quinta-feira, novembro 15, 2007

Picardias e paliçadas

Como as águas de uma estação termal, subia-me todo o corpo o vapor das fêmeas erradias; minha pele alva permeada de gotículas transparentes, entrecortada pelo tecido negro do vestido comprido e solto, convidava. Quem se candidataria a percorrer-me o corpo sutil, a irmanar a palma da mão ou a ponta dos dedos a calor que se derramava em febre de desejo? Quem deslizaria sobre o tecido úmido – teclas de bemóis e sustenidos – a melodia hábil de um pianista? Eu era a música, latejava som de orquestra, perdia-me entre cordas e metais. A multidão comprimia-se num espaço de alegria. Corpos de atletas, campeões em provas de outras plagas e de outros deuses, apertavam mulheres seminuas. Afrodites que deixavam escapar sorrisos fugitivos, beijos rubros-violetas, ancas volumosas, abdomens ricos a descobertas. Aportou-me misterioso cavaleiro. Num gesto brusco descobriu-me madura sob o pano. Suas mãos tremeram; era amador em versos femininos. Precisei afastar as pernas. Fiz que escorregava distraída, num passo de mulher desinibida. Depois me recolhi à sua espera; as pernas ainda dois dedos entretidas. Escapou-me perfume e cintilância, umidade de paredes novas, prenúncio de civilizações a encetar viagens e delírios. Senti que a batalha se daria em solo escasso, não dado a escapada ainda que fingida. Sussurrou-me rumores remotos, palavras mágicas, narrativa a precipitar desvarios. Mãos fiéis imobilizaram-me qual estátua, arqueólogo em valorosa descoberta. Uma lança, lembranças de batalhas medievas já vencidas, cortou-me a tez, ranhura primitiva, assalto ao desejo em plena luz de réveillon, chuva adiantada sob vestes transparentes. Segurei-o; queria um segundo golpe, e o queria demorado. O gozo é passageiro, mas perpétuo o entrevero; fantasmas que buscam imanências arriscadas. Luzes circulavam o arrabalde, mulheres proibiam permissivas, paradoxos da volúpia. Eu, recém forjada, a escorar parede de tijolos crus, a roçar picardias e paliçadas, a moldar o próprio corpo em brilho avermelhado, seios nus a espelharem cerâmica de arrepio. Então me atirei a seu alcance. “Ainda não tarda, restitua-me a lança, aplaca-me o desejo”.

quinta-feira, novembro 01, 2007

Caixa de incêndio

– Você precisava ver, foi um show, jamais pensei que eu ia gostar tanto daquela brincadeira.

– Você deve estar louca; já imaginou se alguém surpreende você?

– Na hora nem pensei nisso; só queria sentir prazer.

– E se alguém encontra a sacola?

– O prazer é intenso, e as incertezas pesam a favor.

As duas conversavam enquanto aguardavam a hora do filme. Eu, que tomava café na mesa ao lado, pegara a conversa pela metade. Pelo que pude entender, falavam sobre um homem que era bem-dotado e estava tendo um caso com a mais jovem. Esta continuou:

– Você precisa ver, todas as mulheres que trepam com ele aparecem lá nuas. Contando ninguém acredita. Tocam a campainha e ele abre. Dizem que às vezes tem até que marcar hora; sempre depois das dez da noite.

– Como assim? Como é possível receber tantas mulheres? Elas não se encontram ao acaso no prédio?

– Não sei, vai ver que até se encontram e nem ligam. Certa vez ele me disse que eu podia ficar escondida e observar. Foi o que fiz. Fiquei surpresa, num espaço de duas horas duas mulheres bateram à porta.

A conversa era estranha. O fato também me despertou o interesse. Queria saber que história era aquela.

– Elas ganham algum dinheiro? – ficou curiosa a que ouvia.

– Não, pelo que pude observar, fazem por prazer; e ele tem uma conversa terrível; não há mulher que não caia na conversa dele.

– Ah, eu não caio; você acha que eu vou chegar nua na casa de um homem? Nem que ele seja o mais rico do mundo, ou mesmo um ator lindo e famoso.

– Você está enganada; se for até lá, acaba cedendo.

Quem seria aquele homem? Comecei a ter vontade de saber. Não podia interromper a conversa e perguntar. A hora do filme se aproximava. Elas levantaram e entraram na fila. Quis segui-las, mas a princípio temi que percebessem.

Ainda ouvi:

– Se você quiser, podemos ir lá hoje. Você vai comprovar com os próprios olhos.

– Não, prefiro a minha tranqüilidade.

– Tranqüilidade? Se você for, não vai querer outra vida.

Só me restava segui-las. Estava sozinha e a conversa excitara-me. Assistiria ao filme; esforcei-me para não as perder de vista.

Às onze e quarenta e cinco, elas cruzaram a porta do Espaço de Cinema e entraram num táxi. Meu carro estava estacionado no outro lado da rua. Atravessei correndo, entrei e dei a partida. Procurei seguir o táxi a distância; temia que o motorista me percebesse. O carro trafegou por algumas ruas de Copacabana até entrar numa pequena transversal e parar junto a uma banca de jornal. Tive dificuldade de estacionar. Enquanto saltavam, escutei a mais esperta falar em voz alta.

– Se você não quer subir, espere-me aqui, mas tome cuidado, está deserto e vou demorar cerca de uma hora. O apartamento é o 602 – apontou o prédio.

As duas acabaram entrando. Corri para alcançá-las. Uma delas ainda segurou a porta do elevador para eu entrar. Talvez pensassem que eu fosse uma moradora. Agradeci e apertei o botão do oitavo andar. Depois desci os dois andares pela escada e escondi-me atrás da mureta.

A mais espevitada tirou rapidamente o vestido deixando-o nas mãos da amiga. Bateu suavemente à porta, que logo foi aberta. Entrou. A outra não demorou a decidir-se. Tirou também a roupa, colocou tudo na bolsa e a escondeu na caixa de incêndio.

Dez minutos depois, nua e com o coração aos saltos, ia eu. Mergulhava às cegas; não sabia se cortaria suave o espelho d’água ou se me esperava o azulejo da piscina vazia.

O que aconteceu dentro do apartamento é difícil descrever. Mas foi a água que me amorteceu o salto. E quente!