quinta-feira, junho 22, 2006

Passeio noturno em BH

A madrugada ia alta; a rua, silenciosa. O mês de junho deixava-me com a pele fria, às vezes, gelada. Mesmo assim desabotoei o vestido de cima até embaixo, movi os braços um pouco para trás e ele deslizou até se aninhar junto a meus pés. George fingiu se surpreender porque eu nada mais trazia sobre o corpo. Agasalhado e emanando calor próprio dos amantes, abraçou-me; procurava substituir o veludo anterior proporcionando-me temperatura ainda elevada. A rua e a galeria comercial mantinham-se à sombra e em silêncio; os dois cinemas, ao fundo, faziam-se notar apenas pelos cartazes dos filmes que estavam ou que entrariam em exibição.

Eram mais ou menos onze da noite quando saímos de automóvel. Escolhemos, primeiro, percorrer os bairros nobres; depois, o centro. Preferimos as ruas elegantes, mas tranqüilas; paisagens compostas por casas de dois andares, muros que deixavam entrever pequenos jardins e alguns trechos de grama; vez ou outra surgia um pequeno edifício. As poucas lojas mantinham-se com os letreiros apagados. A cidade dormia.

Mais tarde, quando trafegávamos lenta e preguiçosamente por algumas ruas do centro, ainda foi possível percebermos um ou outro restaurante com seus últimos clientes. Na avenida central, alguns luminosos do comércio, mas numa impecável discrição.

Sussurrei em um dos seus ouvidos, tentava não desfazer o ar sóbrio e misterioso do avançar da noite: "deixe-me por alguns instantes, quero ver como se convive com o imprevisto, quero estar sozinha à sombra, desejo gozar com o risco". Quando saía, estendi-lhe uma das mãos, ainda que trêmula, e completei com minha voz: " leve-me o vestido".

Havia alguns dias, ele convidara-me para passear: "vamos dar umas voltas de carro, deslizar silenciosos, à noite, vamos escorregar nossos corpos na penumbra". Desfiz então o embrulho com cuidado, não queria amassar o papel de presente: "que lindo", tive tempo de exclamar antes de me atirar em seus braços. Ele completou: "vista-o para o nosso passeio, é para lhe acariciar a pele".

A madrugada tem ruídos próprios, apenas os amantes podem percebê-los. Sons que ora se mostram delicados, ora se apresentam como sinais de advertência. Há motores que passam distantes, há algo que parece ser o farfalhar de invisível ave noturna. A cidade ainda que próxima disfarça-se longínqua, percebe-se seu leve respirar, sua calma aparente que se equilibra num fio de arame.

Estátua de alabastro, pelas costas apenas a porta corrediça da galeria; envolviam-me o ar brumoso das últimas horas e as derradeiras sombras. Em um árvore sobre o passeio, o movimento de um ramo maior acelerou-me o peito, mas, em segundos, a languidez perfumada da hora tardia aconchegou-se de novo.

Não houve desconhecido ou inesperado, nem cavaleiro noturno sobre animal metálico a seqüestrar-me. Somente o zumbir ininterrupto do resistor da lâmpada alta e fria. A madrugada com seus mistérios, com seus dizeres indecifráveis ignorou-me por completo; fez-se cega à mulher nua que quis experimentá-la como se experimenta um homem que não se revela sob a máscara, à mulher que queria gozar com suas múltiplas presenças mas transpirou temerosa e ansiou, durante demorado quarto de hora, pela rápida volta do amante.

quinta-feira, junho 08, 2006

Tear primevo

O céu espelha enxame de lanternas prateadas; não há rugir que não seja o das águas geradoras, explosões em cadeia, espuma que ao eterno se renova, resíduos de intempérie. Degrau de areia, rastro involuntário de preamar, serve-me de recosto. Ligeira brisa atraiçoa-me a tez. Sem tranças de algodão ou seda púrpura a cobrir-me, tento ungir-me à natureza. Um cão se aconchega, tenta roçar-me o pelo. Sou mulher-loba que o recebe, cadela ruiva à beira do cio. O que espero? Que a noite passe com lentidão; que suas sombras não se dissipem; que o inseguro tracejar de luz fria refletido em lua quase finda não me revele. Deixei-me surpreender por amante ancestral, amor primeiro. Quis levá-lo ao gozo, extremar-lhe prazeres noturnos. Saqueou minhas naus, privou-me de regresso. Disse que intenta resgatar-me, rígido, sem demência, tal qual anêmonas luzidias em inverno de hemisférios invertidos. Resta-me o cão, ainda que precário. Às últimas sombras, espreguiça-se, sacode o pelo. Acaricio-o, mas ele parte. Vai sob alvas de céu já rosáceo. Não o acompanho, não lhe pertenço. Fiz parte momentânea de seu mundo, onde a fome é perene e não ultraja a ausência de tear primevo. Espero. Sou massa esmeráldica a ser lavrada à primeira luz.