quinta-feira, junho 27, 2013

Se houvesse sol - 12

A carona me deixou em Ipanema, na praia, quase esquina com a Aníbal de Mendonça. Ao começar a atravessar a avenida, ouço meu nome. Volto ao passeio.

"Não lembra de mim?"

Era Mário, que eu conhecera na praia alguns dias atrás.

"Como ia esquecer? Você roubou o meu biquíni."

"Não quer ir lá em casa buscar", soltou o deboche.

"Fica para outra hora."

"Não vá embora assim tão rápido; é muita coincidência nos vermos de novo, tanto mais numa cidade com toda essa quantidade de gente."

"Estou cansada, preciso dormir um pouco."

"O que você faz na rua a essa hora da madrugada?"

"Não saí para levar o cachorro a passeio", sorri e o olhei de lado.

“Lógico que não, não vejo cão algum.”

"Gostei da frase de efeito."

"Você é escritora", falou.

"Eu?"

"Isso. Pesquisei sobre você."

"Oh, o Google, grande universidade."

"Você é do New York Times."

"O que é ser do New York Times? Bem, deixa pra lá."

"Você é uma mulher famosa e importante, também colabora com o New Yorker."

"Você quer conversar comigo, não? Então vamos para outro lugar. Não vou ficar aqui na rua, quase cinco da manhã."

"Outro lugar? Onde?"

"A um café, quero tomar um café", falei.

"Mas café a essa hora? Acho que não vamos encontrar."

"Caso você queira continuar ao meu lado, dou a sugestão, mas a conta fica com você."

"Qual a sugestão?"

"Café da manhã num desses hotéis", apontei ao Cesar Park, foi o único que consegui mostrar aquela hora.

Ele olhou, depois se voltou a mim.

"César Park?"

"Conhece outro? Não precisa ser tão luxuoso."

"Acho que sei", tomou-me um dos braços e atravessamos a Vieira Souto.

Entramos no Everest, na Prudente de Morais. Subimos um andar e encontramos o restaurante. Ainda era cedo. Um dos empregados veio nos avisar que tínhamos de esperar em torno de uma hora até começar o café da manhã.

"Não há problema", falei, "vamos aguardar.".

Sentamos numa mesa central. Em volta, alguns empregados preparavam as mesas com toalhas brancas e talheres. Um deles aproximou-se e perguntou se queríamos tomar um pouco do café que ele tinha para os empregados. Aceitei e agradeci. Esse pessoal que trabalha em hotel adora quando compartilhamos alguma coisa com eles. Significa que nós e eles não temos muitas diferenças. O rapaz trouxe duas xícaras, o bule com o café e um açucareiro.

"Você consegue tudo que quer, não é mesmo?" perguntou Mário.

"Quase tudo."

"Que bom, assim podemos conversar melhor. Fora os funcionários do hotel, não há ninguém aqui. E lá fora ainda está escuro."

"Sim, podemos conversar, mas estou exausta. Vim com você pelo café."

"Quer dizer que não veio por mim?"

"Bem, para ser sincera, estava louca para tomar café, você não imagina, depois de tudo que vivi essa noite. E esse aqui está ótimo. Esses rapazes fazem as coisas bem feitas quando é para eles."

"Caso você fosse escrever um episódio de romance, criaria uma cena assim, não é mesmo?"

"Por que a pergunta?"

"Você é uma escritora, mais conhecida no exterior do que aqui no Brasil. Onde poderia encontrar os seus livros?"

"Existem duas livrarias que os vendem aqui no Rio, depois escrevo o nome e endereço para você. Continue, por favor."

"Você tem cenas assim, à meia luz. Na madrugada. E seus personagens são cheios de vida."

"Você gostaria que eles estivessem mortos?", sorri, com fisionomia de deboche. Enquanto isso levei aos lábios mais um gole de café.

"Não quero dizer isso. É que eles parecem de verdade. Quero dizer, são de verdade."

"Todo escritor quer que seus personagens sejam verdadeiros. Caso você diga que eles não o são, o escritor ficará furioso com você. Lembra do Eça?"

"Eça?", pareceu não entender.

"Eça de Queirós."

"Ah, sim, já ouvi falar, acho que li alguma coisa dele no ensino médio."

"Machado de Assis escreveu uma crítica acusando seus personagens de marionetes. Eça de Queirós ficou furioso."

"É mesmo?", pareceu surpreso.

"Isso, mas já faz muito tempo. E então? A conversa começou com você falando sobre cenas criadas por mim...”

“Isso mesmo. Acho que nos seus livros há cenas assim, poderíamos dizer, cenas em semitons. São belas, talvez por isso você seja tão apreciada nos Estados Unidos.”

“Sou apreciada lá, porque foi onde comecei a publicar. Há também os portugueses, eles apreciam muito o que escrevo. Não nego que seja mais fácil fazer sucesso aqui quando se é reconhecida primeiro no exterior.”

Acabei de tomar o café. Olhei através do vidro de uma janela próxima e percebi que a noite se esvaía. Um empregado do hotel, em trajes de garçom, veio recolher o bule. “A senhora deseja mais alguma coisa?”

“Viemos para o café, agradecemos este que vocês trouxeram, acho que não vou esperar abrir o restaurante.”

“Dentro de vinte ou trinta minutos, o restaurante estará aberto, caso a senhora possa esperar...”

“Será que não há um pão ou uma torrada?”, perguntei.

“Há sim, vou trazer. A senhora aceita que seja pão ou torrada do café da manhã dos funcionários?”

“Aceito. As coisas feitas para vocês também são muito boas”, sorri.

“Vocês não devem saber, mas os funcionários têm direito a café da manhã, e também são muito exigentes.”

Meu acompanhante sorriu e disse depois que o homem retirou-se:

“Esses caras são muito espertinhos.”

“Você não acha que eles também têm direitos?”

“Mas por que não pagam o café com o salário deles?”

“Eles pagam, sim. Tudo que consomem está calculado na quantia que recebem. Nenhum patrão é bobo.”

“Como se deve fazer para se lançar um livro?”, perguntou Mário. Mudava o destino da conversa de novo.

“Vá a um lugar bem alto e o atire lá de cima.”

“Falo sério, quero lançar um livro.”

“E o que tem escrito?”

“Quer que eu mostre? Podemos marcar para nos encontrar.”

“Se você me quer ver mais vezes concordo, mas não me peça para ler originais.”

“Mas foi você que perguntou.”

“Perguntei no sentido de saber o gênero que você escreve.”

“Histórias policiais.”

“Bem inteligente você.”

“Por quê?”

“Trata-se de um gênero muito cultivado ultimamente e, ao mesmo tempo, requisitado pelas editoras.”

“É isso, mas não tenho editora.”

“Veja, caro amigo, você não tem editora; eu, muito mais tempo na estrada do que você, preciso escrever nos Estados Unidos da América para ser reconhecida no Brasil, preciso lançar meu primeiro livro em Portugal, e por uma editora desconhecida. Imagine.”

“Mas qual a fórmula?”

“Não há fórmulas. Escreva bastante, essa é a fórmula. Escreva bastante. Um dia, caso acredite realmente no que escreve, você conseguirá.”

“Foi assim que você conseguiu?”, quis ele saber.

“Mais ou menos. Ainda não consegui de todo, mas sei que daqui para frente não será difícil.”

“E há a internet”, falou com voz baixa, olhando como se estivesse distraído com um barulho lá na rua.

“É, há a internet. Antes, nada havia.”

“Você também escreve, ou escreveu, histórias eróticas”, apontou ainda sobre minha obra.

“As pessoas classificam assim. O que posso fazer? Escrevo sobre a vida. Vou contar um segredo, ouça. Você quer ser escritor de verdade, não? Então jamais esqueça o que vou dizer. Nós, escritores, na maioria das vezes, não temos ideia alguma sobre o que escrever. Muitos, por causa disso, se desesperam. Mas um verdadeiro escritor não deve desesperar-se. Caso aconteça com você de não ter ideias, crie dois personagens e os coloque a conversar, mesmo que a conversa seja sobre coisas banais. A partir disso, nascem grandes histórias.”

“Você é muito inteligente”, ele falou.

“Isso é um absurdo.”

“O quê? Achar você inteligente?”

“Não. É um absurdo eu estar aqui, perdendo tempo com você, e toda essa..."

O empregado do hotel voltou trazendo uma bandeja com vários pães abertos, um pote de manteiga e outro de geleia. Trouxe também talheres, renovou as xícaras e deixou um novo bule com café.

“Vamos comer”, falei e tomei nas mãos uma canoa de pão.

“Há mais verdade num pão com manteiga do que num romance de Shakespeare”, ele falou.

“Romance? Shakespeare não escreveu romance.”

“Não faz mal o que ele tenha escrito. Mas acho ainda assim o pão com manteiga mais verdadeiro.”

No final daquele café, o dia já ia claro. Interpelei Mário com seriedade.

“Você diz que quer ser escritor, não é verdade?”

“Verdade”, ainda engolia um último pedaço de pão.

“Escrever romances policiais, não?”

“Isso, policiais. Só não sei se os chamo de romance, novela ou contos.”

“Quanto a isso não importa, O que vale é que continue a escrever. Nunca pare, mesmo que você morra junto com os seus papéis.”

“Morrer com os meus papéis? Interessante a frase”, afirmou.

“Vou lhe dar uma missão. Quem sabe sirva de combustível para alguma história que você venha um dia contar. Preciso encontrar uma pessoa.” Falei então sobre Daniel. Pedi que o encontrasse para mim.”

“O que você vai me dar em troca?”, perguntou cheio de malícia.

“Quer pagamento pelo trabalho de detetive particular? O melhor trabalho é ter uma boa história. Mas talvez você mereça mais alguma coisa. Já que escreve histórias policiais, deve ter alguma habilidade.”

“Não precisa ser pagamento em dinheiro, você me entende, não?”

“Oh, como entendo! Vamos fazer assim. Caso você descubra algo que valha a pena, deixo que você me vista o biquíni.”

“Biquíni?”

“Isso mesmo. O que você me roubou”, levantei-me, beijei-lhe o rosto, deixei com ele meu cartão e desci as escadas em direção ao saguão do hotel.

quarta-feira, junho 26, 2013

Se houvesse sol - 11


Você, Chico, vai ser o homem mais feliz de todos

Estados Unidos suspendem ajuda militar à Coreia do Norte, morte de jovem reabre discussão sobre homofobia no Chile, Chaves volta à Venezuela após radioterapia em Cuba, emboscada contra comboio da OTAN no Afeganistão mata 20, cinco policiais são mortos em Ciudad Juarez, no México, OEA abre investigação sobre morte de Vladimir Herzog; as notícias na TV, sempre as notícias, e tem gente que pergunta por que assisto TV, por que o interesse por tantas notícias, pensam que sou idiota; a casa do Grapete fica do outro lado da rua, na verdade não é bem uma casa, mas uma construção irregular, incompleta, faz anos está no tijolo, Grapete vez ou outra aparece, o cabelo desgrenhado, cara de bêbado, dizem que já veio alguém da família pra levar ele pro hospital mas não conseguiu, Grapete deve ter bons argumentos, Grapete tem alguém pra pensar nele, Grapete tem quem diz ser da família dele; Odair passa de bicicleta, faz um aceno, sei que Odair tem pena de mim, mas não preciso da pena dele, estou sentado torto na cadeira, os pés cruzados, Odair sabe que não sinto os pés, sabe que minhas pernas são só figuração, ele pensa que sou meio retardado, que não entendo as coisas, nesse ponto Odair está errado, posso não falar, não articular palavras, mas entendo tudo, entendo e penso como ele, até melhor do que ele, Odair ganha dinheiro do movimento e pensa que sou bobo; a TV de novo, grande barulheira na sala a tarde inteira, a TV sempre ligada, e eu olhando a rua, se é que se pode dizer que isso é rua, que isso é bairro, isso é a favela, isso é a Malvina; dona Isaura passa, grita meu nome e também acena, dona Isaura já quis se passar por minha mãe, dona Isaura vinha me trazer comida, dona Isaura também é uma pessoa que tem pena de mim; ela diz Chico, vem comer um pirão, trouxe pra você, como vou comer pirão, d. Isaura?, tenho vontade de dizer mas não consigo, ela precisava trazer o pirão num prato, deixar no meu colo junto com uma colher, assim como o pirão, colher a colher, deixando sem querer o gotejo me lambuzar a camisa, como todo o pirão, dona Isaura grita olá, Chico, cadê a Maninha, dona Isaura não espera resposta, dobra o aceno e se vai; vem o menino da pipa, olha o céu, procura vento, procura pipas, vá estudar, Anderson, essa gente de hoje gosta de dar nomes difíceis aos filho, vá estudar, Anderson, quero gritar, mas só um grunhido, só a Maninha entende meus grunhidos, lá vai Anderson a olhar sempre o céu, cuidado com o chão, Anderson, cuidado com o chão, tu olha demais pro céu, se há alguma coisa lá?, sou eu quem sei?; Maninha saiu de manhã, Maninha ainda não voltou, Maninha talvez não volte, ou volte bem tarde, virá alguém pra empurrar a cadeira pra dentro, me deixar na sala, me por diante do aparelho de TV, depois irá embora, mas antes vai dizer nada de troça, Chico, nada de troça, vê, espera a Maninha, espera que a Maninha já vem, a Maninha ficou de cuidar de mim, cuida em troca da pensão do INSS, Maninha é legal, mas ela gosta mesmo é de mulher, no começo isso me incomodava, mas lá sei eu de mulher com mulher?, deixo as duas se esfregarem, elas pensam que eu não vejo, mas deixo as duas se agarrarem, a casa é pequena, Maninha geme, Maria Cláudia geme nos braços da Maninha, escuto esquecido na cadeira, mas finjo que não escuto, finjo que não vejo, Maninha tinha uma loja que vendia CDs, a loja ficava bem aqui do lado, mas o negócio não vingou, dizem que era ilegal, que a prefeitura não aprovou, mas onde fica a prefeitura pra ver as coisas daqui?, Maninha me olhava de perto, eu grunhia, ou esguichava a voz junto com uma gosma, ela vinha me acudir, mas Maninha e Maria Cláudia tiveram de fechar a loja de CDs, foram à vida, foram trabalhar noutro lugar, Maninha não fica mais aqui ao lado, ninguém fica ao lado, algum vizinho, alguém que passa dá um jeito na cadeira se desandei, me apruma, traz um copo d’água, já pra eu ir ao banheiro tenho de esperar Maninha voltar, quase não aguento, às vezes não aguento mesmo, ela volta e estou molhado, mal cheiroso, Maninha diz ainda não aprendeu, Chico, você não é mais criança, criança... não sou criança, não tenho pai, mas lembro dele, era quem me criava, quem cuidava de mim, mas sei que morreu, ninguém falou mas descobri, ele morreu, se tenho mãe?, todo mundo teve uma dia uma mãe, mas nunca vi, um dia ouvi alguém dizer, sempre escuto alguém dizer alguma coisa, ouvi que ela se foi quando nasci, quando descobriu o que eu era, o que eu seria dali pra frente, não teve coragem a minha mãe, mas não ponho culpa nela, vai ver teve razão, acho que as mães sempre têm razão; aqui perto tem um garoto, acho que ele tem futuro, ele não devia ter nascido aqui, não devia viver aqui, garoto muito inteligente, lê livro em dois dias, estuda, estuda muito, quero dizer a ele vá embora, não fique nesse lugar, aqui as pessoas não prestam, quem há de pensar em alguém?, só pobreza, pobreza e mais pobreza, os moradores com seu jeito de driblar a miséria, acho que se falasse como os outros eu não conseguiria dizer essa palavra, driblar, mas o garoto fica, vai à escola, volta e fica, quero perguntar por que voltou tão cedo, por que a escola hoje acabou ainda fresca a manhã, mas não consigo, sou bom só no pensar, falar que é bom nada, talvez melhor assim, fico quieto e não arranjo encrenca, mas o garoto sabe de mim, sabe tudo de mim, sei disso pelo seu jeito de me olhar, olha na certeza, deduz no faro, é algoz no pensamento, sabe que não posso falar mas não duvida, ele sabe o que eu penso, às vezes me pergunta alguma coisa, mexo então os olhos, respiro fundo, ele entende o que pensei, entende minha agonia, não vai com os outros meninos, não vai pro jogo de bola, às vezes algum deles quer me levar a cadeira até o campinho pra eu ver o jogo, mas ele não acompanha, antes Maninha deixava alguém me levar, mas surgiu alguma confusão, tiro pra lá, tiro pra cá, não sei se da parte da polícia ou da parte do pessoal do movimento, então Maninha achou melhor eu ficar, e o garoto sempre está a me rodear, é amigo, nada de histórias, ele não conta histórias, sabe que elas não podem me fazer melhorar, mas ele vem, vem mergulhado no silêncio, assim como vem vai, mas entendemos bem um ao outro, basta o olhar, às vezes quero desviar os olhos, afastar  o pensamento, sinto então que me acompanha, não me deixa, acho que um dia ele vai escrever minha agonia, sei o que é um câncer, não tenho câncer mas sei o que é, o garoto é capaz de descrever um câncer, toda a dor capaz de fazer um homem se contorcer até não poder mais, a grande agonia, sei que ele é capaz de falar disso, sei que ele é também capaz de descrever a minha dor, então olho os olhos dele mais uma vez, olhos que não perguntam, daí vejo que ele pode dizer o que não dá pra dizer, aquilo mais do lado de dentro, aquilo que não existe palavra pra representar, mas vem a mãe chamar o garoto, ele vai com ela, é uma simples doméstica, não tem instrução como o filho, tão inteligente, interessado em estudo, em livros; fico comigo, a TV lá nas alturas, a casa vazia, de novo notícias, depois histórias de pessoas felizes, pessoas que vivem num mundo cor de rosa, olho por cima do muro da pequena varanda, já anoitece, homens voltam do trabalho, outros vão, mulheres passam de um lado a outro, aumentam as pessoas que passam no lado de fora; Jéferson surge e tenta me colocar um cigarro na boca, fuma, vai fazer bem, fala, fuma, você vai relaxar, dou uma tragada mas não sinto nada de bom, apenas a fumaceira a me invadir os pulmões, a me dar enjoo, vou trazer pó pra você, vou buscar, você vai ser mais feliz, sei que Jeferson não pode fazer isso, o pó é caro e ele não tem nem pra si próprio, o sofrimento que ele sente não é meu, é dele, pensa como seria se estivesse no meu lugar, mas Jéferson sabe muito pouco de mim; Zilda vai passando, muitos falam das aventuras dessa mulher, mas é difícil dizer se é verdade o que falam sobre ela, quero acreditar, quero que tudo seja verdade mais pelo prazer de imaginar o que ela faz na cama com os homens, comigo sei que nunca vai acontecer de verdade, mas quem sabe na imaginação vai ser até melhor, ela vem andando devagar, da varanda vejo que sorri, sei que é tarde mas consigo ver seu rosto, aparência leve, sem preocupação, vira na minha direção, fala alguma coisa que não consigo escutar, lança um beijo, sorri, dá adeus e segue, quero retribuir, mas minhas mãos pesam, meu corpo treme, solto um guincho, acho que quase um relincho, mas ela não houve, não pode ouvir, já está longe, mergulhada nas sombras, ou sob as luzes de outros postes, a saia comprida esconde suas pernas, Zilda vai à praia sozinha, dizem, olha por trás dos óculos escuros todos os homens, não deixa que eles percebam, quando algum é de seu gosto sempre consegue um jeito pra ele vir até ela, não sei o  que conversam, nem como começa o assunto, mas ela puxa algum fio, vai tecendo, como aquela história de uma tal de Penélope, só que não espera, não precisa esperar, o fio é a conversa que vai enredando o homem, todos os homens, e de repente eles não podem mais se soltar, alguém comentou perto de mim um dia desses que ela gosta de pescar em silêncio, isso mesmo, pescar, é o que gosta mais de fazer, os homens sempre mordem a isca, ficam do lado dela, se falam ela pede silêncio, trepar no silêncio das horas, foi assim que alguém contou, assim é mais gostoso, ela lança os braços, não é um abraço de serpente, é um abraço de satisfação, depois deixa o pano que lhe envolve o corpo escorregar pro lado, deixa aparecer o que tem por baixo, então tudo se dá da melhor forma possível, sempre da melhor forma possível, fico a pensar no modo como ela faz pras outras pessoas que estão na praia não perceberem que ela vai tão à vontade, que está nua nas mãos de quem lhe dá prazer, nos braços daquele a quem resolveu se soltar, prefiro sempre pensar que tudo acontece favorável a ela, assim Zilda vai sentindo prazer, vai dando prazer aos homens, cada dia num ponto da praia, ela não cobra nada, não faz por dinheiro, mas por gosto, como é bom uma mulher que faz por gosto, um amigo por gosto, namorado por gosto, sexo por gosto, marido por gosto, nada em troca, apenas o gosto, o sexo como um doce, como um sorvete, Zilda já desapareceu faz tempo, já deve estar em casa, tomou banho, Zilda nua debaixo do chuveiro, Zilda em casa à vontade, como na praia, como nas mãos de seus amantes; já vai acho que dez da noite, o tempo esfriou, ainda estou na varanda, alguém me empurra pra dentro, alguém faz a cadeira andar três metros, mas não tem ninguém perto, Maninha ainda não chegou, Maninha ainda longe, Maria Claudia também, às vezes não chegam, não sei o que fazem as duas tão tarde por aí, antes tinha a loja de CDs, Maninha sempre perto, mas a loja de CDs fechou, a prefeitura disse que era ilegal; o vento alisa minha pele, vou fazer de conta que são os dedos de Zilda, ela voltou, ninguém pôde dar por ela, somente eu e Zilda, voltou e faz carinho nos meus braços, nos pelos dos meus braços, bem de leve; mas vem Zé Rufino pra atrapalhar, mais um do movimento, parece ser legal ele, todos parecem ser legais desde que seus interesses sejam os primeiros, Zé Rufino traz o sorriso nos lábios, mas é sorriso de Judas, pergunta quer que empurre pra dentro?, o tempo esfriou, vai pegar um resfriado, e cá pra nós, trouxe da boa pra você, o que a vida pode nos dar melhor que isso?, ele me leva pra dentro, coloca sobre a mesa a carreira branca, o papel laminado, o corpo da caneta, me empurra pra bem perto da mesa, põe uma das pontas da caneta quase dentro do meu nariz, funga , garoto, funga, você ta aí sozinho o dia inteiro, a noite inteira, funga, funga pra ter companhia, vejo Maninha surgir, ela vem toda iluminada, parece Nossa Senhora, tem a companhia de Maria Cláudia, elas vêm na minha direção, querem me beijar, as duas, mas elas param pelo caminho e se abraçam, se beijam, escuto então o som vindo da loja de CDs, escuto as músicas que Maninha dizia colocar pra mim, mas vira de costas, dá o braço a Maria Claudia e as duas vão embora, tudo vai se apagando, desaparecendo, a música que vem da loja de CDs vai diminuindo de volume, a loja de CDs faz tempo que fechou, ouço de novo o Zé Rufino, Chico, funga, funga de novo, Chico, vou trazer todo dia, você, Chico, vai ser o homem mais feliz de todos.

(Texto para New Yorker, abril de 2012) 

segunda-feira, junho 24, 2013

Se houvesse sol - 10

O táxi subiu uma estrada onde acredito jamais ter passado.

“Esse endereço que a senhora me deu fica na estrada que leva ao clube Costa Brava,” disse o motorista.

Saltei numa rua estreita de muitas casas em ambos os lados, mas eram casas distantes umas da outras. Algumas, quase cinematográficas. Nos anos 1960, a região fora muito badalada, as residências pertenciam a milionários que resolveram viver estilo de vida norte-americano.

Leila estava à minha espera, beijou-me mostrando imensa alegria. O local era guarnecido por homens de terno, via-se que se comunicavam entre si porque usavam fones e microfones embutidos. Subimos dois lances de escada e atravessamos um pequeno jardim. Leila mostrou-me a paisagem. Embora fosse tarde da noite, era possível apreciar a montanha de um lado e, de outro, um trecho do mar. Um vento moderado tornava o ambiente bastante fresco. Entramos num dos salões, havia estofados que rodeavam o local, algumas pessoas estavam sentadas, enquanto outras bebiam junto ao sofisticado bar. Alguém avisou que a música dali em diante seria ao vivo. Já se ouviam os primeiros acordes da pequena banda de jazz.

“Há também a parte descoberta, onde fica o terraço; a piscina está localizada atrás.”

Apesar de a iluminação ser baixa, permitia reparar homens e mulheres, jovens na maioria. Leila sorria para as pessoas. Todos cumprimentavam-me como se eu fosse velha conhecida. Comecei a gostar do ambiente.

“Fique à vontade, não vou poder dar atenção a você o tempo todo, mas sei que não vai se incomodar”, falou e foi buscar uma bebida. Trouxe dois copos altos, continham tequila misturada com frutas, a bebida da moda. “Aqui há gente para todos os gostos”, continuou, “para dançar, conversar, namorar etc., basta procurar.”

“Leila, é sua amiga?”, perguntou um homem de meia idade.

“Sim, esta é Célia”, falou Leila apontando-me e virando-se a ele.

“Muito prazer, Leonardo.”

“O prazer é todo meu.”

“Vamos para a varanda”, convidou.

Enquanto atravessávamos a sala em direção à parte descoberta da casa, Leila desapareceu entre seus amigos. Leonardo começou a falar sobre o trabalho que fazia na TV. Um amigo parou diante dele e lhe ofereceu cigarro. Não era um cigarro comum, mas cigarro de maconha. Ele aceitou de bom grado, acendeu, deu dois tragos, fez que ia devolver mas lembrou-se de mim. Estendeu a mão e me ofereceu. Não recusei, tomei o estreito cigarro entre meus dedos, sorvi-o também duas vezes e o devolvi ao primeiro homem, que esperava.

“Maravilhado com a senhorita”, falou e pediu licença.

“Figuraça esse aí que trouxe a cannabis”, sorriu,

Passei a ouvir tudo o que Leonardo contava, mas não revelei minha identidade nem disse em que trabalhava. Ele teve a educação de não fazer perguntas a respeito. A conversa entrou pela filosofia. Começou a contar sobre uma peça recente que abordava a vida de Spinoza.

“Já ouviu falar de Spinoza?”, perguntou.

“Já, mas não sou especialista em filosofia”, respondi.

“Não digo Spinoza, o filósofo, mas a peça.”

“Não, também não estou a par.”

“Maravilhosa, não deixe de assistir, é o melhor papel do Zé Augusto. Por falar nele, ficou de passar por aqui.”

“A peça trata do Spinoza filósofo?”, perguntei.

“Oh, sim, e trata de filosofia, mas de forma amena. Sabe como são as peças de hoje, todas voltadas para o grande público. Caso se encene um assunto difícil, o fiasco é total. Não é possível montar espetáculos apenas para eruditos.”

“O que mais se destaca nessa montagem?”, comecei a mostrar curiosidade.

“A atuação do Zé Augusto. Isso é ponto pacífico.”

“O que mais?”, insisti.

“A Holanda da época, a tolerância religiosa, embora os judeus do período não tenham tolerado Spinoza.”

“A direção consegue recriar a Holanda de Spinoza, no palco?”

“Consegue, mas não é uma superprodução teatral, há na montagem muita sugestão. E é um mundo que já preconiza o futuro, o presente que vivemos, compreende?”

“Compreendo.”

“Não deixe de ir, é espetacular.”

Uma mulher loura veio sentar-se junto a nós.

“Esta é Tânia”, apresentou a amiga. “Como você se chama mesmo?”

“Célia, muito prazer”, disse e me apresentei à amiga.

“Tânia, estava falando a ela sobre Spinoza, a peça teatral, você também não a achou ótima?”

“Ah, Spinoza, sim, muito boa.”

“E o Zé Augusto, já chegou?”

“Parece que telefonou, está chegando, todos querem congratulá-lo.”

“Então”, Leonardo voltou-se para mim, “é uma unanimidade.”

“Léo”, chamou Tânia, “a Mércia também está para chegar, e disse que vem como atua na peça.”

“Mas ela, no espetáculo, aparece o tempo todo nua!”, arregalou os olhos depois da exclamação.

“Portanto, há de se esperar que ela venha pelada”, Tânia fez fisionomia de que dizia algo óbvio.

“Mas, como, nua? Vai vir de Copacabana até aqui sem roupa alguma?”, Leonardo mostrava-se estupefato.

“Pelada, sim. Mércia gosta de aparecer, você já sabe, não?”

“Gosta, gosta muito, e não é a primeira vez que ela aparece nua numa festa. No começo da carreira fez a mesma coisa.”

“O que há de mais numa mulher nua?”, interrompi a estupefação de ambos.

“Na verdade, nada”, disse o homem, “você tem toda a razão. Não há nada de extraordinário numa mulher nua, tanto mais quando se trata da Mércia”, proferiu Leonardo.

“Spinoza é aquele da ética, você sabe?”, interferiu Tânia.

“A ética é sobre o que as pessoas mais falam na filosofia dele, mas Spinoza escreveu também sobre outras coisas muito interessantes”, falei.

“Você entende de filosofia?”, perguntou a mulher.

Naquele momento a música tornou-se extremamente barulhenta lá dentro, as pessoas começaram a gritar, festejavam algo, alguma coisa que parecia imperdível. Tanto Leonardo como Tânia levantaram-se sem pedir licença e correram para o salão. Fiquei sem dar a minha resposta sobre Spinoza, o filósofo. Mas, na verdade, eles não estavam interessados nisso.

Como todos se deslocaram para o salão onde estavam os músicos, senti curiosidade e acompanhei as demais pessoas. Muitos convidados estavam à minha frente, mas com jeitinho consegui aproximar-me. Todos começaram a gritar o nome do ator, o homem que atuava na peça Spinoza. Ao mesmo tempo, apareceu uma mulher inteiramente nua, cobria a sua cabeça um chapéu enorme. Seu corpo estava quase todo prateado, e onde deveriam estar seus pelos púbicos havia o núcleo de um cometa pintado em dourado, a cauda do corpo celeste subia até um dos seios da atriz. Mércia não era alta, mas um sapato de salto muito avantajado aumentava-lhe a estatura.

Alguém, de repente, bradou vivas ao ator; depois, à atriz. Espocaram-se rolhas de garrafas de espumante. Zé Augusto e Mércia foram carregados e atirados ao ar. Em relação à atriz, o cuidado era redobrado, pois não lhe queriam estragar a fantasia.

Quando a exaltação amainou, formaram-se grupos. O ator e a atriz principais ficaram no centro dos dois grupos constituídos por outros atores e convidados. Alguém gritou:

“Um brinde a Zé Augusto, um brinde a Mércia, um brinde a Spinoza, um brinde à ética!” Todos gritaram com entusiasmo e beberam mais um copo de champanha.

 Depois da algazarra, as pessoas ainda disputaram durante algum tempo a permanência próxima a Zé Augusto e à Mércia. Voltei ao terraço, encontrei Leila durante curto espaço de tempo com quem troquei algumas palavras. A seguir reapareceu Leonardo, que procurou reatar o assunto que conversava comigo antes da chegada do casal de atores.

A tequila voltou a circular, misturada ou pura, vinha servida pelos garçons. Meu recente amigo pegou dois copos e ofereceu-me um sem que eu pedisse. Brindamos novamente os dois e bebemos alguns goles.

Enfim, perguntou qual era o meu ramo de trabalho. Eu não quis falar sobre o que fazia, disse apenas que vendia a jornais alguns artigos sobre cultura.

“Interessante”, respondeu, “mas onde saem seus artigos?”

Já tinha preparada a resposta. Como tinha uma amiga na Folha de São Paulo, chutei que publicava alguma coisa no caderno “Ilustrada”, e que conseguira colocar uma matéria também na Folha, mas na edição dominical. De início senti algum receio, porque, como se tratava de profissional de TV, provavelmente era pessoa que lia todos os jornais. Qual não foi minha surpresa ao ouvir dele:

“Ultimamente não tenho olhos para jornais Temos tanto trabalho na TV, que chego em casa exausto.”

Silenciei. Pude constatar a minha teoria de que a TV jamais levará as pessoas a algum lugar. A conversa com Leonardo mostrou-se improdutiva. Se ao menos ele desejasse conversar sobre assuntos fugazes, seria bem melhor. Mas seu constante esforço para aparentar erudição provocava efeito contrário. Cada vez que começava a falar sobre algum autor, ou mesmo sobre determinada montagem teatral, apenas observações medíocres saíam de sua boca. Quando a pequena banda voltou a tocar, levantei-me e pedi licença. Aleguei que queria estar próxima dos músicos. O homem ficou para trás e se perdeu no meio de seus próprios amigos. Que também não se mostravam muito diferentes dele.

Reparei, no salão principal, um jovem que me olhava. Depois de alguns minutos, ao observar que lhe correspondera o olhar, veio apresentar-se.

“Meu nome é Jaime, como você se chama?”, quis saber. Sua fisionomia demonstrava real interesse.

“Célia, muito prazer.”

Ele tomou-me pelo ombro e me conduziu ao meio do salão. As pessoas dançavam de rosto colado, como se fosse possível dançar um blues. Mas o acompanhei e não deixei de tirar proveito de sua afetividade.

“Vim a essa festa, mas conheço poucas pessoas”, falou bem junto do meu ouvido, temendo que o som da música impedisse-me de ouvi-lo.

“Não me diga que você é um penetra.”

“Penetra? Nem pensar. Além de eles serem muito vigilantes com a entrada de convidados, eu morreria de vergonha caso fosse descoberto.”

Ri de suas palavras. Jaime acompanhou-me na risada.

“Você sabe poemas de Fernando Pessoa?”, perguntou-me de repente.

“Alguns, mas não sou tão boa de memória. Leio Pessoa, mas olhando nos livros."

“Tenho um livro dele aqui comigo”, falou fingindo que tiraria o livro de um dos bolsos. “Assim que sairmos deste salão, vamos até a varanda. Lá a gente toma alguma coisa e lê alguns poemas”, sugeriu.

A música cessou por alguns instantes, tempo suficiente para ele me tomar por um dos braços e arrastar-me para a varanda. Tirou o exemplar do bolso, abriu-o e procurou o primeiro poema:

Os Deuses vendem quando dão.
Compraze a glória com desgraça.
Ai dos infelizes, porque são
Só o que passa!

Depois de enfatizar e parecer se deleitar com a última estrofe, partiu para o poema seguinte:

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.

Tentava dar à voz um tipo de contracanto à música que vinha lá de dentro. Como não queria gritar, criava aquele efeito teatral em que o ator apenas simula a voz num tom mais alto.

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.

Aí, mencionou:

Há metafísica bastante em não pensar em nada...

“O poeta da verdadeira metafísica, Alberto Caeiro.”

Eu ouvia-o com interesse. O rapaz declamava bem os poemas. Em algum momento, reparei que outras pessoas também prestavam atenção nele. Quando acabou, houve quem o aplaudisse.

“É o maior poeta da nossa língua”, exclamou Jaime.

“Mais do que Camões?”, arrisquei.

“Camões é de outro tempo, é de um mundo que não mais existe, compará-lo com qualquer outro só traz dificuldades.”

“Então você admite a grandiosidade do poeta seiscentista”, afirmei.

“Admito, é claro, e posso dizer que você faz boas observações.”

“Estou no senso comum”, sorri para ele.

Reparei que me olhava de modo enternecedor, depois falou:

“Você é muito sensível, além disso, é bonita.”

“É o que todos falam.”

“Não acredita?”, fez cara de curioso.

“Acredito. Tanto é verdade que os homens estão sempre a me desejar.”

Riu alto e logo após silenciou, parecia ouvir algo distante.

“Podíamos ir para um lugar mais tranquilo, conversaríamos melhor e mais à vontade”, falou.

“Não agora, tenho uma amiga, acho que seria desfeita caso eu meu retirasse.”

“Não, por favor, não sugiro que deixemos a festa agora, mas que nos encontremos qualquer dia desses para podermos ler Pessoa de modo mais intenso.”

“Ah, sim, compreendo, acho ótimo.”

Passava um garçom com várias taças de tequila, Jaime pegou duas e me ofereceu uma.

“Há um lugar mais silenciosa, outro terraço, vamos até lá”, fez mais uma sugestão.

“Outro terraço?”

“Outro, a casa é cheia de surpresas”, acrescentou.

“Será que outras pessoas já não estão lá?”

“Não creio, é um lugar afastado, entre as árvores que ficam além da piscina.”

Apesar de já saber até onde iam suas intenções, aceitei o convite. Mas ao chegarmos lá, uma surpresa, havia uma garota nua nos braços de um rapaz. Eles fizeram de conta que não nos viram e pareceram não se incomodar com a nossa presença. Jaime olhou além dos muros da casa e mostrou um ponto perdido no mar, fácil de apreciar do local. Depois não demorou a beijar-me. Acabei por aceitar parte de seu carinho. Digo parte porque também começou a me querer tirar a roupa. Segurei suas mãos e dei-lhe um beijo. Fechei os olhos abraçada a ele, sem deixar que avançasse.

“Sabe, há certo exercício que me excita bastante”, falou, mantendo-se agarrado a mim.

“Exercício?”, estava eu a demonstrar interesse.

“É um tipo que ioga que provoca excitação.”

“Como é?”, ainda não o soltara.

“Você precisa deitar e usar a imaginação. Primeiro movimenta energias pelo corpo, depois a concentra nos órgãos sexuais. Caso a pessoa leve essa prática a sério, é capaz de chegar ao orgasmo apenas por meio do pensamento.”

“Jura?”

“Juro. E há quem consiga na primeira vez.”

“Se isso for verdade, todos os problemas estão resolvidos”, arrisquei.

“Você acha? Por quê?”

“Ninguém mais estará sozinho, e já não se precisará de um 'outro'. Em contrapartida, viveremos um constante tipo de morte. Estaremos sempre deitados a gozar com a imaginação.”

“Se você se satisfaz assim, por que, neste caso, precisará na verdade de um 'outro'?”

“Não falo neste caso”, afirmei, “mas em todos os casos. A humanidade entrará em decadência. Será como uma droga que nos contagiará a todos.”

“Não seja tão trágica, trata-se apenas de um exercício sexual. Você não que treinar? Com o jeito que você tem, é capaz de logo conseguir.”

“Você será o meu instrutor?”

“Sim”, respondeu com convicção.

“Só não me peça para tirar a roupa, por favor.”

“Não, não precisa. Basta que você se deite e siga o que vou sussurrar no seu ouvido.”

A partir daí se seguiu um fato engraçadíssimo. A garota nua que estava havia longo tempo a namorar o rapaz ouviu as palavras de Jaime, aproximou-se e perguntou se também poderia participar da experiência. Ele não se surpreendeu, respondeu que sim.

“Conheço um lugar mais reservado onde poderemos ficar sem que ninguém nos incomode”, falou a mulher. “Desculpe pela intromissão e por não me ter apresentado a vocês, me chamo Ana e o nome dele é João.”

“Muito prazer, Célia”, depois Jaime falou seu nome.

“Vamos, então?”, convidou-nos e se pôs a caminho por uma trilha entre as árvores do jardim.

Nos fundo, onde o terreno beirava um muro, deparamo-nos com uma minúscula casa. A porta não estava trancada, e parecia que ela sabia disso. Ana girou a maçaneta e convidou-nos a entrar. Era um quarto rústico. Numa das extremidades, vi a pequena cozinha, um fogão antigo e um botijão de gás. Ao lado, ficava o banheiro. No quarto, apenas uma cama de casal e um armário antigo completavam o ambiente.  Ela mesma tocou no interruptor, uma luz fraca acendeu-se.

“Não se preocupe, este lugar era a moradia de um casal que faz muito tempo partiu para o interior de Minas, eram caseiros aqui”, informou Ana.

Logo em seguida deitou-se na cama e  pediu a Jaime que começasse a experiência.

“Célia, não vai participar também?”

Olhei a mulher nua sobre a cama, olhei para Jaime, fiz um gesto de indefinição.

“Deite ao lado dela.”

O homem que estivera com ela até ali, dirigiu-se a nós e disse: “vou até o salão pegar alguma coisa para beber, volto já”, abriu a porta e desapareceu na escuridão que envolvia o jardim.

O rapaz começou o seu trabalho. De início, fez que relaxássemos até quase não sentirmos mais o corpo. Depois, instigou-nos a movimentar nossas energias internas. Pedia que juntássemos essas energias sobre a cabeça e começássemos a movê-las da cabeça aos pés, cada vez de modo mais rápido. Confesso que tais movimentos, caso feitos com seriedade, deixará alguns rastros no corpo, como sensações diversas. Portanto, ao direcionar toda essa energia a pontos específicos do corpo, foi-me possível sentir de modo mais intenso sua atuação. Ela tornou-se tanto maior, quando dirigida aos órgãos genitais. Daí em diante não consegui avançar, mas Ana começou a ter reações estranhas.

“Agora vocês estão sentindo muita excitação. Em pouco tempo estarão transbordantes de prazer, serão capazes de atingir o orgasmo sem ninguém tocar seus corpos. Ouçam, é como um copo que se vai pouco a pouco enchendo”, continuava Jaime muito sério, “no ponto em que começa a transbordar, é o momento do gozo. Vocês já estão quase lá. Pensem em algo capaz de provocar tesão em vocês. Cada um de nós sabe de algo ou de alguma situação que nos provoca o princípio do prazer, pensem nisso, concentrem-se, então faltará pouco. Agora, o copo já se encontra quase cheio, vocês estão chegando lá, em alguns segundos atingirão o ponto máximo." Nesse momento, Ana começou a gritar desesperada.

“Estou gozando, estou gozando, acho que não preciso mais de homem algum, nunca mais, é o gozo máximo, nunca senti nada igual, estou gozando, gozando, é interminável, por favor, me deixem sozinha, saiam”, ordenava apenas com a voz, sem mexer o corpo, “saiam”.

Levantei-me e corri dali. Não esperei por Jaime. Atravessei o jardim, passei pela piscina e encontrei um garçom com a bandeja cheia de taças de champanha. Peguei uma delas e caminhei até o outro extremo do salão. A banda ainda tocava, mas naquele momento bossa nova. Encontrei Leila, beijava na boca um amigo. Ela sorriu para mim. Caminhei até a varanda, reparei que algumas pessoas já deixavam a festa, eram quatro da manhã.

“Alguém vai para Ipanema?”, perguntou um homem de terno.

“Eu”, gritei de longe. Corri e entrei no automóvel. No banco traseiro havia mais duas mulheres. Uma delas era a atriz que chegara nua. Reconheci-a pela pintura sobre o corpo, mas vestia uma camisa comprida sobre a pele. Sorriu e cumprimentou-me. O motorista deu a partida.

sexta-feira, junho 21, 2013

Se houvesse sol - 9

Como Daniel fora garçom em M., tive a ideia de procurar todos os cursos que formavam este tipo de profissional na cidade. Ele poderia estar aperfeiçoando-se para trabalhar num restaurante de luxo. Descobri dois cursos, o do Senac e o da Faetec. A primeira instituição pertencia ao comércio e tinha várias unidades pela cidade. Fui a uma delas e me informei sobre os locais onde o curso funcionava, os horários e a duração. A recepcionista disse-me que o curso já havia começado e naquele período não mais se aceitavam inscrições. Provavelmente pensou que era eu a candidata. Agradeci e deixei o local. Nos dias que se seguiram fui às unidades de ensino e treinamento no horário da entrada. Vi diversos jovens e até mesmo pessoas de meia idade que frequentavam o curso, mas não identifiquei entre eles a face de Daniel. Na semana seguinte fui à Faetec. Procedi da mesma forma, como fizera no Senac, mas minhas tentativas de encontrar o rapaz foram vãs.

Na quinta à noite Marisa telefonou-me. Minha amiga de adolescência conseguira alguns ingressos para um espetáculo teatral. Era uma produção de grandes proporções, sucesso em todo mundo havia vários anos. A montagem brasileira fora muito bem recebida pela crítica, tratava-se de O violonista no telhado. Marcamos encontro com uma hora de antecedência no Shopping próximo ao teatro.

Logo ao chegar avistei minha amiga numa das mesas de um café, ela estava acompanhada de outra mulher.

“Oi, como vai?”, pareceu surpreender-se ao avistar-me, “esta é Jaqueline, estudou comigo e também é assistente social, só que já se aposentou.”

“Muito prazer, Célia”, aproximei-me e trocamos beijos. Era uma mulher jovial, difícil definir sua idade. Caso Marisa não tivesse pronunciado a palavra “aposentada”, diria que estava na casa dos quarenta.

“Como vai? Marisa falou muito de você, inclusive mostrou o seu livro.”

“Marisa acha que minha profissão é a mais charmosa do mundo, não sabe ela o grande aborrecimento que é escrever.”

“Ah, imagino”, sentou no mesmo lugar em que estivera antes da minha chegada. Marisa apontou-me a cadeira ao seu lado.

“Não temos muito tempo, mas podemos conversar melhor depois do espetáculo”, falou enquanto tentava chamar o garçom.

Pedi um café expresso. Minha amiga e Jaqueline tomavam cappuccinos. Não passou muito tempo tivemos de correr para o teatro.

Não se pode dizer que O violonista no telhado foi um bom ou mal espetáculo, tudo depende do que deseja ver quem vai ao teatro. Como se tratava de superprodução, havia todo um aparato técnico que sobressaía mais do que os atores. Quando frequento teatro, procuro geralmente peças menores, onde seja possível observar mais atentamente a representação. A calcular pelo tempo em que perduraram os aplausos após o término da encenação, todos apreciaram muito o espetáculo. Minhas amigas não foram exceção. Talvez a questão mais pungente que a história proporcionou, pelo menos para mim, foi a questão da separação e do exílio. Os pais já estão velhos e todos são obrigados a partir do lugar onde sempre viveram. Mas não vão juntos. A maioria dos filhos já cresceu. Cada um toma um destino diferente. O que acontecerá depois, já sabemos. A história do século 20 com suas duas guerras mundiais, holocausto e mais os conflitos localizados, incluindo aí a guerra fria. Ainda todos à flor da pele.

Ao sair do teatro, procuramos um restaurante no Leblon. Caso sério essa procura, porque todos, principalmente depois das onze da noite, estão sempre lotados. Mais difícil é encontrar um bom restaurante que, ao mesmo tempo, seja convidativo ao bate-papo. O Rio de Janeiro é muito barulhento.

Apesar disso, encontramos. Era um restaurante fechado, com porta de madeira e pegadores dourados. O maître veio-nos dar boas vindas. Estávamos na avenida Ataulfo de Paiva.

Jaqueline, a amiga de Marisa, logo se aproximou de mim. Muito simpática, tomou iniciativa da conversa. E, para o nosso bem, não falou de trabalho. Às vezes há quem pensa que os escritores gostam de falar de livros o tempo todo. A mulher jovial logo entendeu que comigo não era assim. Pôs-se a conversar sobre os homens, o que despertavam nela e como preferia namorá-los. A conversa tornou-se, a partir daí, muito interessante. Marisa ouvia, mas não partilhava das opiniões. De repente, falou:

“Sou casada com o mesmo homem faz trinta e três anos, não posso participar desta conversa.”

Jaqueline rebateu: “nada a ver, você pode ser casada com o mesmo homem e namorá-lo com ele como se ele fosse todos os homens do mundo.”

“Como?” Assustou-se a minha amiga, “não entendi.”

O garçom trouxe as bebidas, vinho e uma caipivodca de lima da pérsia. Fizemos o brinde, mas o assunto não esmoreceu.

“Vamos lá, Jake, quero que você me conte como posso namorar todos os homens do mundo e o meu marido ao mesmo tempo. Isso tudo sem o trair?”, Marisa insistia.

Depois de repousar o copo e alinhar o guardanapo de pano, Jaqueline voltou o rosto para a amiga e falou:

“Em primeiro lugar, as pessoas mudam. Você já pensou nisso?” Sem esperar resposta, continuou: “você e seu marido não são as mesmas pessoas de trinta anos atrás, não são as mesmas nem de cinco anos para cá. Portanto, é como se você estivesse experimentado vários homens e ele várias mulheres. Mas ainda há mais outra coisa”, interrompeu para levar a taça de vinho aos lábios, depois passou um pouco da pasta de atum do couvert numa torrada, comeu delicadamente, pousou a faca com a ponta no prato e continuou: “escute só, para isso dar certo vai depender de vocês dois. Nós acabamos de sair do teatro, não? Então, falo de representação. Pode-se representar estando a dois, não? Você e seu marido podem assumir cada dia, ou cada semana, um papel diferente. Façam de conta que são outra pessoa, finjam que se conheceram naquele momento e estão se entregando a um feérico sexo casual. Tenho uma amiga que passou agir assim, conseguiu convencer o marido sobre essa necessidade, o casamento a partir de então melhorou muito, eles até estudam o papel que vão representar. Ela diz que sente o maior tesão. Assim, conhece muitos outros homens além do marido, e ele conhece outras mulheres."

“Você é muito didática”, intrometi-me. Jake caiu na gargalhada.

“Eu, didática? Sou a mulher mais confusa que existe.”

“Teoricamente sua explicação é perfeita, mas para isso acontecer, vai depender...”, falou Marisa.

“Vai depender de você.”

“Jake, você já foi casada alguma vez?”, perguntou-lhe a amiga como se não conhecesse sua vida particular.

“Marisa, você sabe que nunca me casei.”

“Então, falar é fácil, queria ver se você fosse casada, será que iria conseguir colocar em prática essa teoria?”

“Marisa, você consegue, sim, tenho amigas que conseguem e são muito felizes ao lado do marido.”

“Eu sou feliz também, mesmo com o homem de há trinta e três anos”, assegurou.

“Então, por que mesmo estamos conversando sobre isso?”, perguntou a explanadora do assunto.

Foi a vez de nós três juntas cairmos na gargalhada. Houve gente que, de outras mesas, olhou em nossa direção.

O jantar transcorreu num clima de bastante animação. Deixamos o restaurante depois de uma da madrugada.


Jaqueline não demorou a me telefonar. Era uma quarta-feira, queria marcar um encontro comigo, pedia que a esperasse na mesma tarde do telefonema, perguntou seu eu tinha algum compromisso e se tinha hora para voltar para casa.

“Compromissos sempre tenho, mas posso abrir mão, depende da situação.”

“Acho que você vai adorar, posso contar quando chegar?”

Marcamos às cinco da tarde no Armazém do, na Visconde de Pirajá.

Ela chegou primeiro. Algumas pessoas tomavam café, outras conversavam, na parte mais interna da cafeteria um senhor lia o jornal.

“Oi, Célia, que bom ver você!”, exclamou e me beijou.

“Quais as novidades?”

“Tudo bem. Sabe por que quis encontrar você hoje? Um amigo vai lançar um livro. Vai ser numa livraria aqui perto. Não marquei com você diretamente lá porque queria perguntar primeiro se você aceita ir. Como você é uma pessoa conhecida, pode ser que não  queira participar, não é mesmo?”

“Vou, sim, conheço a livraria que você está falando, lá acontecem lançamentos de livros quase sempre. Num dia desses eu estava lá e até comprei o lançamento; Mas era um livro sobre políticas ambientais, acredita?”

“Pois é, Célia, esse de hoje é uma tese de doutorado que meu amigo defendeu com muito sucesso, ele conseguiu publicá-la em livro.”

A garçonete trouxe os nossos cafés, Jake pedira também um brioche.

“Qual o assunto do livro de seu amigo?”

“Ele estudou antropologia, mas acho que fala de história e até de literatura.”

“Deve ser bom, então.”

“É uma pessoa muito elogiada, escreve para o jornal O Globo como colaborador.”

Tomei o café e fiquei olhando a rua através do vidro da cafeteria. Era um tipo de bistrô. Via as pessoas apressadas que caminhavam na calçada, reparei um jovem e achei que fosse Daniel, mas ao olhar com mais cuidado pude certificar-me de que não era ele. Engraçado, pensei, não falei a pessoa alguma sobre o meu ex-namoradinho desde que cheguei à cidade. Enquanto isso, Jake contava-me alguma coisa. Eu fazia de conta que a escutava, mas meu pensamento fixou-se no jovem que me escapara sem deixar vestígios.

Sempre achei que Daniel nada poderia me proporcionar, mas eu sabia a origem daquela fixação. Era um modo de a vida ter mais emoção, de ter sentido. Sabia que quando ele aparecesse logo se tornaria uma pessoa comum. O ser humano tem esse dom de criar falsas expectativas. Elas é que dão combustível para se continuar vivendo.

“Vamos, então?”, perguntou Jake tirando-me do mundo da fantasia. Ainda bem que não desconfiou dos meus devaneios. Pagamos a conta e nos pusemos a andar pela Visconde de Pirajá, que aquela hora já apresentava um bonito anoitecer.

A livraria da Travessa tornou-se ponto de encontro entre muitos intelectuais da zona sul carioca. Embora a cidade já não viva o tempo mítico em que escritores frequentavam livrarias, a Travessa de Ipanema ainda é capaz de atrair alguns, mesmo que apenas para apreciar as bancadas iniciais, onde se expõem, sobretudo, livros de literatura. Logo ao entrar, encontrei R. C., conhecido autor de biografias e de livros sobre movimentos culturais que se desenvolveram durante o século 20. Ele reconheceu-me. Veio abraçar-me e beijar, falou sobre mim à pessoa que estava com ele, uma mulher bem mais jovem. Ela também ofereceu o rosto. Com seu ar bonachão, ele apontou-me como autora brilhante, que era mais conhecida no exterior do que no Brasil, uma grande injustiça que faziam comigo, porque nosso país não tinha o dom de conhecer os verdadeiros valores da casa.

“Será lisonja, ou você troça sobre mim?”

“Margarida, sua maneira de falar infla-me o espírito, não haveria de troçar você.”

Ambos rimos alto, um livreiro amigo dele se aproximou. R. C. começou um breve mas impetuoso discurso sobre as letras nacionais, revelando-o ao homem, que pareceu mais interessado em mim do que na minha obra. Esta o escritor enumerava pormenorizadamente, demonstrando estar a par de todos os meus livros e artigos.

“Margarida, eu recebo a New Yorker, não perco um texto seu.”

Ele entendeu que minha amiga Jake chamava-me. Fiz menção que tinha de ir ao fundo da loja, mas, antes, ainda falou:

“Antes de você ir embora, quero deixar um convite.”

“Ok, volto para conversarmos mais.”

Jake levou-me até seu amigo, que autografava os livros sobre uma mesa comprida. Ele sorriu muito ao vê-la. Apesar da grande quantidade de gente que circulava no local, pude ouvi-lo:

“Obrigado por ter vindo”, levantou-se e a beijou.

Jake olhou para onde eu estava. “Quero apresentar uma amiga”, falou.

Fui até ela e o amigo beijou-me também. Jake nada falou sobre mim, acho que por delicadeza não quis fazer nenhum tipo de alarde sobre minha pessoa.

Os garçons passavam com pequenos canapés, vinho e espumante. Um deles parou à minha frente. Peguei uma taça de vinho branco e agradeci. Outro, logo atrás, ofereceu-me um dos vários tipos de salgados. Segurei um guardanapo e, com certa dificuldade, usei a mão livre para tirar um da bandeja.

Ficamos na livraria por pelo menos uma hora, acabamos conversando com várias pessoas. Duas ou três reconheceram-me e vieram ficar junto a mim. Havia um repórter da Folha de São Paulo, ele aproximou-se e pediu que lhe concedesse uma entrevista. Reparei que duas ou três pessoas tentavam de modo discreto ouvir o que eu falava. Mas recusei de modo delicado, disse que a personalidade ali não era eu, mas sim o autor que lançava o livro. Perguntou minha opinião sobre o livro.

“Por favor, vamos conversar num outro dia”, o repórter ouviu e levou, satisfeito, o número do meu telefone.

“Célia, quero dizer uma coisa”, era Jake que me levava para um dos cantos perto do setor onde ficavam os livros de filosofia, “há dois amigos meus aqui, estão nos convidando para jantar, você aceita?”

Tentei declinar, mas minha amiga parecia tão feliz com minha companhia, que acabei dizendo: “vou, mas me deixa sair sozinha, muita gente aqui já me reconheceu.”

No lado de fora, ela desculpou-se: “Célia, não sabia que tantas pessoas iriam incomodar você, desculpe o transtorno, fui eu a responsável.”

“Nada de desculpas, Jake. Vim porque quis.”

“Célia, em relação a esse meu amigo”, falava enquanto ele fora buscar o automóvel, “nada sabe sobre você nem é intelectual.”

“Ótimo, então podemos falar bastantes besteiras, ninguém há de nada nos cobrar”, afirmei e apertei-lhe mais intensamente o braço.

O homem que parecia ser o mais velho chamava-se Ariel, o outro Marlon. Confesso que não me passou pela cabeça homens com mentalidade tão superficial como desses dois. Começaram mal. Não tiveram a delicadeza de perguntara onde queríamos jantar. Parece que já estava tudo acertado. Ariel dirigiu até o Jardim Botânico e parou num restaurante da rua Pacheco Leão. Descemos enquanto ele estacionava. Os dois sentaram de frente a nós duas, não esperaram que escolhêssemos bebidas nem comida, fizeram seus pedidos. Acabamos aceitando o que sugeriram. Tomaram chope; Jaqueline quis caipivodca; só para contrariar, pedi uma minigarrafa de espumante francês. Quando o garçom explodiu a rolha, eles fizeram tamanha algazarra. No começo gostei da brincadeira, mas depois comecei a perceber que nos convidaram não porque Jake era amiga deles, mas porque tinham outras intenções. Neste dia também fiquei decepcionada com minha recente amiga. Ela deixou-se levar pelas manobras dos rapazes e não se portou com a mesma presença de espírito que demonstrara momentos antes e também na noite em que saíramos com Marisa, após o espetáculo teatral.

“Você conhece a cidade?”, perguntou Ariel enquanto Jake perdia-se numa conversa com Marlon.

“Sim, nasci e morei aqui durante muito tempo.”

“Pensei que você fosse do interior.”

“Não, morei em M. Mas de um tempo para cá voltei ao Rio."

“Está gostando da cidade?”

“Sempre gostei, nunca deixei de visitá-la ao menos uma vez em cada dois meses.”

“Visitá-la?”, surpreendeu-se.

“A cidade”, esclareci.

“Hum, sabia que já namorei uma mulher do interior”, falou.

“Interior?”, queria sabe qual o sentido da palavra para ele.

“De Cordeiro, já ouviu falar?”

“Na mulher?”, falei de propósito, já que ele contava seus sucessos.

“Não, na cidade.”

“Cordeiro? Ah, sim, mas nunca estive lá.”

“Eu estive, e por dois meses, trabalhei numa época com instalações de antenas parabólicas, tive de ficar na cidade a serviço da empresa.”

“E o que tem lá?”

“Em Cordeiro? Absolutamente, nada. Ou melhor, arranjei a tal namorada, serviu para que eu me distraísse.”

“Você arranjou mulher par se distrair?”, alfinetei.

“Bem, não falo isso com a intenção de diminuir as mulheres, mas no interior é realmente duro de se viver.”

“Você fala em interior, mas isso não existe.”

“Não existe interior?”, piscou os olhos e franziu a testa em sinal de que não acreditava no que eu dissera. “Marlon, ela diz que não existe interior hoje em dia”, riu quando acabou de falar. O amigo não lhe deu importância, estava melhor na conversa com Jakie. “Não existe interior”, riu mais uma vez. “Você poderia explicar essa questão?”, perguntou-me.

“Não há questão alguma. Hoje é possível chegar a esses lugres rapidamente. Além disso há meios de comunicação que nos permitem estar com as pessoas que residem nessas cidades quase que diariamente. Muitos desses lugares, que você chama de interior,” ressaltei, “são desenvolvidos, até mais do que aqui na capital.”

“Vou contar para você o que é interior, ouça”, insistia ele. “Fui fazer uma excursão com essa namorada que arranjei por lá e me perdi, tivemos de passar a noite numa montanha, pensei que não mais voltaria. Mais uma coisa, se você não se assustar com o que vou falar. Ela estava nua.”

“Nua, como assim?”

Ariel notou que eu me surpreendi e continuou. “Nua, pelada. Saímos para subir uma montanha, nem era muito longe, nossa intenção na verdade era namorar. A moça me levou para dentro de um mato e depois não conseguia encontrar o caminho de volta.”

“Mas você não acabou de falar que ela estava nua?”

“Em um determinado lugar, começamos a namorar, tirei toda a sua roupa. Então ela inventou de nos embrenharmos na mata ainda mais. Aí aconteceu. Nos perdemos. Eu, preocupado como voltaríamos, e ela querendo encontrar suas roupas.”

“Você não acha que ela tinha razão de querer encontrar suas roupas?”, interrompi.

“O problema é que começou a ficar de noite e não conseguíamos nenhuma das duas coisas.”

Tive de rir da história. Mas para a decepção dele não perguntei o desfecho. Marlon deixou por instantes a conversa com Jakie e perguntou se eu gostava de jogar boliche. Respondi que nunca tivera a experiência. Convidou a nós duas para jogar, havia um clube em São Conrado.

Tive de rir da proposta. “São Conrado? Você está parecendo personagem de Nelson Rodrigues?”

“Nelson Rodrigues?”, acho que não conhecia o autor.

“Um jornalista que resolveu escrever textos para teatro com a intenção de ganhar dinheiro”, respondi sarcástica. Mas ele não entendeu. Jaqueline percebeu a brincadeira.

No final, Ariel insistiu para que eu saísse com ele, queria namorar-me de qualquer maneira. E naquela mesma noite.

Jaqueline, muito sem graça, pediu-me mil desculpas quando fomos juntas ao toalete.

“Célia, deve ser porque ele já bebeu demais. Ariel não é assim, pode acreditar.”

“Acredito, Jake. Mas peça desculpas a eles. Vou embora daqui.” Deixei duas notas de cinquenta com ela. Não queria que pagassem a minha parte.

“Mas Célia, vai ser uma grande desfeita.”

“Desfeita? Você não imagina o que ele me propôs.”

“Não somos crianças, os homens são assim, eles sempre querem comer as mulheres”, falou com naturalidade.

“Já saí com vários tipos de homem, Jake. Não é porque sou escritora, uma intelectual, é porque uma proposta colocada desse modo é um desaforo. Também gosto de trepar, mas o cara tem de ter um pouco de sutileza. Você me convidou para o lançamento de um livro. Fui , gostei, encontrei alguns amigos na livraria. Mas esses caras passam do limite.”

Despedi-me e parti. Os dois não chegaram a perceber quando deixei o restaurante.

No sábado recebi um telefonema de Leila, a atriz que conhecera na praia. Convidou-me, como me falara na ocasião, para uma festa. Em relação a ela posso dizer que não me surpreenderia, já conhecia o terreno onde iria pisar, e ela foi sincera:

“Você sabe como são as festas no nosso meio, não? Quando muitos artistas se juntam, se não é espetáculo é uma zona.”