quinta-feira, agosto 24, 2006

Sobressalto e prazer

- Ah, você tem medo dele...

- Não se trata disso, Eduarda, mas veja o que aconteceu.

- Então me conta, vai.

- Tudo começou com um telefonema naquele sábado, às duas da tarde.

- E daí?

- E daí que ele me convidou para sair.

- Você não aceitou?

- De início, alguma coisa me dizia que era para não aceitar, mas depois, como não tinha o que fazer, acabei cedendo.

- Então, Marlen, não foi bom o passeio?

- Foi e não foi.

- Por que você chega a falar assim, até mesmo com tremor na voz?

- Escuta só, você também iria tremer, confesso que senti medo; depois, uma ponta de prazer, e, afinal, descobri algo em mim que de certa forma me atemoriza...

- Se você sentiu prazer, foi bom.

- Eduarda, isso é que me preocupa; apesar de tudo que aconteceu, ainda gostei, senti prazer, e marcamos um novo encontro, mas escuta, não interrompa mais.

- Ok, prometo!

- Então, depois do telefonema, continuei arrumando alguma coisa em meu quarto, ouvi um pouco de música, manuseei um livro e às oito e trinta estava lá, na entrada do meu prédio, esperando por ele.

- Vou pedir mais um chope, você quer?

- Quero.

- Garçom, por favor...

- Saímos, demos umas voltas pela orla, perguntou se queria ir a um cinema; como eu já tinha visto os principais filmes, disse que não; então rodamos mais, paramos no Leblon, caminhamos um pouco, entramos numa livraria, vimos algumas revistas, ele tomou um café. Até ali, nada aceitei.

- Hum, livraria? Sofisticado, não?

- Sim, parece.

- Uma hora depois, me convidou para jantar; não era um lugar como este onde estamos, mas um restaurante chique, em Copacabana, restaurante de um hotel; ficamos numa varanda, subimos por um elevador panorâmico, fomos recebidos por uma maitre muito bem vestida, nos indicou uma boa mesa; estava fresco o ar, como agora. De onde sentei, podia ver toda a praia.

- Que maravilha! Quisera eu arranjar um homem desses...

- Escuta, por favor!

- Fala.

- O garçom nos entregou um cardápio imenso; cada coisa sofisticadíssima, comida francesa e coisa e tal; havia também grande variedade de saladas; pedi uma. Deliciosa. Ele quis alguma coisa que não entendi e perguntou se eu gostaria de beber vinho. "Vinho?" repeti, "bebo uma ou duas taças". Escolheu então vinho francês, levemente seco. Que maravilha!

- Então, eu teria adorado...

- Adorei; ah, até que enfim que o garçom chegou com nossos chopes!

- Está bom, não?

- Está, mas deixa eu continuar; para resumir: comemos, bebemos, foi tudo muito bom; ele ainda pediu sobremesa, parece que um tipo de sorvete com calda de licor. Eu nada mais quis. Depois saímos. Então perguntou aonde eu queria ir. Confesso que o vinho me deixou um pouco alegre e excitada, mas procurava não demonstrar; respondi: "vamos passear mais um pouco". Passeamos de carro de novo pela orla, mais uma ou duas vezes.

- Por que você não o levou para sua casa?

- Antes tivesse feito isso, mas foi ele que me levou pra dele.

- Que legal! Logo na primeira vez...

- Eduarda, não sou louca, mas confiei nele. Como é amigo de alguém que conheço muito, achei que não seria nada demais.

- Pelo visto, a coisa foi boa.

- Foi, mas eu queria que não tivesse sido.

- Como assim, Marlen?

- Explico. Chegamos à casa dele, na verdade, uma gracinha de apartamento; ele colocou alguns CDs, Jazz, música instrumental, não sei bem, mas até que gostei; abriu mais uma bebida, me perguntou se queria, disse que não; ficamos no sofá de uma espécie de ante-sala, lugar bem decorado, agradável. A seguir, ele foi apanhar alguma coisa na cozinha; acho que aí é que cometi um erro, sabe qual?

- Nem imagino.

- Deitei no sofá!

- E daí?

- E daí foi que quando ele voltou, trazendo um pequeno prato, acho que com um pedaço de camembert, eu disse baixinho: "me abrace". Ele obedeceu. Depois continuei: "vou ficar toda amarrotada". Nada falou, mas me olhou com uma expressão de que "quanto a isso, apenas você pode resolver". Então tirei o vestido. Fiquei só de calcinha. Estava sem sutiã.

- E ele?

- Fingiu não se surpreender, mas depois me abraçou forte e deitou por cima de mim. Não demorou, a calcinha, oh!, evaporou. Ao fundo, apenas a luz do abajur e aquela música; creio que som de piano.

- Que maravilha!

- Maravilha? Ouça agora, Eduarda.

- Estou ouvindo.

- Começamos a transar; ele me tratou com maior carinho, mas pedi que não se apressasse, porque tenho dificuldade de chegar ao orgasmo. Foi aí que ele falou: "vou fazer você gozar, não se preocupe". Fingi não me preocupar, mas sabia que aquilo seria difícil. Fez, então, a proposta, e o pior que aceitei!

- Que proposta?

- Falou baixinho num de meus ouvidos: "vamos fingir, fantasiar, vamos fazer o seguinte..." então eu fiz... e gostei e gozei!

- Peraí, Marlen, me conta primeiro o que você fez, assim você me mata de curiosidade!

- Fiquei de pé, nuazinha. Enquanto pisava sobre saltos, ele ajeitou a tira da bolsa em torno de um de meus ombros. Depois abriu a porta do apartamento. Tinha de fazer de conta que chegava nua na casa dele. Caminhando em direção ao corredor, ainda disse: "se eu pudesse ao menos cobrir os seios...". Ele retrucou: "você nem veio de top...". Saí. Quando ele fechou a porta, confesso que gelei. Aquele pequeno obstáculo de madeira transformou-se em muralha gigantesca, intransponível. Eu era um ser minúsculo às portas de uma cidade adormecida; tinha de encontrar abrigo após haver perdido o último véu, e sem que habitante algum desse por meu vulto, mesmo que em sonho fugidio. Bati logo em seguida; uma batida fraquinha. Temia despertar hordas estrangeiras. Bati de novo. Ele não abriu. De onde eu saíra tudo estava escuro e vinha um silêncio aterrador. De repente fui tomada por vertigem: não conseguia me controlar, girava de uma lado a outro, tropeçava sobre degraus de escada lúgubre e escorregadia; os caminhos se misturavam, passagem secreta que se dissipava; sentia-me ora em fosso profundo, ora exposta a luz prateada e ofuscante. Ao dar novamente por mim, sem enxergar coisa alguma, pensei: ai, meu deus, ele vai me abandonar aqui. Comecei a imaginar o que faria, ali, nua; como sairia daquela situação. Suava frio quando ouvi giro de metal; depois, o movimento de maçaneta. Saltei entre os vãos da cidadela inimiga e me atirei nos braços de quem pensei ser meu salvador. Transbordei de um jato só: "por favor, moço, me dê abrigo, aconteceu um sério problema". Retrucou: "me conte, depende do problema; se não me convencer, você vai ter que sair como está, e nem tenho roupa de mulher pra emprestar". "Mas, moço," eu tentava continuar... "Me conte". Aí inventei uma história. Disse que costumava sair com alguém bem mais velho do que eu, que naquele dia fizemos um brincadeira que não deu certo; acabamos nos desencontrando e minhas roupas tinham ficado no carro do homem, na garagem. "Sua história é muito fraca, você não tem chance alguma". Comecei a chorar; cobria ora os seios, ora a parte de baixo. "Ainda há o caso do elevador...", entre soluços continuei. "Elevador, como assim?". "Ele me colocou nua no elevador e premeu o décimo segundo andar; a porta se fechou apenas comigo lá dentro, mas, no décimo, parou; já estava preparada para ser surpreendida quando vi somente o corredor escuro; o sensor captou minha presença e a luz se acendeu; mais um susto, meu coração disparou; depois a porta se fechou de novo e continuei o martírio; quando voltei, não encontrei nem ele nem o carro, por isso estou aqui, bati na primeira porta que encontrei". Aí foi a vez dele: "primeira, porta?, aqui é o décimo quarto!". Não disfarcei um ligeiro sorriso. "Está bem, eu ajudo", disse enfim, "mas quero algo em troca". "Peça, dou tudo que você quiser". "Quero sua virgindade". "Ah, isso não posso". "Por quê?". "Porque não a tenho", respondi, "já a deixei na casa de outro". "Mas deve haver algum outro lugar em que você ainda é virgem...". "Ah, isso há", falei, enfim, aliviada. Eduarda, transamos de todas as maneiras possíveis e durante muito tempo. Há mais uma coisa.

- O quê?

- Nunca gozei tanto em minha vida!

- E a virgindade?

- Ah, isso eu não conto!

- E o que você ainda teme ao se relacionar com um homem que parece ser maravilhoso?

- Com qual deles?

- Ué, com esse...

- Ah, acho que não fui clara, mas não faz mal; escute: primeiro, não acho normal gozar nessas circunstâncias.

- E o que é normal hoje, Marlen?

- Segundo: tenho certeza de que essa fantasia ainda vai se repetir muitas vezes. Então me vem o ligeiro sobressalto: o que me aguarda numa terceira porta? Mas quando penso nisso, me excito; e conto os dias para o próximo encontro!

sexta-feira, agosto 11, 2006

Chuva de algodão

Uma chuva dispersa, disposta, salpicava-me a pele. A noite descera súbita deixando-me desorientada. Sentia o corpo gelado, o vento cortava-me a alma. Não queria correr, procurar abrigo. Via apenas a linha de faróis que lá embaixo dividia a estrada. Permanecia paralisada; era porcelana chinesa que temia romper-se ao mais leve tilintar. A capa encharcara-se e a umidade já me chegara às roupas de tecido fino. Por breves momentos fiz dois giros com a cabeça; à esquerda e à direita tentei descobrir algum tipo de cobertura, abrigo furtivo ou fugidio. Ruídos de motor se aproximaram; na bruma, uma moto. Parou ao descobrir-me só e empapada pela chuva. O rapaz teve tempo de levantar o visor do capacete e me oferecer a garupa. Amazona resgatada em momento de desencanto, a retirada reavivou-me. Quando me perguntou o destino, surpreendeu-se com um ligeiro “não sei” que se perdeu junto à água que me corria pelos cabelos e rosto. O caminho percorrido em meio à tempestade tornou-se açoite violento. O motor zunia, o veículo saltava vencendo obstáculos em meio à estrada pedregosa. Ao atingirmos a via principal, fiz menção de saltar. “Você está encharcada”. Não via outra saída a não ser retornar a casa. Descobri o abrigo da parada de ônibus. Agradeci e corri. Foi então que tropecei e caí com espalhafato. Ele ainda não partira, deixou a moto e correu em minha direção. A capa enchera-se de lama e meu joelho gotejava; não água, mas sangue. Resgatou-me pela segunda vez. Colocou-me sobre a moto e batemos em retirada. Quando chegamos à sua casa, a chuva diminuíra. Caminhei com alguma dificuldade, amparada por um de seus braços. Senti-me vexada: a lama entranhara-me até nos cabelos.

Tomei banho quente e saí enrolada numa toalha. Os cabelos molhados ainda respingavam. Apesar de sozinha e trancada, continuava vítima de pudor nunca experimentado. “Minhas roupas, onde estão minhas roupas?", quis perguntar, mas me resignei.

Ainda envolta pelo pano felpudo que me cobria dos seios até parte das coxas e com os cabelos já penteados, enquanto tomava chá quente e forte, tentava não me mover nem descruzar as pernas; não queria que mínimo gesto partisse minha precária cobertura; de novo a porcelana chinesa. Meu amigo recente disfarçava, fingia nada ver. Ou melhor, tentava. Eu também tentava; mas a coragem de mulher nua, desafiadora de noites e madrugadas, naquele momento desaparecera. Eu tremia; e não era de frio.