terça-feira, junho 18, 2013

Se houvesse sol - 7

Dois dias depois, numa tarde, fui com um amigo ao restaurante Ilha Linda. Bebemos uma garrafa de vinho. Presenciei, numa mesa vizinha, cena interessante, que comprovava o que eu conversara dias antes com Daniel.

Uma mulher, que trazia uma criança num carrinho de bebê, jantava com o marido. Na mesa próxima, um homem e outra mulher bebiam e conversavam. A mulher que trazia a criança vestia a saia curtíssima, por isso cruzara as pernas como se tentasse ocultar a nudez, mas o que conseguia era insinuar-se ao homem da mesa vizinha. Este podia dirigir o olhar para as suas pernas sem ser notado pela mulher que o acompanhava. Ao perceber o assédio, a primeira mulher descobriu-se estimulada e descuidou-se de propósito.

O que levara eu e meu amigo naquele dia ao restaurante, no entanto, foi um fato que ele estava vivendo. João Carlos queria conquistar uma jovem, mas não estava conseguindo, por isso marcara um encontro comigo. Pensou que eu poderia ajudá-lo.

“Ela é muito bonita, o único problema é a idade: trinta anos mais jovem do que eu”, falou em meio a um gole de vinho.

“Se você coloca a idade como problema, acaba tornando a conquista difícil.”

“Como? Não entendi.”

Respirei fundo, olhei para o mar, fiz como me surpreendesse alguma visão distante. Entardecia. Sorri, voltei-me para ele e disse:

“Quando nós mesmos classificamos um fato como problema, ele tende a ficar mais difícil, e você está dizendo que a idade é o problema.”

“Geralmente são as pessoas que dizem isso, faz parte do senso comum.”

“As pessoas acham, as pessoas dizem... Você precisa também achar, precisa dizer?”

Foi a vez de ele sorrir.

“Célia, só você para enxergar essas coisas, nunca tinha pensado nisso.”

“Reflita e conclua se não tenho razão. Caso você mesmo crie o obstáculo, será mais um que você terá de superar.”

“Já entendi”, parecia ter feito a maior descoberta de todos os tempos, “caso eu não veja isso como obstáculo, ele não existe.”

“Não é bem assim. Escute. Pode ser que a cabecinha dessa sua adorada mulher também pense que a idade seja um problema. Caso você não toque no assunto, ela pouco a pouco deixará de pensar nisso.”

“Vou começar por aí, então.”

“Comece, mas vá devagar. Lembra o ditado?”

“Qual?”, fez cara de curioso.

“O que é do homem o bicho não come.”

“Quando eu era criança, costumava ouvir isso dos garotos da rua onde morava.”

“Você já a convidou para sair, almoçar ou jantar?”, perguntei.

“Já, mas ela não deu resposta. Envio sempre mensagens por e-mail, ela responde sobre tudo, menos sobre os meus convites.”

“Então não é bom insistir. Espere um pouco, modere as ações, deixe-a pensar que você arranjou outra. De repente, quem sabe, você telefona e diz que quer falar com ela pessoalmente. Nada é garantido, mas há sempre uma possibilidade?”

João Carlos parecia mais esperançoso. Movimentou a cabeça, pegou um cigarro e o acendeu. Continuou:

“Às vezes também pode não ser para mim.”

“O quê?”

“Essa mulher. Há tantas outras, algumas me telefonam quase todos os dias, e eu quero a que não me dá resposta.”

“A natureza humana é assim, procura-se sempre o que é mais difícil. Vou contar uma coisa para você. Sabe quando aqui em M. existia o bingo? Conheci uma mulher que trabalhava lá. Ela não tinha atrativo algum. Mas um amigo meu era louco por ela. Fez de tudo para conquistá-la. A mulher era complicada. Tinha três filhos. Dois eram do primeiro marido; o menor, do segundo. Nem tinha com quem deixar as crianças. Passava a noite inteira trabalhando, arrumada, maquiada, trocando dinheiro para os clientes enfiarem nas máquinas. O meu amigo cantou a mulher insistentemente. Até que um dia conseguiu. Ela o explorou por seis meses. Ele permitiu, dava tudo que ela pedia. No final, ela ainda lhe arrancou três mil. Depois, desapareceu. Ele ainda ficou a procurá-la durante um bom tempo. Hoje, sei que ela voltou à cidade. Ainda bem que ele já não mora em M. Se morasse, aposto que ainda estaria atrás dela.

“As pessoas procuram o sofrimento, você quer dizer.”

“É mais ou menos isso. Mas para que duas pessoas se aproximem é preciso que exista uma certa química.  Tive outro amigo que dizia que não existe mulher difícil, mas mulher mal cantada. Sou mulher, portanto suspeita para falar, mas não penso assim. Uma boa cantada ajuda, mas acredito que há pessoas que a gente não consegue conquistar.”

“Verdade?”

“Pelo menos naquele momento, entende? Por isso acho que às vezes é melhor esperar um pouco, fazer-se de difícil. Não existe uma fórmula para todos.”

Alguns dias depois fui a uma festa no hotel mais chique da cidade. Do salão, era possível apreciar toda a orla marítima. As luzes vistas ao longe pareciam cintilar; o reflexo da lua sobre o mar estendia uma esteira prateada.

Conheci naquela noite Joel, um engenheiro que dizia trabalhar na Petrobras. Ficamos conversando por longo tempo junto a uma das janelas. Ele bebia uísque; eu, uma taça de vinho banco.

O assunto era sobre a cidade, sua beleza, seus problemas e o caos político em que estava mergulhada. Não disse muita coisa, fiquei mais a ouvir as explanações do homem.

“Vocês têm uma cidade com ótima localização geográfica, mas a organização local não existe. Tudo é muito provinciano. Como pode a indústria petrolífera conviver com tamanho caos?”

“Você chegou aqui hoje?”, perguntei.

“Faz alguns meses.”

“Há muita razão nas suas palavras, mas sinceramente não conseguimos fazer de M. uma cidade melhor. Acho que a causa está nos políticos locais. Eles compram votos. Quem os elege é a população inculta e de baixa renda. Caso houvesse educação, esclarecimento, poderíamos ter uma administração melhor. Mas o que acontece aqui, ocorre em qualquer cidade brasileira, ou mesmo do mundo subdesenvolvido. O caos e a desorganização não são privilégios locais.”

“Ah, claro, o Brasil inteiro é assim.” Olhou e perguntou: “será que posso fumar aqui?”

Vi que outras pessoas fumavam, sobretudo as que estavam próximas ao terraço. Sugeri o local e fomos andando até a porta que dava acesso a uma espécie de varanda. Ali se podia sentir mais intenso o ar frio da noite. Passei por algumas pessoas e vi entre elas João Carlos, que piscou para mim, conversava com uma mulher. Mas acho que não era sobre quem falara dias atrás.

“Que vista maravilhosa, são poucos os lugares assim onde se pode fazer uma festa.” Acendeu o cigarro e permaneceu olhando em direção ao mar.

“Tenho um apartamento no Rio, no Jardim Botânico, é um bairro agradável. Mas a cidade é muito desconfortável. O tráfego é caótico; o calor, excessivo; e o aglomerado humano me causa desprazer. Se uma cidade como M. fosse mais organizada, seria melhor ficar por aqui. Você já pensou alguma vez em morar no Rio?”, perguntou de repente, enquanto soltava a fumaça do cigarro e levantava um pouco a cabeça.

“Sim, já até morei em Copacabana. Estou acostumada ao Rio. Mas, apesar dos problemas de M, quem vive como eu, vive melhor aqui. Tenho uma boa casa, vou à praia, caminho quase todos dias, vez ou outra tomo banho de mar. É um lugar em que se tem mais conforto.”

Os coquetéis costumam oferecer champanha aos convidados, bebida que sempre esteve na moda nesse tipo de evento. Meu recente amigo, no entanto, recusou. Perguntou ao garçom se serviria mais uísque. O rapaz respondeu que sim. Não demorou e logo já voltava com a bebida. Pela primeira vez em M., vi alguém trabalhar com presteza. Joel fez alguns movimentos circulares com o copo para misturar o gelo e, a seguir, saboreou o líquido dourado.

“Os eventos promovidos por essas empresas petrolíferas são enfadonhos. Sabe-se perfeitamente o que está por trás disso. Sempre querem benefícios do Governo e da Petrobras. A empresa que hoje patrocina o coquetel pertence a um conhecido senador.”

Ouvi suas palavras, mas mantive-me em silêncio. Uma colega estava do outro lado do vidro da varanda. Ao me ver, acenou. Ela conversava com um homem muito alto, que à primeira vista parecia estrangeiro.

“Quer dizer que aqui é um bom lugar para se frequentar a praia?”, Joel perguntou.

“Vez ou outra, sim”, respondi

“Em que você trabalha?”

Os homens e suas indelicadezas, não se deve perguntar isso a uma mulher. Certa vez estive no Japão, aprendi que lá não se pergunta a profissão das pessoas. Aqui no Brasil, não há quem tenha a mínima educação sobre isso. Quando dizemos em que trabalhamos, revelamos mais da metade de nossa vida privada.

“Será que pretendo me estabelecer também com uma empresa petrolífera?” perguntei com ironia. Homens como Joel desconfiam que a maior parte das mulheres presentes nesses eventos seja prostituta. “Escrevo para o New York Times”, completei.

O homem arregalou os olhos, seu rosto mostrava surpresa. Em frações de segundos, deve ter passado em mente tudo o que me falou.

“New York Times?”, repetiu.

“New York Times e a revista New Yorker", afirmei com determinação.

Pedi licença e fui conversar com minha amiga que estava do outro lado da varanda. Ela me apresentou seu momentâneo companheiro, um americano. Cumprimentei o homem e falei alguma coisa em inglês.

Joel descobriu o número do meu telefone e ligou naquela mesma noite. Eram duas da madrugada. Não queria esperar até o amanhecer para se desculpar. Acrescentou que fora indelicado. Disse que, além de mim, descobrira através de um amigo americano que era uma mulher a correspondente no Brasil do famoso diário nova-iorquino.

"Eles, lá em Nova York, gostam muito dos meus textos e sempre me pedem mais assiduidade com as colaborações", afirmei. "Mas não sou a correspondente. Se fosse, não poderia levar a vida que levo.

Convidou-me para jantar no dia seguinte, pediu que eu sugerisse o restaurante. Aceitei o convite e marcamos no restaurante do Sheraton.

Quando cheguei, ventava muito na orla marítima. Ele já se encontrava no local. Devido ao mau tempo, escolhera uma mesa na parte interna. Uma garrafa de uísque estava sobre a mesa. Levantou-se para o cumprimento, que me pareceu muito formal, mas depois me beijou.

“Estou encantado com sua presença, obrigado por ter aceitado o convite. Peço-lhe desculpas mais uma vez.”

Sorri e sentei à sua frente. O garçom ofereceu-me o cardápio. Pedi inicialmente uma garrafa de água mineral.

Joel começou a desfiar uma longa conversa. Contou em primeiro lugar o que o levara a M. Depois, porque optara pela engenharia de produção. Descreveu minuciosamente o que fazia e as empresas onde trabalhara antes de ingressar na Petrobras. Disse que não ficaria muito tempo na cidade e que jamais encontrara uma mulher tão bonita e agradável como eu. Fingi acreditar. A seguir, convidou-me para acompanhá-lo ao Rio quem sabe eu desejasse ficar algum tempo naquela cidade. Disse que morava sozinho, mas se caso eu não quisesse hospedar-me em seu apartamento, pagaria um bom hotel para mim na zona sul do Rio.

“Não sabia que se ganha tão bem na Petrobras”, ironizei.

“Não é pelo meu salário, sou uma pessoa de família rica, desculpe-me dizer isso.”

“Não, não precisa se desculpar, não há mal algum em ser rico.”

Quanto ao convite, desconversei. Como poderia aceitar a oferta de um homem com quem eu saía pela primeira vez? Achei que lhe faltava habilidade, era cedo para me fazer tal proposta. Além disso, o convite revelava o mesmo machismo que demonstrou quando quis saber sobre minha profissão, no dia do coquetel.

Depois de alguns segundos de silêncio, enquanto o garçom nos servia, perguntou:

“Sobre o que você escreve?”

“Assuntos gerais, política, além de crítica literária.”

Falou que literatura não era o seu forte, embora gostasse de poesia e de Guimarães Rosa. Citou corretamente alguns trechos de Grande Sertão. Sobre poesia, falou de João Cabral. Conhecia alguns poemas. Admirava o poeta por ser pernambucano e por ter mesclado poesia social com lirismo comedido, segundo suas palavras. Mas não mais voltou ao assunto. Durante boa parte da noite, contou sobre os lugares por onde viajara a trabalho. Descreveu o Oriente, como a China e a Coreia do Sul. Contou as agruras de estar sozinho em terra estrangeira, num quarto de hotel. Disse que procurava ler os jornais de língua inglesa, mas logo se esgotavam. Depois, quando veio a internet, houve alguma melhora, porque podia distrair-se a conversar com os amigos distantes.

Naquela noite, convidou-me a ir com ele a seu apartamento. Mas recusei. Disse que iria num outro dia. Deixou-me em casa e beijou-me na despedida. O uísque deixara-lhe um pouco triste.
 
Andei à procura de Daniel. Fui à praia muitos dias seguidos. Fui ao Shopping duas ou três tardes, algumas noites. Em nenhum desses lugares consegui encontrá-lo. Na certa, o rapaz que vi uma vez no shopping não era ele, mas alguém muito semelhante. Seu desaparecimento acabou por me entristecer.

Continuei saindo ora sozinha, ora acompanhada. Sempre procurava nos rostos jovens a face interrogativa de Daniel. Mas não mais o encontrei.

Duas semanas depois Joel telefonou. Marcamos mais um jantar.

“Recebi um convite para voltar ao Rio. Infelizmente terei de ir, não posso recusar a oferta que a empresa me fez”, falou.

No final da noite, aceitei acompanhá-lo ao seu apartamento. Logo que entramos, falou:

“Veja, você vai gostar, foi arrumado com tanto esmero, agora terei de voltar ao Rio.”

“Não o desmanche, é realmente muito bonito.”

O prédio em que morou durante os poucos meses em que trabalhou em M. ficava numa elevação. Do apartamento tinha-se duas vistas da cidade: uma voltada para o centro; a outra, para o mar. Nas paredes havia obras de arte, eram muito bonitas. Os móveis de sala, mesa e estofados, todos de muito bom gosto.

Abriu o bar e tirou uma garrafa de uísque. Perguntou se eu me servia. Disse que preferia vinho do porto. Joel não se abateu, foi ao outro compartimento e trouxe a garrafa. Dali para o amor, nossos passos foram poucos.

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