Você, Chico, vai ser o homem mais feliz de todos
Estados Unidos suspendem ajuda militar à Coreia do Norte, morte de jovem reabre discussão sobre homofobia no Chile, Chaves volta à Venezuela após radioterapia em Cuba, emboscada contra comboio da OTAN no Afeganistão mata 20, cinco policiais são mortos em Ciudad Juarez, no México, OEA abre investigação sobre morte de Vladimir Herzog; as notícias na TV, sempre as notícias, e tem gente que pergunta por que assisto TV, por que o interesse por tantas notícias, pensam que sou idiota; a casa do Grapete fica do outro lado da rua, na verdade não é bem uma casa, mas uma construção irregular, incompleta, faz anos está no tijolo, Grapete vez ou outra aparece, o cabelo desgrenhado, cara de bêbado, dizem que já veio alguém da família pra levar ele pro hospital mas não conseguiu, Grapete deve ter bons argumentos, Grapete tem alguém pra pensar nele, Grapete tem quem diz ser da família dele; Odair passa de bicicleta, faz um aceno, sei que Odair tem pena de mim, mas não preciso da pena dele, estou sentado torto na cadeira, os pés cruzados, Odair sabe que não sinto os pés, sabe que minhas pernas são só figuração, ele pensa que sou meio retardado, que não entendo as coisas, nesse ponto Odair está errado, posso não falar, não articular palavras, mas entendo tudo, entendo e penso como ele, até melhor do que ele, Odair ganha dinheiro do movimento e pensa que sou bobo; a TV de novo, grande barulheira na sala a tarde inteira, a TV sempre ligada, e eu olhando a rua, se é que se pode dizer que isso é rua, que isso é bairro, isso é a favela, isso é a Malvina; dona Isaura passa, grita meu nome e também acena, dona Isaura já quis se passar por minha mãe, dona Isaura vinha me trazer comida, dona Isaura também é uma pessoa que tem pena de mim; ela diz Chico, vem comer um pirão, trouxe pra você, como vou comer pirão, d. Isaura?, tenho vontade de dizer mas não consigo, ela precisava trazer o pirão num prato, deixar no meu colo junto com uma colher, assim como o pirão, colher a colher, deixando sem querer o gotejo me lambuzar a camisa, como todo o pirão, dona Isaura grita olá, Chico, cadê a Maninha, dona Isaura não espera resposta, dobra o aceno e se vai; vem o menino da pipa, olha o céu, procura vento, procura pipas, vá estudar, Anderson, essa gente de hoje gosta de dar nomes difíceis aos filho, vá estudar, Anderson, quero gritar, mas só um grunhido, só a Maninha entende meus grunhidos, lá vai Anderson a olhar sempre o céu, cuidado com o chão, Anderson, cuidado com o chão, tu olha demais pro céu, se há alguma coisa lá?, sou eu quem sei?; Maninha saiu de manhã, Maninha ainda não voltou, Maninha talvez não volte, ou volte bem tarde, virá alguém pra empurrar a cadeira pra dentro, me deixar na sala, me por diante do aparelho de TV, depois irá embora, mas antes vai dizer nada de troça, Chico, nada de troça, vê, espera a Maninha, espera que a Maninha já vem, a Maninha ficou de cuidar de mim, cuida em troca da pensão do INSS, Maninha é legal, mas ela gosta mesmo é de mulher, no começo isso me incomodava, mas lá sei eu de mulher com mulher?, deixo as duas se esfregarem, elas pensam que eu não vejo, mas deixo as duas se agarrarem, a casa é pequena, Maninha geme, Maria Cláudia geme nos braços da Maninha, escuto esquecido na cadeira, mas finjo que não escuto, finjo que não vejo, Maninha tinha uma loja que vendia CDs, a loja ficava bem aqui do lado, mas o negócio não vingou, dizem que era ilegal, que a prefeitura não aprovou, mas onde fica a prefeitura pra ver as coisas daqui?, Maninha me olhava de perto, eu grunhia, ou esguichava a voz junto com uma gosma, ela vinha me acudir, mas Maninha e Maria Cláudia tiveram de fechar a loja de CDs, foram à vida, foram trabalhar noutro lugar, Maninha não fica mais aqui ao lado, ninguém fica ao lado, algum vizinho, alguém que passa dá um jeito na cadeira se desandei, me apruma, traz um copo d’água, já pra eu ir ao banheiro tenho de esperar Maninha voltar, quase não aguento, às vezes não aguento mesmo, ela volta e estou molhado, mal cheiroso, Maninha diz ainda não aprendeu, Chico, você não é mais criança, criança... não sou criança, não tenho pai, mas lembro dele, era quem me criava, quem cuidava de mim, mas sei que morreu, ninguém falou mas descobri, ele morreu, se tenho mãe?, todo mundo teve uma dia uma mãe, mas nunca vi, um dia ouvi alguém dizer, sempre escuto alguém dizer alguma coisa, ouvi que ela se foi quando nasci, quando descobriu o que eu era, o que eu seria dali pra frente, não teve coragem a minha mãe, mas não ponho culpa nela, vai ver teve razão, acho que as mães sempre têm razão; aqui perto tem um garoto, acho que ele tem futuro, ele não devia ter nascido aqui, não devia viver aqui, garoto muito inteligente, lê livro em dois dias, estuda, estuda muito, quero dizer a ele vá embora, não fique nesse lugar, aqui as pessoas não prestam, quem há de pensar em alguém?, só pobreza, pobreza e mais pobreza, os moradores com seu jeito de driblar a miséria, acho que se falasse como os outros eu não conseguiria dizer essa palavra, driblar, mas o garoto fica, vai à escola, volta e fica, quero perguntar por que voltou tão cedo, por que a escola hoje acabou ainda fresca a manhã, mas não consigo, sou bom só no pensar, falar que é bom nada, talvez melhor assim, fico quieto e não arranjo encrenca, mas o garoto sabe de mim, sabe tudo de mim, sei disso pelo seu jeito de me olhar, olha na certeza, deduz no faro, é algoz no pensamento, sabe que não posso falar mas não duvida, ele sabe o que eu penso, às vezes me pergunta alguma coisa, mexo então os olhos, respiro fundo, ele entende o que pensei, entende minha agonia, não vai com os outros meninos, não vai pro jogo de bola, às vezes algum deles quer me levar a cadeira até o campinho pra eu ver o jogo, mas ele não acompanha, antes Maninha deixava alguém me levar, mas surgiu alguma confusão, tiro pra lá, tiro pra cá, não sei se da parte da polícia ou da parte do pessoal do movimento, então Maninha achou melhor eu ficar, e o garoto sempre está a me rodear, é amigo, nada de histórias, ele não conta histórias, sabe que elas não podem me fazer melhorar, mas ele vem, vem mergulhado no silêncio, assim como vem vai, mas entendemos bem um ao outro, basta o olhar, às vezes quero desviar os olhos, afastar o pensamento, sinto então que me acompanha, não me deixa, acho que um dia ele vai escrever minha agonia, sei o que é um câncer, não tenho câncer mas sei o que é, o garoto é capaz de descrever um câncer, toda a dor capaz de fazer um homem se contorcer até não poder mais, a grande agonia, sei que ele é capaz de falar disso, sei que ele é também capaz de descrever a minha dor, então olho os olhos dele mais uma vez, olhos que não perguntam, daí vejo que ele pode dizer o que não dá pra dizer, aquilo mais do lado de dentro, aquilo que não existe palavra pra representar, mas vem a mãe chamar o garoto, ele vai com ela, é uma simples doméstica, não tem instrução como o filho, tão inteligente, interessado em estudo, em livros; fico comigo, a TV lá nas alturas, a casa vazia, de novo notícias, depois histórias de pessoas felizes, pessoas que vivem num mundo cor de rosa, olho por cima do muro da pequena varanda, já anoitece, homens voltam do trabalho, outros vão, mulheres passam de um lado a outro, aumentam as pessoas que passam no lado de fora; Jéferson surge e tenta me colocar um cigarro na boca, fuma, vai fazer bem, fala, fuma, você vai relaxar, dou uma tragada mas não sinto nada de bom, apenas a fumaceira a me invadir os pulmões, a me dar enjoo, vou trazer pó pra você, vou buscar, você vai ser mais feliz, sei que Jeferson não pode fazer isso, o pó é caro e ele não tem nem pra si próprio, o sofrimento que ele sente não é meu, é dele, pensa como seria se estivesse no meu lugar, mas Jéferson sabe muito pouco de mim; Zilda vai passando, muitos falam das aventuras dessa mulher, mas é difícil dizer se é verdade o que falam sobre ela, quero acreditar, quero que tudo seja verdade mais pelo prazer de imaginar o que ela faz na cama com os homens, comigo sei que nunca vai acontecer de verdade, mas quem sabe na imaginação vai ser até melhor, ela vem andando devagar, da varanda vejo que sorri, sei que é tarde mas consigo ver seu rosto, aparência leve, sem preocupação, vira na minha direção, fala alguma coisa que não consigo escutar, lança um beijo, sorri, dá adeus e segue, quero retribuir, mas minhas mãos pesam, meu corpo treme, solto um guincho, acho que quase um relincho, mas ela não houve, não pode ouvir, já está longe, mergulhada nas sombras, ou sob as luzes de outros postes, a saia comprida esconde suas pernas, Zilda vai à praia sozinha, dizem, olha por trás dos óculos escuros todos os homens, não deixa que eles percebam, quando algum é de seu gosto sempre consegue um jeito pra ele vir até ela, não sei o que conversam, nem como começa o assunto, mas ela puxa algum fio, vai tecendo, como aquela história de uma tal de Penélope, só que não espera, não precisa esperar, o fio é a conversa que vai enredando o homem, todos os homens, e de repente eles não podem mais se soltar, alguém comentou perto de mim um dia desses que ela gosta de pescar em silêncio, isso mesmo, pescar, é o que gosta mais de fazer, os homens sempre mordem a isca, ficam do lado dela, se falam ela pede silêncio, trepar no silêncio das horas, foi assim que alguém contou, assim é mais gostoso, ela lança os braços, não é um abraço de serpente, é um abraço de satisfação, depois deixa o pano que lhe envolve o corpo escorregar pro lado, deixa aparecer o que tem por baixo, então tudo se dá da melhor forma possível, sempre da melhor forma possível, fico a pensar no modo como ela faz pras outras pessoas que estão na praia não perceberem que ela vai tão à vontade, que está nua nas mãos de quem lhe dá prazer, nos braços daquele a quem resolveu se soltar, prefiro sempre pensar que tudo acontece favorável a ela, assim Zilda vai sentindo prazer, vai dando prazer aos homens, cada dia num ponto da praia, ela não cobra nada, não faz por dinheiro, mas por gosto, como é bom uma mulher que faz por gosto, um amigo por gosto, namorado por gosto, sexo por gosto, marido por gosto, nada em troca, apenas o gosto, o sexo como um doce, como um sorvete, Zilda já desapareceu faz tempo, já deve estar em casa, tomou banho, Zilda nua debaixo do chuveiro, Zilda em casa à vontade, como na praia, como nas mãos de seus amantes; já vai acho que dez da noite, o tempo esfriou, ainda estou na varanda, alguém me empurra pra dentro, alguém faz a cadeira andar três metros, mas não tem ninguém perto, Maninha ainda não chegou, Maninha ainda longe, Maria Claudia também, às vezes não chegam, não sei o que fazem as duas tão tarde por aí, antes tinha a loja de CDs, Maninha sempre perto, mas a loja de CDs fechou, a prefeitura disse que era ilegal; o vento alisa minha pele, vou fazer de conta que são os dedos de Zilda, ela voltou, ninguém pôde dar por ela, somente eu e Zilda, voltou e faz carinho nos meus braços, nos pelos dos meus braços, bem de leve; mas vem Zé Rufino pra atrapalhar, mais um do movimento, parece ser legal ele, todos parecem ser legais desde que seus interesses sejam os primeiros, Zé Rufino traz o sorriso nos lábios, mas é sorriso de Judas, pergunta quer que empurre pra dentro?, o tempo esfriou, vai pegar um resfriado, e cá pra nós, trouxe da boa pra você, o que a vida pode nos dar melhor que isso?, ele me leva pra dentro, coloca sobre a mesa a carreira branca, o papel laminado, o corpo da caneta, me empurra pra bem perto da mesa, põe uma das pontas da caneta quase dentro do meu nariz, funga , garoto, funga, você ta aí sozinho o dia inteiro, a noite inteira, funga, funga pra ter companhia, vejo Maninha surgir, ela vem toda iluminada, parece Nossa Senhora, tem a companhia de Maria Cláudia, elas vêm na minha direção, querem me beijar, as duas, mas elas param pelo caminho e se abraçam, se beijam, escuto então o som vindo da loja de CDs, escuto as músicas que Maninha dizia colocar pra mim, mas vira de costas, dá o braço a Maria Claudia e as duas vão embora, tudo vai se apagando, desaparecendo, a música que vem da loja de CDs vai diminuindo de volume, a loja de CDs faz tempo que fechou, ouço de novo o Zé Rufino, Chico, funga, funga de novo, Chico, vou trazer todo dia, você, Chico, vai ser o homem mais feliz de todos.
(Texto para New Yorker, abril de 2012)
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