terça-feira, abril 28, 2015

Entrei na tal fantasia

Respirei fundo e me pus avante, como era boa aquela sensação, talvez fosse o perigo, enfrentá-lo sempre é um desafio. O que pode fazer uma mulher nua às duas da madrugada, tanto mais à distância da própria casa? Mas eram duas da tarde e agora à história era outra. As lembranças que ficassem escondidas, numa espécie de sótão da memória. No telefone, a voz dele dizia quanto tempo, que bom falar com você. Convidava-me. Queria reviver algumas aventuras do passado. Não é bom voltar o relógio, rebati, vamos daqui em diante. Ele ficou em silêncio durante alguns segundos, mas logo retornou, com seu desejo acho que maior. O passado já passou, você tem razão, afirmou, o importante é o que vamos fazer daqui pra frente. Foi a minha vez de silenciar, de pensar muito, ainda que em trinta segundos. Desejaria eu ir à sua cidade, permanecer envolta nas carícias daquele homem que sempre partia sem avisar e voltava a me procurar? Você não falou ainda o motivo de tanto tempo sem ligar, disse eu subitamente. Ah, negócios, muitos os negócios, replicou. Quem garantirá que você não vai desaparecer de novo? Ninguém, sua voz soou sóbria, quanto a isso não há garantia.

Desembarquei no dia seguinte na rodoviária Novo Rio. Sempre achei o lugar muito confuso, feio, deselegante para uma cidade como o Rio de Janeiro. As pessoas corriam pelos longos corredores, não se preocupavam se esbarravam umas nas outras. Num dos cantos, uma mulher jovial, embora se percebesse que ia pelos cinquenta anos, beijava na boca um homem talvez quinze anos mais novo. Pessoas subiam e desciam, levavam malas, sacolas e pacotes. Corri até o ponto dos táxis, mas tudo estava muito complicado. E nem era véspera de feriado. Do outro lado da rua um ônibus indicava no letreiro que ia para o Leme. Embarquei. A viagem se deu vagarosa. A cidade tinha muitas interdições de avenidas, havia obras por todo lado. Depois de cinquenta minutos saltei num ponto próximo a uma praça, no bairro de Copacabana. Dobrei a segunda rua à esquerda e me deparei como pequeno hotel onde sempre fico hospedada quanto vou ao Rio. Ele ligou às quinze para as sete. Disse que só poderia encontrar comigo no dia seguinte às duas da tarde numa rua do centro da cidade. Ok, confirmei. Acho que a incerteza era o que me movia. Não sei dizer, mas o risco, sempre o risco. Coloque a dois metros um barril de pólvora e sempre haverá admiradores, ou mesmo quem se proponha a saltá-lo segurando um cigarro aceso. Naquele homem fugaz, escorregadio, enganador, havia um tipo de magia difícil de transformar em palavras, um filete de gasolina capaz de provocar um grande incêndio. A verdade é que ele atraía, e como.

Às duas em ponto eu esperava por ele na rua do Ouvidor esquina com rua do Carmo. A mesma rua do Ouvidor das histórias contadas por Joaquim Macedo, o autor de A moreninha. Não sou tão morena, mas mais atrevida, já que gosto de andar nua na noite escura. Caminhamos por outras ruas do Centro entramos num hotel, na Senador Dantas, um prédio antigo reformado e ambientado para casais em estado de paixão. Havia uma mulher discreta na recepção, não olhava frontalmente as mulheres que acompanham os homens. Subimos num elevador ruidoso, deixou-nos no sexto andar. Assim que entramos no apartamento, comecei a me despir. Não tirei a calcinha. Ele me abraçou quando eu virei para ele com os seios empinados, me deu um intenso aperto e me beijou os lábios. Nada de muitas palavras, ele sempre foi um homem silencioso. Permanecemos em pé, agarrados, num intenso apertar e roçar de corpos. Ele ainda não tirara toda a roupa, estava de calças compridas, mas mesmo assim pude sentir seu sexo rijo a me pressionar o ventre. Namoramos durante duas horas e meia. No final, tomei uma garrafinha de água, que havia no freezer. Estirei-me na cama e me pus a pensar sobre o fato de estar tão longe de casa, em outra cidade, viera apenas para encontrar um homem que dizia gostar de mim e que me procurava ocasionalmente. Você ainda gosta de andar nua por aí?, perguntou curioso. Ora, claro que sim, você que me despertou pra isso, não?, beijei-lhe o rosto com os lábios úmidos de água mineral. Então, proporcionei algo de bom a você, o que mereço em troca?, ele queria algo mais. Tudo, respondi e subi sobre o seu corpo. Seu sexo, que estava em repouso deu mostras de que despertava de novo. Abri as pernas e o agasalhei, o prazer foi intenso. Tenho um novo segredo pra você, acrescentou. Segredo? Achei que já me tinha ensinado tudo. Nada disso, voltou ele à palavra, trata-se de uma fantasia.

De sua bolsa, tirou uma fantasia de carnaval. Quer experimentar?, é de uma personagem de escola de samba. Como você conseguiu?, eu quis saber. Conheço muitas pessoas, e trabalho com atores e atrizes. Verdade?, mostrei surpresa, não sabia que seu trabalho era tão interessante.

Entrei na tal fantasia. Caiu com perfeição no meu corpo. Agora vou levar você pra passear fantasiada, ele riu no final da frase. Verdade?, Acho que morro. Nada disso, as pessoas vão adorar, e você está muito sexy com ela. Depois a gente volta para o hotel. Estou muito sexy?, estou nua, não brinca que você vai me levar nua lá fora?  Vou sim, e você não vai querer outra vida, nua às cinco da tarde.

Acho que por isso sempre volto a esse homem, a ele e a suas invenções. É lógico que tudo foi apenas um jogo. Passear lá fora significava apenas sair nua do apartamento e tocar a campainha para que ele me recebesse. Mas pra quem é de longe, imagine o frisson que senti enquanto batia à porta. E havia a possibilidade de ele não abrir. Por isso volto sempre a esse homem. Ele é um arrepio.

quarta-feira, abril 22, 2015

Qual a diferença, afinal.

Você não sabe ser livre, ele falou pelo telefone. Como assim?, embaracei-me nas suas palavras. Você se prende a pequenos compromissos aí em M., poderia estar aqui aproveitando melhor estes dias. Eram duas da tarde quando desliguei o telefone, pensei em me arrumar e viajar imediatamente à cidade dele, mas contive-me. Melhor esperar o dia seguinte. Mas ao levantar pela manhã comecei a deixar de pensar sobre a possível viagem. Eu sempre facilitava demais as coisa pra ele e sempre me prejudicava, saía dos encontros desvalorizada. Naquela mesma manhã, enquanto ia ao caixa eletrônico, encontrei Rubens, um mulherengo de carteirinha. Oi, princesa, como vai? Ele tinha a mania de chamar as mulheres de princesas, eu sabia que não era apenas comigo. Oi, respondi, mas ao contrário das outras vezes, além da voz, deixei o sorriso, foi uma porta aberta. Ele não deixaria de aproveitar. Começou a dizer que o dia estava lindo, combinava perfeito com meu sorriso. Ah, gentileza sua, redargui. Nada disso, ele acrescentou, você é uma princesa que merece todos os favores do reino. Rubens, deixa de história, nem mais existem reinos. Ele apontou um automóvel estacionado, de cor vermelha, conversível. Vou levar minha rainha a um passeio, sugeriu. Rubens, pretendo tirar dinheiro, vou ao caixa eletrônico. Insistiu em me acompanhar. Acabei por aceitá-lo ao meu lado. Quando saímos do banco, caminhamos um pouco a esmo e acabamos parando onde ele estacionara o carro. Vamos? Levo você em casa, convidou. Quem disse que vou pra casa?, emendei a frase com mais um sorriso. Era tudo o que ele queria, e eu sabia que caso entrasse no carro seria o mesmo que dizer sim às suas pretensões. Depois de cinco minutos, rodávamos pela estadual, uma rodovia junto ao mar. Veja que beleza, ele falava e apontava o mar, vamos parar, você toma uma cerveja. Um suco, respondi. Ok, vamos estacionar. O carro ficou num trecho de areia que se misturava à vegetação rasteira. Descemos até perto do mar. Ele explodia com ondas volumosa e irregulares, as espumas deslizavam ligeiras, vinham quase aos nossos pés. Às vezes eu tinha a impressão de que as águas chegariam com força até onde estávamos arrancando-nos dali com toda sua fúria. Rubens segurou uma das minhas mãos e me conduziu a uma cabana, que mal pude dar pela presença naquela paisagem. Ao nos aproximarmos, o vento levantava nossos cabelos e agitava nossas roupas. Entramos naquele local rústico, onde pudemos sentar, ainda ouvindo o som que vinha lá de fora e que parecia o começo de uma tempestade. Uma mulher jovem trouxe uma espécie de cardápio. Rubens perguntou se eles tinham camarões. A mulher assentiu e desapareceu num compartimento posterior ao bar. Rubens ria para mim, disse que eu adoraria o que serviam ali. A mesma mulher voltou, trazia um suco e uma cerveja. Colocou o copo à minha frente, abriu a cerveja e encheu o copo do meu amigo. É deserto, aqui, cheguei a comentar. É um bom lugar para se conversar e namorar, falou e sorriu. À noite, deve ser um lugar tentador, acrescentei. Ele pareceu gostar da minha observação. Você gosta de sucos, não é mesmo? Suas palavras ecoaram na minha mente, lembrei meu admirador do Rio, que telefonara no dia anterior. O que ele dissera mesmo? Era como se sua voz se perdesse ante todo o bramir da natureza. Meu namoradinho do Rio gosta de me convidar para um hotel no centro da cidade, gosta de me deixar nua às duas da tarde, certa vez me perguntou se eu voltava nua pra casa. Respondi que sim, nuazinha nuazinha, só pra provocar. Quanto a Rubens eu sabia que teria de demorar em seus braços, ele desejaria meu corpo durante todo o dia e também durante boa pote da noite. Ninguém poderia dizer que eu não era livre, que vivia presa aos meus pequenos problemas em M. Aliás, preferi deixar que Rubens fizesse sua parte e provasse que M. valia a pena. Nua num hotel no centro do Rio. Nua numa praia, num fim de tarde em M. Qual a diferença, afinal? Acho que o vento, todos os ventos, e as mãos grossas daquele homem da terra crente em princesas, crente em reinos jamais extintos. Saboroso o camarão, ressaltei, e o suco então nem se fala, está boa a cerveja?, emendei gulosa. Ele bebeu um longo gole, seu rosto estampou todo o prazer que a vida lhe podia oferecer. Eu ia nua, dentro do seu copo de cerveja ou, quem sabe, ao lado do seu corpo dourado. E os olhos baços e indiferentes da garçonete estavam acostumados a sonhos que vinham do mar.

sábado, abril 18, 2015

A pelada sou eu

Digamos que seja tudo verdade. E a verdade às vezes dói. Mas faço de conta que ainda tenho alguma chance. Não foi isso que combinamos. Ele me pediu para descer do carro, dar uma voltinha, depois de cumprir a tarefa que precisava cumprir voltaria para me levar para casa. Ah, esses homens, deve ter surgido outro programa. E eu esperando. Deixa estar. Deixa estar que resolvo à minha maneira. Caso ele ainda apareça, não mais me encontrará. Estarei longe. E nos braços de outro. Mas que estou furiosa, estou.

"Rosalvo, você vem me buscar? Eu sei, está tarde, não combinei nada com você. Mas surgiu um imprevisto, por isso telefono, e você vai ter uma surpresa. Isso mesmo, Rosalvo, uma surpresa. Não, pode deixar que não vou fazer como da outra vez, deixei você chupando o dedo, lembro sim. Nada disso, não vai acontecer de novo, prometo. Anote onde estou? Depois da 41. Isso. Há um restaurante perto, mas não quero ir até lá, ou melhor, não posso. Por quê? Você vai logo saber. Se apresse, Rosalvo. preciso que esteja aqui no máximo em vinte minutos. Por que tanta pressa, Rosalvo? É fácil adivinhar, você me conhece. Não, não brigamos, muito pelo contrário, estamos muito bem. Mas ele, ou eu, não sei bem, acho que nós dois, sabe, namoramos com o perigo. Essas coisas nos excitam. Que coisas? Ora, Rosalvo, não faça perguntas óbvias. Se estivéssemos numa Dinamarca, numa Noruega, acho que não seria nada de mais. Mas no Brasil, e nesta cidadezinha... tudo se torna muito perigoso. O que, Rosalvo? Ah, sim, você diz que eu e ele gostamos do perigo. Isso, Rosalvo, isso mesmo. Fui eu quem disse há pouco, você está repetindo. Vamos deixar a conversa pra outra hora. Se apresse. O quê?, você acha que eu devo escrever um livro com minhas histórias?, com as situações que me acontecem? Rosalvo, escrever livros é fácil, tanto mais para mim, o problema é publicar, e isso não é assunto para o momento. Venha me buscar que eu conto. A surpresa? Se eu falar perde a graça. Quando você estiver aqui, vai perceber, e como. Vai amar. Uma armadilha? Rosalvo, você acha que eu vou te atrair para uma armadilha? Sou sua amiga, jamais faria isso. Se fosse obrigada? As tais pessoas que me obrigariam não conheceriam você, eu não ligaria para você, procuraria outra pessoa, talvez uma que me tivesse feito algum mal. Uma pessoa assim não me viria buscar, Rosalvo? Deixa, Rosalvo, não precisa mais, não, não venha, vou me virar sozinha, me arrependi de ter ligado a você. Vem o ônibus, vou dar sinal. Não sabia que aqui passava ônibus. Melhor se tiver só o motorista. Sabe, Rosalvo, há um deles que me paquera. Quem sabe seja hoje o dia de sorte do homem. Não precisa, não, Rosalvo. Já dei sinal, está quase parando, vou entrar. A surpresa, Rosalvo? Vai ficar para o motorista. É ele que me vai levar. Pode me olhar de frente, moço, sou eu sim, e sou sem vergonha, não é você que sempre passa às quatro e meia em frente à escolinha? Então, é o seu dia de sorte. Não acredita? É verdade. A verdade às vezes dói, mas a de hoje é só prazer Não precisa ficar com vergonha, não, moço. A pelada sou eu!"

segunda-feira, abril 13, 2015

Posto de vigia

Escrevo sempre com minhas palavras. É inútil querer começar com frases alheias ou pensamentos de outros autores. Caio sempre na minha própria língua, ou no meu modo de narrar. Respiro fundo, quero antever uma solução. A madrugada adianta-se, o bramir das ondas me soa suave, estou só sobre as areias da praia, ainda é escuro o céu. Penso na amiga que me escreveu um dia desses dizendo que foi à praia com o namorado e ele a deixou nua! A exclamação, um tanto desajeitada, é dela. O que haveria demais ficar nua numa praia? Já não vamos todas nuas sobre as areias brancas? Mas ela não podia ouvir-me. Era texto as suas palavras, e eu lia. Ficara nua pelas mãos do namorado, brincaram dentro d’água, e ele lhe escondera o biquíni. Caso permaneça tranquila, as águas hão de lhe servir de cobertor, e o dia nem é tão frio, eu lhe diria sossegada. Mas essa amiga é inquieta, mexe-se muito, e as mãos (incluo por minha conta algo mais) do namorado não a deixam em paz. Paz, quem disse que deseja a paz? Não quer a paz mas, ao mesmo tempo, foge dos olhares que por acaso descubram-na nua por inteiro. Ninguém olha para nós, diz o namorado, vamos aproveitar. E ele sempre de mãos estendidas e quanto oh quanto não recebia de surpresa! Mas depois que tudo acaba e ele sai... Não sei se foi procurar pelo biquíni da moça ou se foi buscá-lo na bolsa. Pois ele saíra no começo, logo que a deixara nua, e correra até o guarda-sol onde ficara a bolsa. Ela diz que um senhor aproxima-se e quer assunto, pensa que a mulher vem sozinha à praia; e o namorado a demorar... Daí em diante calou-se, terminou o texto mandando a mim muitos beijos. Acho que quis experimentar minha imaginação. Enfim, despediu-se. Nada perguntei; nem poderia. Sorri e guardei o papel. Eu, que moro diante da praia, que me é velha conhecida a madrugada, acho que por isso o texto dela ao meu endereço. Desconfia que ando nua pelas areias, sob a luz do luar. Meus namorados jamais tiveram tanta imaginação. Quando muito, tomam-me ao colo e me carregam para a cama. Já vim nua aqui fora sim, uma só vez, e não estava bêbada, apenas desejosa. Certa vez inventei uma historinha a um namorado, historinha pela metade. Falei de um amante que gostava de trepar na praia. Cruzes, mau gosto, respondeu, a areia é pegajosa e, depois, acabamos por estragar as roupas. Importante, ele, roupas caras por sinal. E minha amiga peladinha, na praia, sem recursos diante de um estrangeiro... Ah, sim, a solução sobre o que escrevi lá no começo. Não, não estou nua, acho que até muito vestida, mas o vento salpica-me a pele, talvez também me estrague as roupas. Mas não adianta despir-me. Onde as guardarei? Não trouxe a bolsa, como minha amiga e o namorado, bolsa que, aliás, não lhe deu a solução. Ah, uma proteção, uma guarita abandonada, usada no verão como posto de vigia, agora está quase em ruínas, tão forte os ventos. Entro na vigia, subo dois lances de escada. Surpreendo-me. Roupas. Alguém usa o posto como armário. Roupas de mulher. Levo-as comigo? Não, nunca fui ladra. O que faço? Protejo-me de todos os ventos. Melhor então me guardar na vigia, a vigia como refúgio, a vigia como armário, roupas minhas e roupas de outra, esquecidas, todas misturadas. Sei que ela não virá, não há viva alma na praia. E a noite que termina. Desço da vigia. Salpica-me a pele gotículas de sal, agulhas de areia sangram-me as pernas, o oceano inunda-me até os tornozelos. Volto à vigia, minha amiga pelada sem a bolsa, minha amiga pelada espelho meu... Posto de vigia? Que vigia?

segunda-feira, abril 06, 2015

Mulher de bordel

Sentem-se na pele alguns respingos do mar, eu tão arrepiada, é noite. O prazer do sal ilumina-me as narinas, meu corpo geme um arrepio comprido. Corro à beira d'água, tão próxima, envolta no abraço de meu próprio corpo. Talvez algum morador antigo, acostumado a poucas luzes da vila consiga vislumbrar minha silhueta. Arrisco-me. Não quero a roupa úmida, mareada de oceano. Melhor a pele apenas, o corpo a suspirar saraivada de gotículas. Experimento o gozo que vem do mar. Minha a amiga a correr a orla, a saciar o desejo nu do namorado. Eu não chamo namorados. Flerto com o céu, com as perigosas águas marinhas... Talvez alguém me espreite ao longe, namore uma improvável imagem, fantasma de mulher a surpreender desavisados. A noite é longa, deito-me à borda de um barco que descansa sobre dois cavaletes, um barco que mostra quão impossível é o navegar; o madeiro talvez me levasse a mediterrâneos desconhecidos, Ulisses às avessas, rainha de uma ilha fora do mar. Houve numa das noites, acho que a primeira da estada, uma menina a espreitar-me, queria meus segredos, sob a luz azul da lua pisou sobre meus pés de areia, um modo de arranjar caminhos seus. Disse que não o fizesse, pois os anos marcam todos os corpos, e ela teria os seus. Ninguém segue rastros impunemente.

Os homens da vila têm namoradas que os acompanham no automóvel. Vão nuas as namoradas. Não calculam o comprimento da saia, vão nuas de coxas, de pernas volumosas, e ainda gostam de beber cerveja. Os homens da vila não enxergam estrangeiras, apenas granjeiras que ciscam em terreiro próprio, interminável o carcarejo. Vamos em pele também nós, as estrangeiras. Eles não trepam em línguas que não dominam. Ou melhor, nem reparam que há outras línguas. Jogam os homens, um jogo de azar, um jogo de acasos. Estiro minhas pernas, a malha a fazer-se corpo; os braços estirados; soltam-me dois seios rijos. Onde a blusa que me tingia a pele? Posso voltar nua à pousada? Deito sobre as areias, não espero príncipes. Eles não desembarcam, trancam-se em seus castelos. E eu tão casta. E nenhum castiçal a iluminar-me a face.

Não queria companhia naquela sexta-feira. Toda a cidade reunia-se nos bares. Eu me queria sozinha. Namorada à flor da pele, casada consigo mesma, lua interminável de mel. Caminhei até a orla, longe as vistas ébrias, os homens que querem as mulher duas horas. Peno adentrar o mar. Mar misterioso. Leva minha nudez às escondidas. Minha amiga mergulhava nua para o namorado. Ela, fingida, abandonada, envolta nas sombras escondidas da lua. Nada a esconder, falo de mim. Quero torta a madrugada, como meus cabelos despenteados. Longe dos homens, longe eles de mim. Certa vez abracei-me, apertei-me aos seios. Sufoquei-me. Senti então minhas mãos frias, gastas de desejos, os calos a arranhar-me a pele. Amei-me, e não às escondidas. Suguei meu corpo, embora não alcançasse outros orifícios além da própria boca. E como era doce meu suor. Jamais gostei de doces, salgava a carne quando menina, e a carne era meu corpo.

Do mar sem ondas rema aparente calmaria. O luar em prata derrama-se sobre o espelho. É noite, quero dançar num vão entre os hotéis. agora há um namorado a espreitar-me; aliás, dois, o segundo hospeda-se com mulher e filhos, logo descobre que não amou outra tanto quanto ama a mim. Sou carrossel a girar, presa pelos cabelos, quatro mãos a disputar-me. Dois passos e volto-me à praia. São de ondas o outro carrossel. Se entro no mar? Não sei. Sei que estou sempre a amar, sei que sou interminável mar onde alguns batéis não são capazes de navegar. Perco minhas roupas e ninguém a esperar-me. Um automóvel na areia. Descobre-se tão fácil a sereia que deita ao amor. Oh, talvez um farol ao largo evite o naufrágio. Mas a sereia ainda é peixe, espera a transformação. Não venhas agora, quero ainda demorar-me sobre o dorso de um cavalo-marinho. Queres a mim ou deita-te com minha metade? Dou-te a outra metade, mas não alardeie o troféu. E depois arranja um jeito a mim. Sem o mar serei sempre estrangeira. Quero gozar sã e salva. Disfarça a morte o gozo da mulher de bordel.