quinta-feira, julho 30, 2015

Conto de carnaval

Eu era uma deusa consagrada pelas duas da tarde. Uma deusa de máscara.

Ele, surpreso, olhou para mim. Tentava entender o jogo.

“Nunca viu uma mulher de rosto coberto?”, minha voz soou distorcida através do pequeno orifício.

“Já, mas não de máscara e nua por inteiro.”

“Aí é que está a graça”, sorri para ele, que não podia adivinhar o meu sorriso.

“Você gosta de fantasia”, afirmou.

“Claro, não sou prostituta nem estou apaixonada.”

Percebi que minha resposta chegou a ele um tanto enigmática.


A brincadeira começou quando uma amiga pediu para tomar conta da pequena casa. Era por volta do mês de novembro. Toda vez que eu descia à cidade, verificava se tudo andava bem. Aproveitava para descansar, principalmente quando o dia estava quente. Como sempre gostei de me fantasiar, imaginei a tal brincadeira. Arranjaria vários namorados e os levaria àquela casa. Mas para que tudo desse certo, havia dois pontos: que não fossem homens violentos, e que não vissem o meu rosto. Assim, caso dessem comigo na rua não me reconheceriam nem sairiam comentando aos amigos. Contatei uma amiga. Perguntei se gostava de máscaras e de Carnaval.

“Adoro”, foi sua breve resposta.

Ela agenciaria os encontros para mim. Eles, assim, não conheceriam o meu rosto.

“E se um deles lhe arrancar a máscara?”, pareceu preocupada.

“Pode acontecer”, respondi, “mas é o risco que a gente corre para sentir prazer. Talvez isso faça o prazer maior.”

Saímos as duas a campo. Ela também queria experimentar.

“Ninguém pode saber”, adverti, caso contrário estaremos em maus lençóis; quero dizer, sem lençol algum; e nuas! Além disso, a casa não é minha, a proprietária confia em mim.”

“Por que não arranjamos namorado como duas pessoas normais?”

“Você consegue?”, repliquei. “Caso diga que sim, seja feliz.”

Minha amiga riu e entendeu.


Ela começou a andar lá pelos lados da rodoviária, sempre ao amanhecer. Sentava num banco e fingia esperar o ônibus. Quase sempre um homem se aproximava e vinha puxar conversa. Esperava também o seu ônibus. A conversa começava com alguns entraves. Ela não abriria logo o jogo. O primeiro trabalhava como mergulhador nas plataformas de petróleo. Ela se assustou.

“Nossa, que profissão perigosa!”

“Nem tanto”, ele retrucou. “É só o começo, depois não há o que temer.”

Contou também que vinha de longe. Ficava quinze dias no mar. Depois voltava para casa. Naquela manhã estava voltando. Deixou o telefone. Dali a quinze dias esperaria por ela.

Ela me trouxe o número dele.

“Quem sabe, talvez ele seja teu.”

“Como vou fazer?”

“Faça de conta que foi você que conversou com ele na rodoviária. E depois, há a máscara, ele não vai ver o teu rosto.”

“Certo, vou ligar então.”

Ele veio. Aproveitei. E muito. Não era tão dotado nem tão hábil, mas foi uma boa aventura. Além de me comer, chupou a minha buceta.

Minha amiga continuou suas ações. Como acordava cedo, andava pela rodoviária fingindo estar prestes a embarcar. Marcava com os homens. Eles vinham para mim, sem que percebessem o ardil. Depois do mergulhador, veio um operador de guindaste. E que guindaste o homem tinha. Gozei várias vezes. Depois dele, veio um domador de cavalos. Vixe, suspirei, vai que o homem queira me domar. Enganei-me. o homem sabia trepar. E que delicadeza.

Nessas idas e vindas de namorados, chegou o Carnaval.

Será que no carnaval eu precisaria de máscara? Fiz três fantasias. Uma odalisca, uma colombina e, por último, uma baianinha. Todas um amor. Pintei bem o rosto, modifiquei o cabelo e saí me misturando na folia. Não é preciso dizer que as sainhas de todas as fantasias eram minis. Os homens vinham atrás, me seguiam, me queriam abraçar. Mas polidamente eu desconversava. Meu negócio era dançar. Pela manhã, eu ia à praia. Para me enfeitar, arranjei uma rendinha, tipo um vestido de noiva, mas sem forro; por baixo, o biquíni. Toda vez que surgia um bloco na orla, eu acompanhava o ritmo. Num desses momentos de euforia, encontrei a amiga que arranjava os namorados.

“Oi”, ela falou, estava mascarada.

“Por que a máscara?”, perguntei.

“Porque é carnaval.”

“Mas você não tira?”

“Não quero ser reconhecida”, respondeu, “e, além disso, resolvi fazer como você.”

“Hoje, não faço não”, disse convicta, “quero dançar, quero o carnaval.”

Ela escapou em meio ao bloco, um homem a levou pelo braço.

À noite me vesti de baianinha. Entrei num enorme cordão, no centro da cidade. Duas horas depois corri para orla. Outro bloco. Batucada, samba, vozes a cantar, corpos a transpirar sensualidade.

No domingo, passei o dia vestida de odalisca. As pernas de fora. Homens querendo-me beliscar. Ai, nada de manchas vermelhas sobre a pele, eu fingia dizer. Lá pelas tantas, acho que passava das três da tarde, um jovem se pôs a me seguir. Como ele dançava bem, conhecia todos os passos. Eu era a estrela principal de uma escola de samba. Pelo menos era assim que eu me sentia. Houve até um turista americano que, de câmera na mão, não nos abandonou. À noite, enquanto tomava um refresco, ainda na orla da praia, encontrei minha amiga mascarada.

“Oi”, falou, “já aproveitei com três.”

“Aproveitou?”, fingi não entender.

“Fiz o que você faz mascarada durante o ano.”

Respondi “oh, parabéns”, enquanto ela escapava nos braços de dois negros fortes. Está dando tudo que não deu há anos, pensei.

Senti um toque nas costas. Era o jovem dançarino. Deslizamos de novo pela avenida principal. Um bloco se aproximava, com todos os tambores.

Na segunda, saí às duas da tarde, vestida de baianinha. A roupa branca, branquinha mesmo, e eu cheia de colares. Logo um soprou no meu ouvido.

“Fofinha, quero levar você pra casa, deixar só os colares sobre essa pele branquinha.”

Tive de rir. E ele dançou comigo. Mas na hora principal, escapei. O homem estava doido para me comer. E lá vinha o dançarino do dia anterior. Gostei dele porque sua vontade era apenas dançar, e demonstrava um enorme entusiasmo. Mais uma vez encantamos corações, arrebanhamos aplausos, e uma legião de fotógrafos atrás de nós.

Não é preciso dizer que, naquela noite, enquanto eu me refrescava com um suco, num quiosque, encontrei a amiga mascarada.

“Você não tira a máscara?”, perguntei.

“Não posso ser reconhecida”, respondeu solene.

“Por quê?”

“Ora, porque já trepei com cinco foliões. E olha que lhe conto um segredo”, acrescentou, “o último tem um pau enorme, quero ficar com ele até o fim do carnaval, nunca vi homem tão bem dotado. Repare de perfil, é aquele ali de copo de cerveja na mão, está com um amigo. Não é bem avantajado?”

Reparei o homem. Era verdade. Parecia que tinha um peru dos grandes. Pela primeira vez naqueles dias e noites de carnaval senti uma fisgada bem no fundo do útero. Era vontade de trepar. Até ali o meu negócio fora apenas a festa. Mas nada falei à minha amiga.

“E onde vocês transam?”, eu, curiosa que só.

“Numa barraca no Pecado. Foi ideia minha. Quando arranjo um, levo pra lá, mas agora só quero com ele.”

Surgiu o rufar de alguns tambores. Alguém me tomou um dos braços e mergulhamos na folia. Minha amiga se perdeu na multidão.

Foi uma noite encantadora. Como não gosto de bebidas alcoólicas, brinquei lúcida e com toda a energia até quatro da manhã. Dancei com muitas pessoas, entrei também num cordão só de mulheres. Bem no meio, uma jovem dançava inteiramente nua!

No último dia, aproveitei para sair num bloco que estava marcado para as dez da manhã. Uma festa muito animada, com bebidas para os integrantes que vestiam o abadá. Fiz da minha um vestidinho muito sexy. Dancei sensualíssima, beijei na boca dois ou três homens. Mas nada de sexo com eles. Às três da tarde, fui procurar a barraca da minha amiga mascarada. Não foi difícil de chegar até lá. Ela estava deitada, descansando. Estava só, sem a máscara e inteiramente nua.

“O que houve com você?”, perguntei. “Não está na folia?”

“Vou daqui a pouco, estou descansando.”

“E a máscara? Você está nua...”

“Lembra o meu paquera avantajado? Emprestei a ele. Disse que ia brincar num bloco onde os homens saem vestidos de mulher. Ele volta daqui a pouco. Quanto à máscara, acabei não resistindo e mostrei o rosto. Agora estou nua duas vezes!”, parecia feliz por ter se revelado.

“Quer dizer que ele foi brincar num bloco vestido de mulher?”, repeti o que ela dissera logo após ter uma brilhante ideia. Lógico que nada comentei a ela. “Isa, e se ele não volta?”, acrescentei.

“Claro que volta. O homem está apaixonado.”

Despedi-me, deixei o Pecado para trás e me enfiei de novo na avenida. Não foi difícil encontrar o bloco de homens desfilando vestidos de mulher. Iam pela altura da Glória. Iam desengonçados dentro de vestidos e roupas de banho femininas. Quando chegavam à Cancela, avistei o namorado de minha amiga. Era um dos mais animados. A roupa de mulher até que lhe caíra bem. Ele batucava um tamborim. Engracei-me ao seu lado, fazendo volteios e sorrindo. Ele se aproximou e passou a batucar cada vez com mais vigor o seu instrumento. Eu dançava como uma passista. Rebolava, descia, subia, mexia o bumbum novamente. O homem ia ao delírio, enlouquecia. Quando a bateria encerrou o desfile, ele me ofereceu uma cerveja. Bebi com ele um ou dois copos. Seus amigos se dispersaram dizendo que voltariam à orla, havia mais dois blocos e a bebida seria grátis. Puxei-o então pelo braço e falei.

“Tenho uma surpresa pra você.”

Ele me acompanhou. Não queria levá-lo para a tal casa que eu tinha a chave, mas não havia outro lugar. Ao chegarmos, tirei toda a roupa e me entreguei a ele. Minha amiga tinha razão, mostrou-se ótimo amante. Ele tinha um peru imenso, parecia um cavalo. E como demorava a gozar. Jamais um homem me proporcionou tamanha satisfação.

“Não vá embora”, falei. “Vamos trepar mais uma vez.”

E assim fizemos. Durante toda a noite. Pela manhã ele se foi. Como o carnaval já terminara, saiu apenas de bermuda. As roupas de Isa, que ele vestira para o tal  bloco, acabaram ficando comigo, mas eu não podia levá-las a ela. Descobriria que eu estivera com seu homem.

Duas semanas depois, a dona da casa veio morar em M. Devolvi-lhe então a chave. A brincadeira das máscaras terminava. Quando encontrei minha amiga, totalmente ao acaso e mais ou menos um mês depois do carnaval, eu disse:

“Que carnaval inesquecível, hein?”

“Nem fala, riu um  tanto envergonhada.”

“E o namorado?”, perguntei fazendo de conta que nada sabia.

“Voltou assim que você se foi. Trepamos a noite inteira. O problema foi que o bandido não me devolveu a fantasia!”, finalizou.

Ainda bem, pensei, Isa sabe mentir. E que bom humor!

quinta-feira, julho 23, 2015

Todas gostamos

Sentada na poltrona, vestida de calça jeans colante, sandália de meio salto,  espero por ele. Falta alguma peça sobre o meu corpo ou esqueço de escrever sobre a blusa? Falta a blusa, sim. Mas é proposital. Tenho o torso nu, uma das mãos e o antebraço a proteger os seios, jogo inocente e, ao mesmo tempo, sedutor. Gosto da nudez, aliás, todas gostamos. Hoje, quero fazer uma surpresa a ele que não demora. Tudo começou numa dessas madrugadas quentes, depois de uma festa na Gávea. Saímos juntos, ele ofereceu-me uma carona. Insistiu para eu ir à sua casa. Quis me fazer difícil, hoje não, quem sabe amanhã? Amanhã é domingo, retrucou. É um dia como outro qualquer, acrescentei. Acabou concordando. Como combinado, o encontro aconteceu, e foi agradável. Comemos uma pizza e tomamos duas taças de vinho. Aliás, uma pizza fina, porque sou elegante. Depois, rumamos à sua casa Assim começou nosso enlevo. Lembro que naquela noite eu vestia um vestido soltinho, o comprimento acima dos joelhos vez ou outra deixava entrever, como um relâmpago a durar meio segundo, uma lasca das minhas pernas. A partir do tal domingo, o namoro foi crescendo. Para não esfriar, sempre ouso, por isso hoje o caso dos seios nus. Ele vai adorar, tenho certeza, quem sabe enlouquecer. Fecho os olhos, ponho-me a imaginar. Corro à beira da praia após ter saído de uma festa às três e trinta da manhã, um  alvoroço, mulheres a gargalhar, alguns rapazes, de repente junto à parede, uma espécie de falésia que separa a praia do calçadão, avisto uma moça, ela tenta esconder-se, permanecer anônima, está nua, os seios sobretudo à mostra, percebo que se assusta com a turba da qual faço parte, não desejo comprometê-la ante o grupo barulhento que me segue, aponto a borda do mar, conduzo todos à direção oposta, deixo-a intacta a nossos olhares, anônima, como antes de chegarmos. Sinto, porém, uma ponta de inveja, melhor fosse eu a nua, e não ligo se me roubam o véu. Abro lentamente os olhos, o abajur lança reflexos suaves sobre a parede. Quero levantar-me, deixar a poltrona, ir à cozinha buscar um copo com água. Adoro a água bem gelada descendo por minha garganta e percorrendo-me as entranhas, chego a sentir um fio frio, cortante, arrepio. Seguro os seios com uma das mãos e deixo que minhas pernas conduzam-me ao objetivo, um copo fino, de cristal. Volto com a água quase a transbordar, o copo suado, minhas mãos trêmulas de excitação. Tomo o primeiro gole. Sinto o gelo até nos bicos dos seios, quase um espasmo. Vou de gole em gole, torno-me úmida, fria e quente ao mesmo tempo, beiro o paroxismo. Repouso o copo sobre a mesinha lateral, as mãos tilintam o cristal, o prazer... Fecho-me de novo sobre a poltrona, os olhos semicerrados, as pernas cruzadas e uma das mãos a segurar o seio esquerdo. O meu homem há de chegar? Luzes da Visconde de Pirajá, as lojas abrem à noite, pairo sobre o bairro, pouso sobre uma das calçadas, voo noturno em pausa, percebo que vou sem a blusa, os seios com os bicos rijos, será que me espreitam?, pouco a pouco me percebo invisível às pessoas, ligeiras passeantes, não dão pela minha presença, o vento morno acaricia-me a pele lisa, uma vitrine de bolsas, loja aberta que me convida, não há viva alma, entro e toco no couro cru, quero a bolsa, saio da loja, percorro outras vitrinas, a bolsa tão leve... serei ladra nua?, ouço um apito, não descubro de onde vem, será a polícia?, as pessoas correm sobre o passeio, um carro freia, já não há a placidez dos primeiros momentos, alguém me esbarra o torso, toca-me a história da moça que atravessou nua a principal avenida de sua cidade, prometeram-lhe dois mil reais pelo desfile, por que a lembrança?, nada ganho e vou tão nua quanto ela. Ah, o arrepio, a poltrona, os seios soltos, cubro-os com as mãos mínimas, como se ainda estivesse na rua; os bicos ainda rijos apontam ao namorado que não chega. Tenho o número dele. Suspiro. Quem sabe ligo? Meu sonho a tornar-se neblina e a ameaça do sol vindouro. Perco-o como uma criança perde o brinquedo impossível, como a moça perde a inocência. Quando era mais nova eu estudava tanto... O sonho, os olhos fechados, um assovio. Quem a chamar? O vizinho de frente? Eu sempre a frequentar seus sonhos. Mas não sou a mulher que lhe proporciona ereções múltiplas. Apesar de minha a face, de meu o corpo, a criação é sua. Descruzo as pernas, levanto-me preguiçosa, são seis passos até a porta da rua, a madeira de três centímetros a separar-me do mundo, a impedir que me descubram nua. Abro a porta e sinto o cheiro do mar, a praia a duzentos metros, os saltos da minha sandália a enfiarem-se na areia, o bico dos meus seios a apontar o navio fundeado em alto mar. Toda mulher deseja uma armada, deseja que a noite dure, deseja que o vento lhe seja morno, deseja que o gozo lhe vá mais à frente...

quinta-feira, julho 16, 2015

Até o fim

Esperei duas semanas, até que não mais suportei, telefonei então pra ele. Ao ouvir sua voz, gelei. Sempre sentimos ligeiro arrependimento ao perceber que estamos numa posição inferior. Por que não deixei o homem de lado? Bastaria esquecê-lo e sair por aí a bater pernas, não demoraria a aparece outro, e talvez mais galante. Mas ele já estava na linha, e pareceu gostar de ouvir minha voz. Deu um risinho. Achei que estava de deboche. Ameacei colocar o fone no gancho. Mas logo ouvi hei, onde você está? Eu quis ficar em silêncio, deixar que ele imaginasse, porém o silêncio contínuo poderia fazê-lo pensar que a ligação caiu. Ligar duas vezes já seria demais. Oi, devolvi. E você como, está?, ele. Bem. Que bom, retomou o diálogo. Eu ia dizer uma bobagem, mas preferi silenciar, quem sabe ele continuava. Respirei fundo, tapei o telefone para que ele não ouvisse o arfar de meus pulmões. Que tal um encontro?, sugeriu. Eu não poderia aceitar de primeira, principalmente depois do que aconteceu. Nada falei, apenas repeti em tom de interrogação, um encontro? É melhor não, falei. Foi uma tentativa de reconquistar o terreno perdido, já que fora eu a autora da ligação. Ele retrucou por que então o telefonema? E agora, o que eu diria. Esperei um pouquinho. Não sei, apenas senti vontade de conversar, afirmei. Que bom!, pelo menos isso, ele aceitou minha réplica com alegria. Você é bonita, acrescentou, caso queira vir, não falemos no que passou, vamos conversar outros assuntos, tudo fora de nós dois, completou. Como vamos agir assim?, perguntei a mim mesma, em silêncio, enquanto esperava que ele acrescentasse algo. Ele, no entanto, permaneceu à minha espera. Esperei também. E tudo se tornou muito demorado, o tempo não passava, ou se arrastava, eram duas pessoas segurando dois telefones pesadíssimos. Hoje quase não se telefona, quebrou o gelo, manda-se mensagem, pelo zap. Ah, o zap, repeti, é mesmo, talvez haja mais silêncio daqui pra frente, ousei continuar. Não vamos estragar tudo, ele interferiu, estava também com saudades, ia ligar. Por que não ligou?, eu quis saber. Estava esperando as coisas esfriarem, respondeu. As coisas esfriarem, expressão interessante, pensei comigo, então quer dizer que alguma coisa estava queimando as mãos dele, e fora eu a vítima, talvez estivesse sentindo-se arrependido. Sei que não foi nada demais, acrescentou, mas você ficou uma fera. Não foi nada demais, não consegui ficar em silêncio, você acha que não foi nada demais? Não sei, foi uma brincadeira, ele. Brincadeira?, tive mil problemas depois do que você me causou, tive de dizer. Mil problemas, não exagere, ele chegou a rir depois das palavras, e achei que estava de novo a achar engraçado a situação em que ele me colocara. Nada repliquei, apenas esperei que continuasse. Você quer que eu peça desculpas?, perguntou numa pretensa gentileza. Não, não precisa, tudo o que aconteceu teve minha concordância, retruquei, sou tão culpada quanto você. Afinal de contas ninguém morreu, ele queria concluir a questão. Como não morreu?, cheguei a repetir suas palavras, quero dizer, ninguém morreu fisicamente, mas algo se perdeu, além de tudo, dizíamos que não conversaríamos sobre o passado, viu, por isso não dá pra encontrar você. É, acho justo, você tem razão, ele acrescentou. Ok, vamos então desligar. Ok, ele concordou, vamos, talvez num dia melhor, quem sabe. Isso mesmo, num dia melhor, ainda estou muito ferida, nem eu mesma sabia disso. Ok, então um beijo, ligo daqui a um tempo, falou. Tchau, desliguei. Sentei na poltrona e me pus a imaginar a noite em que brigamos. Uma brincadeira besta, uma brincadeira que eu concordara, e depois a confusão toda. Passaram-se cinco minutos, me levantei e peguei o livro que repousava sobre a mesinha lateral, um livro em francês. Tentei continuar a leitura que começara antes de dar o telefonema. Mas não consegui me concentrar. O diálogo recém-encerrado deixara rastros de sobressalto em meu espírito. Então fui ao quarto, abri a porta do armário e me olhei no espelho. Sorri, um sorriso de início acolhedor, a seguir mais envolvente, depois com uma ponta de volúpia. Naquele momento, me tornei a mulher mais feliz do mundo. Enfim, voltei ao livro. Dali em diante consegui ir até o fim.

quinta-feira, julho 09, 2015

Situação

Oi, Renan, tudo bem? Tudo. Não sé assuste não, sei que um telefonema a essa hora deixa as pessoas preocupadas, desculpe, é que preciso de um favorzinho seu, e não posso esperar até o amanhecer. Como você parece entender das coisas, veja se consegue me tirar desta situação. Sabe a casa da Amelinha? A do interior. Isso mesmo, Paty. É, sei que é complicado, você está no Rio, um pouco distante. Então deixa, acho que vou ter de tentar outra pessoa. O que é? Não adianta eu falar agora, vai ser perda de tempo, você não vai poder me ajudar. Quem sabe, pode? Mas vai demorar, são muitos quilômetros. Você insiste, não? Curioso, você. Se estou nua no lado de fora da casa, como você fazia comigo? Você gozava com aquilo, não é mesmo? Sempre pensa nisso. Adivinhou. Sabe, não posso contar aquelas histórias pra homem algum, eles enlouquecem, muitos dizem que nunca haviam pensado nisso, que realmente é um tesão, e querem que eu faça pra eles o que fiz pra você. Juro, com todos são assim, e nunca apareceu alguém mais ousado do que você, ou melhor. Deixe-me dizer... Por isso telefonei. Amelinha me emprestou a casa, não há ninguém lá. Por que não digo aqui? Escute. Não há ninguém lá, pelo menos não vai haver até amanhã cedo. O tal homem, aquele a quem contei o que você fazia comigo, me pediu algo ainda mais extravagante. Lembra aquela vez quando o motorista de ônibus que já me paquerava havia um tempo me encontrou de madrugada naquela situação? Isso, ele me salvou, sei que não ia morrer por causa da minha ousadia, mas seria um escândalo, você entende, a brincadeira começou a partir de você. Não, não estou nua numa estrada como aquela, claro que não, por aqui as estradas são estreitas, não como aquele trecho de rodovia onde saltei do seu carro. Você me levou até ali vestida, lembra? O problema aqui é outro. Já vai adiantada a hora, e o tal admirador já me trouxe no carro dele como queria. Você vai sair comigo nuazinha, ele insistiu durante vários dias enquanto me namorava. Será que não basta esta trepação diária?, rebati. Mas ele tanto insistiu, que cedi! O problema não foi sair nua, nem ser largada nua aqui tarde da noite. O problema é que não sei onde ele me deixou. Aceitei sair nua com uma venda nos olhos, e me afastei do lugar onde ele combinou me pegar. Nem sei se viria me pegar. Agora não consigo voltar até onde ele me deixou, nem conheço o caminho de volta pra casa da Amelinha. Quando venho a esta região quase não saio, nem para ir à cidade. Percorri duas ou três centenas de metros, uma escuridão terrível, então encontrei uma rua, um muro alto, acho que alguma mansão de homem rico, escutei até relinchos de cavalo do outro lado do muro, acho que se trata de um haras, esses lugares onde criam cavalos de raça. Então, você quer saber como fiz para te ligar? Quase um milagre, isso mesmo. Como poderia haver um orelhão logo num lugar desses? Uma rua de paralelepípedos, um muro branco, relinchos de cavalos ao longe... Um trote? Por que eu faria isso? Sei que ainda me deseja, não precisaria agir assim pra ver você morrendo de tesão por mim. Ouça, não é brincadeira, não; é a mais pura verdade. Sei que deve me achar muito tranquila para estar vivendo a história que estou contando. As mulheres bonitas não se veem durante muito tempo num beco sem saída, logo surge alguém pra ajudar. E você sabe o tanto de prazer que senti quando você me levou nua no seu carro pela primeira vez. Acho que por isso estou recorrendo a você. Preste atenção, voltando à situação em que me enfronhei hoje. Não, ninguém ainda deu pela minha presença, há uma luz num poste distante, mas só sombras. Tive uma ideia, um desses lampejos que não acontecem sempre. Já que você está longe e mesmo querendo não vai conseguir chegar a tempo, de repente você contata um amigo e ele vem me resgatar. O quê? Ficou com ciúmes? O que tem demais? Já fiquei nua pra tantos homens, já perdi a calcinha pra dezenas deles. O importante é que me leve de volta pra casa da Amelinha. É fácil, todos a conhecem por aqui e sabem onde ela mora. O cara vai querer trepar comigo? Também não vejo problema nisso. Melhor com um conhecido seu do que com um estranho. O que vale é estar salva antes do amanhecer. E olha que depois te conto, sei que você adora uma historinha. Então, como você parece entender das coisas, acho que pode me tirar desta situação. Há uma árvore de tronco largo, vou ficar agachada atrás. Fale pro seu amigo apagar o carro todo e piscar o farol três vezes, aí vou até ele, combinado?

quinta-feira, julho 02, 2015

Fez até uma cosquinha

Se eu levasse em conta o meu código de conduta e minhas tentativas de leis, o mundo seria totalmente diferente. Quando querem o vermelho, prefiro o verde; quando me desejam de verde, vou... isso mesmo, vocês já sabem, saio pra passear nuinha. E ainda arranjo um homem, sempre com propostas ousadas, excitantes, como meu recente namorado. Ele tem um casaco de meia estação, desses que se amoldam ao corpo, parece aquele papel prateado com que envolvemos uma fruta. Só que a fruta sou eu. E que fruta! Querem mordiscá-la, sentir o sabor, experimentar o sumo? Esperem, o dia de cada um há de chegar. E ele trouxe a peça, pediu que a vestisse. Não demorei a moldá-la sobre os meus ombros. Não, nada disso, não se deve vestir o agasalho desse modo, afirmou. Tirei-o e lho devolvi. Como se veste um casaco de meia estação?, ingênua eu, que sei apenas andar nua, nua e sorrindo. Vista-o sobre a pele, ordenou. Apenas, ressaltei. Meus dentes felizes e brancos. Fácil, não?, compreender os desejos de um homem. Um casaquinho sobre a pele, apenas, repeti. Não o fiz sob a vista dele. Fui ao quarto, a porta fechada. Voltei à sala. Não me toque, asseverei, caso contrário desmancho. Assim como a glacê de um bolo fugaz, acrescentou. E põe fugaz nisso, completei. Ele, o namorado, regozijou-se. Não temo a palavra. Foi exatamente assim que aconteceu. Um regozijo; a princípio eufórico, depois contido. E me pegou pelo braço, e me puxou porta afora, e me levou a passeio. O sol se punha, as pessoas iam e vinham. Não posso dizer que não gostei. Se falo lá em cima do meu código de conduta e de minhas leis às avessas, que mal há em passear nua à noite, ou quem sabe, até durante boa parte da madrugada? E as pessoas, acaso se surpreenderão? As pessoas não se surpreendem numa cidade como a minha. Não olham para o lado. Estão ensimesmadas. Essa mesma a palavra, bonita, não? Ensimesmada. Talvez pensem no namorado, no marido displicente, num filho que não vai bem na escola, ou mesmo não sabem no que pensam. Ninguém nota a mulher nua sob um casaquinho de meia estação. Vocês já sonharam que vão nuas ou nus pela rua? É tão engraçado. Ninguém nota a gente, não é mesmo? No sonho é assim; se acreditamos, as pessoas nada sabem. Então, o passeio com esse meu namorado foi parecido. Ninguém notou. E eu podia ir nua. Mas à vontade, impossível. Disse a ele que não queria o automóvel. Vamos caminhar pela orla de Ipanema, sugeri. Paramos num quiosque. Quero água de coco, sussurrei. Lá veio o empregado do quiosque com o coco e um canudo. Sorvi o mundo inteiro pelo canudo. Caso eu queira fazer xixi, afirmei, que bom, já estou pelada. Continuamos a andar de braços, sobre a calçada larga e bem iluminada. O vento que vinha do mar soprava por baixo da barra do agasalho, e eu, como podia me estar sentindo? Arrepiadíssima. Mas não esmoreci. Pelada ao vento, pelada à brisa marítima, pelada à beira-mar. Descemos à praia. Foi minha a sugestão. Ei, aonde você vai?, perguntou ele enquanto eu corria abandonando a sandália. Não imagina, lancei-lhe ao vento. Oh, sim, arremessei-lhe as palavras e o casaquinho. Depois, num salto, mergulhei. Só me resta a bronca da cabeleireira. O que fazes de teu cabelo, mulher?, ela sempre se assusta quando apareço no salão. Minha resposta silenciosa é um sorriso amarelo. Meu homem, preocupado, procura-me com os olhos baços. Não mais me tem à mão, apenas segura o casaquinho de meia estação. Lembro-me de minha amiga Elizabeth, enquanto movo braços e pernas tentando acostumar à temperatura fria da água. Quando me contou, eu já praticara a tal aventura, só que com desfecho diferente. Elizabeth saiu do carro peladinha, às três da manhã. O namorado partiu e ela ficou. Ficou a ver navios. Sério, o cenário ao fundo era de navios ancorados próximos à costa, aquela noite. Mas ela não queria saber deles e sim do banho de mar. Sua fantasia: mergulhar como viera ao mundo. E ninguém por perto. Nem o namorado. Que se fosse, que voltasse meia hora ou uma hora depois. Ela ficou escondida, ou melhor, sob as rendas desfiadas das poucas ondas que, suaves, iam e vinham. Se ele não volta, vejo o que faço, falou a si mesma. Era o jogo; assim ficavam excitados. O problema não foi ele não ter voltado, mas os olhos apurados de um pescador. Isso mesmo, um pescador experiente, que sabia discernir entre rendas desfiadas. Este a fisgou. Não usou rede nem molinete. Até disse que ela não era a primeira. Como eu deveria me comportar, então?, minha amiga chegou a me perguntar. Não esperou, no entanto, resposta. Saí com ele, isso mesmo, ali na beirinha d’água, e você sabe o significado do verbo sair, nessa situação; o problema não foi a saidinha, mas eu estava temerosa de que meu homem voltasse, acrescentou. E ele voltou?, eu, curiosa. Nem te conto... E se foi Elizabeth. Quanto ao meu homem, com o casaquinho nas mãos, esperava-me lá nas areias. Nadei ainda mais vinte minutinhos. Quando corri a ele, meu casaquinho, por favor, pedi. Casaquinho?, você entrou n’água com ele. Será?, fingi não me surpreender. Bandido, pensei, tal qual o namorado de Elizabeth, que, escondido, deve ter apreciado a mulher trepar com o pescador. Você viu o homem?, insinuei, meio afoita. Homem?, que homem?, franziu o cenho. O que levou o meu casaquinho, acrescentei, fez até uma cosquinha!