugada. A proposta de eu ir nua lá fora fora sua. Eu jamais havia pensado nisso antes. Como gosto de aventura, não neguei, acabei concordando. Saí do apartamento. O combinado era eu esperar um pouquinho, depois bater à porta. Cumpri direitinho o roteiro. Mas ele... Isso mesmo, qualquer homem normal giraria a chave para sua mulher nua entrar; a seguir, treparia com ela. Ele, porém, queria que eu passasse por aquela experiência para depois contar o que senti, ou o que passei. O homem gosta mais de histórias do que da vida real. É lógico que só descobri isso depois. Fiquei batendo à porta, e nada, batia e o apartamento no maior silêncio, como se ali não morasse pessoa alguma. Pensei, estou fazendo barulho, não demora um vizinho abre e me pega pelada aqui fora. Então fui para o cantinho da escada. Mas ao me afastar da porta, o sensor captou minha presença fazendo acender a luz do corredor. Quando me vi no meio de toda aquela claridade, quis me esconder. Mas não havia onde. Sabia que o temporizador desligaria a lâmpada depois de um tempinho. Encostei então no ponto cego, bem juntinho à porta do apartamento. Esperei. Demorou tanto que pensei ter de permanecer o tempo todo sob aquele farol. Fiquei nervosa, muito nervosa. Mas acabou que o corredor escureceu de novo. Bati várias vezes. Reparei que, além de arrepiada, eu estava toda molhada. Mas ainda não foi naquele momento que ele abriu. Acabei por dizer a mim mesma, quer saber de uma coisa, quem vai reger essa situação sou eu, não peço socorro nem faço escândalo. Subi ao sexto andar, onde sei que mora um homem sozinho. Já o conhecia de bons dias e boas tardes, já tinha percebido alguma intenção nos seus olhos. Parei diante da porta. Bati. Primeiro bem de leve, depois toquei a campainha. Ele veio atender. Afastou um pouquinho a porta, com aquela correntinha que não permite que se force a entrada. Quem é?, perguntou. Falei o meu nome. O que deseja? olhou o meu rosto através da estreita fresta. Tenho de resolver um pequeno problema, respondi. A essa hora?, simulou procurar um relógio. O senhor pode me dar abrigo? É apenas por uma ou duas horas, sorri no fim da frase. Enfim, abriu a porta. Surpreendeu-se. Conto o que aconteceu, falei e entrei rápido. Dentro do apartamento, entre tapetes e poltronas, reinava um ambiente acolhedor. Quer algo para vestir?, perguntou. Não, por enquanto não, respondi desinibida. Oh, quanta representação. Naquele momento senti que valeu a pena eu ter estudado teatro. Ele apontou o sofá. Sentei e cruzei as pernas. Esperou o meu relato. O que eu diria? Contei a história com um tempero a mais. Depois disso tudo, é lógico que tive de dar pra ele. E olha que banquei bem a piranha. Quando fui embora, pedi apenas que não levasse a sério o que aconteceu. Ele retrucou: vou fazer de conta que foi um sonho. Isso, isso mesmo, o adiantar da hora até ajuda, lancei essas palavras e um último sorriso. Ele me ofereceu de empréstimo uma camisa. Não, por favor, lembre-se que é um sonho, tudo tem de ficar como era antes, afastei-me da oferta. E fui embora nua, duas horas depois de ter entrado naquele mesmo apartamento. Desci um andar e bati à porta do meu namorado. Sabia que, agora, iria abrir.

domingo, abril 20, 2014

Senti o arrepio

Todos olhavam para mim e se surpreendiam. Eu fingia não entender. Aquela praia já fora mais avançada em relação ao comportamento das pessoas. Fazia alguns anos que eu estivera ali e as mulheres daquele tempo usavam biquínis menores, e muitas dispensavam até mesmo o top. Mas no momento, apesar de algumas ainda usarem biquínis mínimos, não havia ninguém de seios à mostra. Caminhei pela beira d’água e continuei em meus pensamentos. Um homem sorriu para mim. Retribuí-lhe com outro sorriso. Um rapaz olhou-me e disfarçou; um casal de idosos fez um ar a princípio sorridente, mas depois a mulher demonstrou, através de ligeiro franzir de cenho, traços de reprovação; um senhor muito gordo, sentado numa larga cadeira, também abriu-se num sorriso exagerado, como se lhe acontecesse a coisa mais formidável do mundo.

Voltei ao meu lugar e fiquei observando o mar. Por trás dos óculos escuros mantive-me oculta e mesmo anônima a todos. Vez ou outra alguém cruzava a minha frente para, com o canto dos olhos, me lançar um olhar surpreso.

Quando resolvi tomar banho de mar, um homem veio conversar comigo. Um dos primeiros que me olharam naquela manhã.

“A água está fria, não?”, tentou dar início a um diálogo.

“Gosto de água fria”, repliquei.

“É mesmo? As pessoas que conheço dizem que sentem tanto frio.”

“Não sinto, não. Aliás, acho que as mulheres preferem água fria, principalmente se for a água do mar.”

“Sério?”

“Sério, tenho uma amiga que uma vez...”, interrompi minha fala, lembrei que não poderia contar aquela história a um desconhecido.

“Uma vez...”, tentou fazer que eu continuasse.

“Uma vez...?” Fiz cara de boba.

“Não vai continuar?”

“Não sei. Era sobre algo que aconteceu a ela, coisa de mulher. Acho que não devo contar, falei sem pensar.”

“Ela gostava também de andar pela praia sem sutiã?”, insinuou com um risinho bobo.

“Não, sem sutiã, não, sem a calcinha”, acabei revelando.

“Sem a calcinha? Bem, agora que você já começou a contar...”

“Conto até o fim”, emendei e sorri. “Minha amiga gostava de mergulhar de uma pedra, na praia do Flamengo. Era muito jovem, morava perto. Um dia a água estava tão fria que, ao penetrar na água logo após o mergulho, sentiu aquilo que toda mulher sente na hora do amor.”

“Especial essa sua amiga.”

“Sim, ela é muito especial. Mas a coisa não ficou por aí. Ela passou sempre a repetir o salto na água fria, queria experimentar a mesma sensação daquele mergulho.

“E ela conseguiu?”

“Passou, então, a tirar o biquíni após entrar na água. Tirava e o enrolava num dos pulsos, como uma pulseira.”

“E nunca ninguém percebeu?”, perguntou com interesse.

“Essa foi a pergunta que fiz a ela. Acho que é a pergunta que todos fazem. Respondeu que não, jamais alguém percebeu que ela tomava banho de mar sem a parte de baixo do biquíni. Vez ou outra conversava com algum homem, mas nunca nenhum deles notou o que lhe faltava. Mais uma coisa: apesar de todas essas invenções, jamais conseguiu a mesma sensação que experimentou no primeiro mergulho.”

O homem olhou nos meus olhos, depois foi baixando a vista para a água, bem na direção do meu baixo ventre, das minhas coxas. Tentava vencer a semi-transparência da água do mar. Então, procurou os meus pulsos.

Senti o arrepio. Quem sabe, a mesma sensação fundadora experimentada por minha amiga.

domingo, abril 13, 2014

Mais interessante do que a vida real

Algumas histórias são inventadas, mas de modo tão inteligente que são mais interessantes do que a vida real. Prefiro que meus leitores acreditem que minhas narrativas sejam apenas invenções. Na maioria delas, sempre acabo nua.

Outro dia andava pela praia. Os verões são propícios a caminhadas e banhos de mar ao amanhecer. Nessas horas ainda vão poucas pessoas pela orla, apenas esportistas e um ou outro jovem mais adiantado. Estava eu nas proximidades do posto 5 quando um homem mais jovem do que eu me olhou continuamente. Olhei também para ele, e durante uns bons dez segundos. Foi o suficiente para ele me seguir. Quando o percebi às minhas costas, pensei, como saio dessa? Mas será que eu queria sair mesmo? Ele começou com aquela conversa de sempre.

Você é muito elegante, tem um corpo maravilhoso...

Para desfazer a mística em que ele me envolvia, perguntei:

Você contou direitinho quantos traços tenho no rosto?

Você é linda!

Acredito, ironizei.

Não estou mentindo, assegurou.

Jura?, eu queria certeza.

Paramos num dos bancos do calçadão. Ele trazia uma sacola. Sempre curiosa, perguntei o que ia ali dentro.

Um livro, respondeu, quer dar uma olhada?

Sem que eu respondesse, tirou da bolsa um livro de Isaac Bashevis Singer.

Você é judeu?, mostrei interesse.

Não, mas admiro o escritor, você já leu?

Respondi aquele livro não, mas li um de contos, do mesmo autor.

Gostou?, quis ele saber.

Gostei, principalmente do jeito como conta as histórias, sempre com um... com um... faltava-me a palavra.

Com um sabor todo especial, talvez amor e perplexidade, acrescentou.

Isso mesmo, todo autor precisa sentir perplexidade para contar uma história, é como se jamais houvesse outra semelhante.

Isso mesmo.

Ficamos em silêncio durante alguns segundos.

Você vive de quê?, perguntei.

Você é incisava, não?

Você acha?

Pelo jeito que você falou, sim. Mas vejamos, silenciou, fez como se precisasse respirar um pouco mais fundo; vivo de leitura, continuou.

De leitura? Como alguém pode viver de leitura?

Pode sim, é perfeitamente possível, não vou dizer agora, mas uma hora dessas conto.

Uma hora dessas?, será que vamos nos encontrar de novo?

Claro que vamos, assegurou o homem, ainda com o livro nas mãos.

E como você pode ter certeza disso?

Tenho certeza absoluta, e o que me diz isso é a literatura.

Como você pode saber?, eu insistia.

Sei, porque você também é uma leitora, sei por causa da literatura.

Literatura?, o que pode a literatura?, olhei para ele sem desviar os olhos, senti que eu fazia uma pergunta crucial.

Na verdade, ponderou, a literatura nada pode, isso é verdade. Mas é possível perceber quando duas pessoas vão passar a se encontrar daqui pra frente, concluiu.

Continuamos a andar pela praia. O sol ia mais forte. Despedi-me dele com um beijo no rosto. Entregou-me um pedacinho de papel com o número do seu telefone.

Não vou atrapalhar sua leitura caso telefone?, ainda acrescentei. Vai, mas não faz mal. Você parece ser uma pessoa especial.

Dois dias depois telefonei para ele. Marcamos encontro num café, na Rainha Elizabeth. Quando cheguei, ele já se sentara numa mesa de canto, sobre o passeio. Nada pedira, esperava por mim. Trazia o mesmo livro que carregava na praia no dia em que nos conhecemos. Beijamo-nos. Sentei de frente para ele. A garçonete se aproximou. Fizemos-lhe os pedidos.

Já avançou muito na leitura?, perguntei.

Umas cinquenta páginas. Tirei parte dos dias para escrever, sorriu meio sem graça após a última palavra.

Você também é escritor?, eu, como sempre curiosa.

Um escritor amador.

Você vive apenas para ler e escrever?

Não, também passeio, lembra que segui você na praia?

Lembro, mas também levava um livro.

Sempre levo um livro, isso é verdade, mas não quer dizer que não goste de outras coisas.

Que tipo de histórias você gosta?, olhei diretamente seus olhos.

De todas, caso sejam bem escritas.

Você não tem namorada?

Por que a pergunta? Por acaso você quer me namorar?

Rimos.

Às vezes tenho, sim. Mas acho melhor a amizade.

Amizade? Com homens ou mulheres? Minha face devia estar transmitindo certo ar de suspeição.

Mulheres são melhores para se ter amizades.

Mas você não sente necessidade de namorar?

Namorar?, falou e voltou os olhos castanhos para mim. Namoro.

Sei muitas histórias engraçadas e interessantes sobre namoradas. Você que gosta, poderia escrever um conto ou mesmo uma novela.

Por que você mesma não escreve? Às vezes prefiro histórias sobre filosofia.

Filosofia? Não seria mais divertido uma narrativa sobre namorados? E olhe o tanto de filosofia que há nisso.

Depende.

Como? Acaso você é paulista?

Por que está me perguntando isso?, mostrou-se indignado.

Os paulistas apelidaram esta cidade de balneário, acham e que cultura não pode nascer à beira mar.

Não, não sou paulista.

Escrevo também, falei.

Sobre o quê?, quis ele saber.

Sobre várias coisas. Algumas pessoas podem achar fútil o que escrevo, mas acredito que há filosofia nas minhas histórias divertidas.

Você escreve sobre filósofos.

Claro que não. Escrevo contos ambientados aqui nas proximidades.

Contos de que tipo?, ele ainda segurava a xícara e tomava talvez o último gole.

Histórias de amor, histórias noturnas, às vezes algum sexo.

Sexo? Arregalou os olhos.

O que tem isso? Nunca leu um conto erótico?

Ah, sim, erótico, já li. Mas não acho muita graça nesse tipo de literatura.

Então me fale agora sobre o que você escreve.

É difícil definir, silenciou e esperou que eu me manifestasse.

Permaneci também em silêncio.

Já passava das seis, mas a cafeteria continuava movimentada. Era a hora do rush. O trânsito fluía barulhento pela Rainha Elizabeth. Vez ou outra precisávamos aumentar o volume de nossas vozes. Tentei ouvir o que se conversava nas outras mesas. Os assuntos pareciam versar sobre situações corriqueiras, como compras num shopping, a perspectiva de uma viagem, ou um filme concorrente ao Oscar. De repente, meu interlocutor voltou ao diálogo.

Escrevo uma espécie de autobiografia misturada com ideias filosóficas; coloco em cena algum personagem baseado num amigo ou numa amiga, geralmente reflexões relacionadas a alguma conversa que travamos.

Já sei que vou virar personagem de suas histórias.

Será?, ele indicou hesitação.

Não mereço?, franzi o cenho.

Não é que não mereça. Acho que é o contrário disso. Talvez seja difícil colocar no papel o que estamos conversando.

Não é difícil, não, adiantei, tudo que se fala ou que se pensa é possível de ser colocado em palavras, afinal, os pensamentos não existiriam sem as palavras, ou sem o idioma, quero dizer.

Você concorda que há obras sem conteúdo?, ele parecia aflito com a questão.

Nada é sem conteúdo, afirmei.

Mas caso contemos apenas um fato acontecido, com isenção, apenas a ação?

Toda ação para ser compreendida precisa de um embasamento. Ao contar simplesmente um fato acontecido nessa esquina ou ouvido em algumas dessas mesas você precisa que seu interlocutor tenha um repertório para compreender. É isso que revelará a capacidade de passar o fato adiante.

Não falo nesse nível. Caso eu conte um atropelamento e ponto final. Terá esse relato alguma graça?

Graça, não sei, mas terá um sentido e, dependendo como você conte, revelará um dado da modernidade. Ela tornou os seres humanos extremamente frágeis.

Os seres humanos sempre foram frágeis, insistiu.

Sempre foram. Uma carroça sempre foi mais forte do que um humano; pode-se dizer o mesmo sobre a força de um cavalo. Mas cavalo e carroça nunca correram tanto e jamais foram tantos como esses automóveis. A industrialização criou a repetição, a multiplicação, e isso, na maioria das vezes, gera o massacre.

Massacre?, repetiu parecendo não entender minhas palavras.

Lembra as guerras do passado, quando não havia arma de fogo?, insisti.

Isso vem ao caso?

Matar ou morrer era um ato entre uma pessoa e outra. Com a modernidade, veio a bomba. Uma explosão é morte em massa, a morte em escala industrial. Você é ou não um filósofo?

Ufa, falou e sorriu. Um sorriso triste.

Você quer ir embora?

Vamos andar um pouco, convidou.

Vamos, andemos pela orla.

Pagamos a despesa e fomos para a beira da praia.

Logo que começamos a caminhar pelo calçadão, falou:

Naquele nosso primeiro encontro, você vestia um biquíni que era uma coisinha à toa.

Você gostou.

Ora, claro. Entusiasmou-se.

Você vai me ver de biquíni mais vezes. Sabia que já tomei banho de mar nua, nessa praia?

Verdade?, arregalou os olhos.

Verdade. Caso você ande por aqui em torno das cinco e meia ou seis horas da manhã, vai encontrar pessoas tomando banho de mar nuas. Não é que elas o façam de propósito. É que estão por aqui andando, de repente sentem vontade de mergulhar. Como não há quase ninguém na praia, é fácil tirar a roupa por alguns minutos e mergulhar. Já fiz isso muitas vezes.

Jura?

Pra que jurar? Você não acredita em mim?

Acredito, falou.

Às vezes venho caminhar e resolvo dar um mergulho. Olho para um lado, para o outro, tiro a roupa e entro. Se vejo alguém se aproximar, não tardo, volto, visto o short e vou na direção oposta.

Você é mesmo muito engraçada. O rapaz demonstrava entusiasmo.

Já aconteceu de grupos inteiros entrarem na água sem roupa, num fim de madrugada. Mas isso já chama atenção. Acho melhor sozinha, e quando não há ninguém perto. Quem sabe, você possa contar um episódio desses em suas histórias.

Não vai ficar bom. O que as pessoas vão pensar de mim? Quero escrever coisas sérias.

Você pode escrever coisas sérias, aproveitei suas palavras. Coloque esse episódio como algo adjacente, as pessoas vão prestar atenção na seriedade da história e também irão admirar o episódio.

Mas isso é possível?

Claro. Tudo depende da mão, quero dizer, não pode ser muito, apenas sugestões. Já escrevi uma história com um fato excitante como algo que pudesse ter acontecido ao acaso.

E como foi?

Você é escritor, não me devia fazer tais perguntas.

Você parece ser uma escritora mais capaz do que eu. Conte, por favor.

Foi uma história mais ou menos assim. Um senhor (já passava dos sessenta) paquerava uma mulher um pouquinho mais nova do que ele. Moravam no mesmo prédio. Tarde da noite, ele começou a ir até às proximidades do apartamento dela para espioná-la. Queria descobrir o que a mulher fazia, como vivia etc. Numa dessas fugidas, deu com outra mulher batendo à porta da tal senhora, só que a visitante estava nua. Ele teve tempo de se esconder, num desses vãos de escada e observar. Seu coração batia tão forte, que parecia querer saltar pela boca. Pôde perceber a senhora abrir a porta e acolher a namorada nos braços, como um homem o faria. No final, descobriu que a mulher que ele admirava tanto era lésbica. Acabou achando interessante a brincadeira das duas. Tentou descobrir a mesma cena outras vezes. Mas não teve a mesma sorte.

E o que ele fez da vida?

Nada. Continuou vivendo sua vida de solidão. Sempre saía para passear no final da tarde.

Você tem razão, disse meu interlocutor, trata-se de uma história séria. Uma história sobre a solidão.

Então, entendeu agora? Todos nós somos muito sós, às vezes resolvemos nos divertir, assim a vida passa a ter algum sentido. Você não acha que Shakespeare quis se divertir com todas aquelas histórias que escreveu?

Nunca tinha pensado nisso, mas agora começo a compreender.

Vamos, então, disse a ele, venha me pegar? Corri pela areia na direção do mar. Ao chegar à beira, fingi  que iria mergulhar, mas apenas gritei: venha, estou esperando por você!

Ele então me abraçou.

domingo, abril 06, 2014

Será que ele volta?

Recebo um telefonema às três da madrugada. É um namoradinho de ocasião. Está acostumada a me convidar com investidas surpreendentes.

Está muito tarde, respondo.

Ou muito cedo, quem sabe, ele insiste.

Onde pretende me levar?

Adivinha?

Concordo que venha me buscar à porta de casa.

Está frio, falo quando chega.

Entro no carro e fecho a porta. Dou-lhe um beijo molhado.

Aonde vamos?, pergunto.

Ele dá a partida. Num primeiro momento, nada responde. Dirige dentro da madrugada silenciosa.

Vamos a um lugar bem escuro, quero você nua.

Não seria melhor dentro de casa, no calor do quarto?

Não, nada disso, prefiro o sabor da aventura.

Damos algumas voltas pela cidade. Na orla, a avenida principal está clara, ainda é possível encontrar os últimos empregados dos restaurantes. Olhamos o mar, que desliza com ondas uniformes sobre as areias da praia. No final, meu namorado dobra à direita e seguimos para a rodovia.

Tire a roupa, ele pede.

Mas assim?

Você já prometeu que ia ficar nua dentro do carro, lembra? Então, hoje é a oportunidade.

Mas está frio.

Fica apenas de casaco.

Tiro toda a roupa e a coloco no banco traseiro, menos o casaco. Visto-o novamente depois de tirar a blusa. Começo a sentir excitação. Ele, ainda dirigindo, me acaricia o ventre.

Sai da rodovia, entra por uma avenida lateral e segue até a rodovia estadual. Quando começa a trafegar nela, tudo está muito escuro, apenas os faróis do automóvel exploram o caminho por algumas dezenas de metros. Nas laterais, a vegetação e, vez ou outra, alguma névoa. Depois de guiar por um quarto de hora, para no acostamento e me abraça, me beija e pergunta:

Você teria coragem de descer?

Nua?, completo.

Isso.

Faço que sim com a cabeça. Sorrio. Contenta-me a aventura noturna.

Vamos fazer assim, diz, dou a partida, dirijo por mais dois ou três quilômetros, depois faço o retorno e volto pra pegar você, quando estiver na direção contrária venho com o alerta ligado. É o sinal de que me aproximo.

Faço de novo que sim com a cabeça, deixo que ele me dê um longo beijo na boca. Desço do carro, sempre tentando manter a elegância.

Será que ele volta?

Logo que entro ele reclina o banco do carona e vem por cima de mim. Abro as pernas. Meu corpo ainda traz o frio que faz do lado de fora. Há muito estou toda molhada. Não sei se de nervoso ou tesão. Ele me percorre o pescoço com a língua, me beija com ardor, seu pênis procura o meu sexo, o encontro é instintivo. Enquanto me penetra, grito de prazer, grito pelo encontro fortuito, grito por estar nua nos seus braços, ou numa rodovia, não sei; clamo pelo prazer do risco que corro, chamo seu nome como se procurasse por ele, como se não tivesse voltado e me deixado nua à beira da rodovia. Seu sexo agita-se dentro de mim, mergulha cada vez mais fundo, lateja, eleva-me às estrelas que ainda vejo através do para-brisa quando abro os olhos. Quero o momento eterno, momento de prazer máximo. Aperta meus peitos, sussurro, aperta. Ele obedece. Você adivinhou o meu desejo, falo ao mesmo tempo que procuro sua boca com meus lábios grossos, a boca úmida. Você sabe que eu quero sempre trepar, que quero ficar nua pra você... Arfo. O gozo se aproxima, mas não quero perdê-lo. Desejo que dure, que permaneça horas a fio, que vença os dias, que jamais acabe. Meu corpo todo treme. O ardor me sacode com impetuosidade. Quero sentir seu sexo no mais fundo do meu corpo, da minha alma. Vai, me esporra, me esporra agora, vai, grito, gemo, choro. Desejo-me nua por mais tempo, desejo que se vá de novo, que volte e tudo comece outra vez. Não quero o tempo a passar. Não quero o sol. Ardo para que a madrugada dure. Que dure a sombra, que a rosa permaneça em botão, que perdure a névoa e que eu goze mais uma, duas, três vezes, cada vez mais, e que ele me deixe pelada, que desapareça, que volte de novo e que tudo se repita até não mais pudermos, até que já não nos equilibremos sobre o fio tênue da razão...

E o frio, e eu pelada.

Será que ele volta?