quinta-feira, junho 27, 2013

Se houvesse sol - 12

A carona me deixou em Ipanema, na praia, quase esquina com a Aníbal de Mendonça. Ao começar a atravessar a avenida, ouço meu nome. Volto ao passeio.

"Não lembra de mim?"

Era Mário, que eu conhecera na praia alguns dias atrás.

"Como ia esquecer? Você roubou o meu biquíni."

"Não quer ir lá em casa buscar", soltou o deboche.

"Fica para outra hora."

"Não vá embora assim tão rápido; é muita coincidência nos vermos de novo, tanto mais numa cidade com toda essa quantidade de gente."

"Estou cansada, preciso dormir um pouco."

"O que você faz na rua a essa hora da madrugada?"

"Não saí para levar o cachorro a passeio", sorri e o olhei de lado.

“Lógico que não, não vejo cão algum.”

"Gostei da frase de efeito."

"Você é escritora", falou.

"Eu?"

"Isso. Pesquisei sobre você."

"Oh, o Google, grande universidade."

"Você é do New York Times."

"O que é ser do New York Times? Bem, deixa pra lá."

"Você é uma mulher famosa e importante, também colabora com o New Yorker."

"Você quer conversar comigo, não? Então vamos para outro lugar. Não vou ficar aqui na rua, quase cinco da manhã."

"Outro lugar? Onde?"

"A um café, quero tomar um café", falei.

"Mas café a essa hora? Acho que não vamos encontrar."

"Caso você queira continuar ao meu lado, dou a sugestão, mas a conta fica com você."

"Qual a sugestão?"

"Café da manhã num desses hotéis", apontei ao Cesar Park, foi o único que consegui mostrar aquela hora.

Ele olhou, depois se voltou a mim.

"César Park?"

"Conhece outro? Não precisa ser tão luxuoso."

"Acho que sei", tomou-me um dos braços e atravessamos a Vieira Souto.

Entramos no Everest, na Prudente de Morais. Subimos um andar e encontramos o restaurante. Ainda era cedo. Um dos empregados veio nos avisar que tínhamos de esperar em torno de uma hora até começar o café da manhã.

"Não há problema", falei, "vamos aguardar.".

Sentamos numa mesa central. Em volta, alguns empregados preparavam as mesas com toalhas brancas e talheres. Um deles aproximou-se e perguntou se queríamos tomar um pouco do café que ele tinha para os empregados. Aceitei e agradeci. Esse pessoal que trabalha em hotel adora quando compartilhamos alguma coisa com eles. Significa que nós e eles não temos muitas diferenças. O rapaz trouxe duas xícaras, o bule com o café e um açucareiro.

"Você consegue tudo que quer, não é mesmo?" perguntou Mário.

"Quase tudo."

"Que bom, assim podemos conversar melhor. Fora os funcionários do hotel, não há ninguém aqui. E lá fora ainda está escuro."

"Sim, podemos conversar, mas estou exausta. Vim com você pelo café."

"Quer dizer que não veio por mim?"

"Bem, para ser sincera, estava louca para tomar café, você não imagina, depois de tudo que vivi essa noite. E esse aqui está ótimo. Esses rapazes fazem as coisas bem feitas quando é para eles."

"Caso você fosse escrever um episódio de romance, criaria uma cena assim, não é mesmo?"

"Por que a pergunta?"

"Você é uma escritora, mais conhecida no exterior do que aqui no Brasil. Onde poderia encontrar os seus livros?"

"Existem duas livrarias que os vendem aqui no Rio, depois escrevo o nome e endereço para você. Continue, por favor."

"Você tem cenas assim, à meia luz. Na madrugada. E seus personagens são cheios de vida."

"Você gostaria que eles estivessem mortos?", sorri, com fisionomia de deboche. Enquanto isso levei aos lábios mais um gole de café.

"Não quero dizer isso. É que eles parecem de verdade. Quero dizer, são de verdade."

"Todo escritor quer que seus personagens sejam verdadeiros. Caso você diga que eles não o são, o escritor ficará furioso com você. Lembra do Eça?"

"Eça?", pareceu não entender.

"Eça de Queirós."

"Ah, sim, já ouvi falar, acho que li alguma coisa dele no ensino médio."

"Machado de Assis escreveu uma crítica acusando seus personagens de marionetes. Eça de Queirós ficou furioso."

"É mesmo?", pareceu surpreso.

"Isso, mas já faz muito tempo. E então? A conversa começou com você falando sobre cenas criadas por mim...”

“Isso mesmo. Acho que nos seus livros há cenas assim, poderíamos dizer, cenas em semitons. São belas, talvez por isso você seja tão apreciada nos Estados Unidos.”

“Sou apreciada lá, porque foi onde comecei a publicar. Há também os portugueses, eles apreciam muito o que escrevo. Não nego que seja mais fácil fazer sucesso aqui quando se é reconhecida primeiro no exterior.”

Acabei de tomar o café. Olhei através do vidro de uma janela próxima e percebi que a noite se esvaía. Um empregado do hotel, em trajes de garçom, veio recolher o bule. “A senhora deseja mais alguma coisa?”

“Viemos para o café, agradecemos este que vocês trouxeram, acho que não vou esperar abrir o restaurante.”

“Dentro de vinte ou trinta minutos, o restaurante estará aberto, caso a senhora possa esperar...”

“Será que não há um pão ou uma torrada?”, perguntei.

“Há sim, vou trazer. A senhora aceita que seja pão ou torrada do café da manhã dos funcionários?”

“Aceito. As coisas feitas para vocês também são muito boas”, sorri.

“Vocês não devem saber, mas os funcionários têm direito a café da manhã, e também são muito exigentes.”

Meu acompanhante sorriu e disse depois que o homem retirou-se:

“Esses caras são muito espertinhos.”

“Você não acha que eles também têm direitos?”

“Mas por que não pagam o café com o salário deles?”

“Eles pagam, sim. Tudo que consomem está calculado na quantia que recebem. Nenhum patrão é bobo.”

“Como se deve fazer para se lançar um livro?”, perguntou Mário. Mudava o destino da conversa de novo.

“Vá a um lugar bem alto e o atire lá de cima.”

“Falo sério, quero lançar um livro.”

“E o que tem escrito?”

“Quer que eu mostre? Podemos marcar para nos encontrar.”

“Se você me quer ver mais vezes concordo, mas não me peça para ler originais.”

“Mas foi você que perguntou.”

“Perguntei no sentido de saber o gênero que você escreve.”

“Histórias policiais.”

“Bem inteligente você.”

“Por quê?”

“Trata-se de um gênero muito cultivado ultimamente e, ao mesmo tempo, requisitado pelas editoras.”

“É isso, mas não tenho editora.”

“Veja, caro amigo, você não tem editora; eu, muito mais tempo na estrada do que você, preciso escrever nos Estados Unidos da América para ser reconhecida no Brasil, preciso lançar meu primeiro livro em Portugal, e por uma editora desconhecida. Imagine.”

“Mas qual a fórmula?”

“Não há fórmulas. Escreva bastante, essa é a fórmula. Escreva bastante. Um dia, caso acredite realmente no que escreve, você conseguirá.”

“Foi assim que você conseguiu?”, quis ele saber.

“Mais ou menos. Ainda não consegui de todo, mas sei que daqui para frente não será difícil.”

“E há a internet”, falou com voz baixa, olhando como se estivesse distraído com um barulho lá na rua.

“É, há a internet. Antes, nada havia.”

“Você também escreve, ou escreveu, histórias eróticas”, apontou ainda sobre minha obra.

“As pessoas classificam assim. O que posso fazer? Escrevo sobre a vida. Vou contar um segredo, ouça. Você quer ser escritor de verdade, não? Então jamais esqueça o que vou dizer. Nós, escritores, na maioria das vezes, não temos ideia alguma sobre o que escrever. Muitos, por causa disso, se desesperam. Mas um verdadeiro escritor não deve desesperar-se. Caso aconteça com você de não ter ideias, crie dois personagens e os coloque a conversar, mesmo que a conversa seja sobre coisas banais. A partir disso, nascem grandes histórias.”

“Você é muito inteligente”, ele falou.

“Isso é um absurdo.”

“O quê? Achar você inteligente?”

“Não. É um absurdo eu estar aqui, perdendo tempo com você, e toda essa..."

O empregado do hotel voltou trazendo uma bandeja com vários pães abertos, um pote de manteiga e outro de geleia. Trouxe também talheres, renovou as xícaras e deixou um novo bule com café.

“Vamos comer”, falei e tomei nas mãos uma canoa de pão.

“Há mais verdade num pão com manteiga do que num romance de Shakespeare”, ele falou.

“Romance? Shakespeare não escreveu romance.”

“Não faz mal o que ele tenha escrito. Mas acho ainda assim o pão com manteiga mais verdadeiro.”

No final daquele café, o dia já ia claro. Interpelei Mário com seriedade.

“Você diz que quer ser escritor, não é verdade?”

“Verdade”, ainda engolia um último pedaço de pão.

“Escrever romances policiais, não?”

“Isso, policiais. Só não sei se os chamo de romance, novela ou contos.”

“Quanto a isso não importa, O que vale é que continue a escrever. Nunca pare, mesmo que você morra junto com os seus papéis.”

“Morrer com os meus papéis? Interessante a frase”, afirmou.

“Vou lhe dar uma missão. Quem sabe sirva de combustível para alguma história que você venha um dia contar. Preciso encontrar uma pessoa.” Falei então sobre Daniel. Pedi que o encontrasse para mim.”

“O que você vai me dar em troca?”, perguntou cheio de malícia.

“Quer pagamento pelo trabalho de detetive particular? O melhor trabalho é ter uma boa história. Mas talvez você mereça mais alguma coisa. Já que escreve histórias policiais, deve ter alguma habilidade.”

“Não precisa ser pagamento em dinheiro, você me entende, não?”

“Oh, como entendo! Vamos fazer assim. Caso você descubra algo que valha a pena, deixo que você me vista o biquíni.”

“Biquíni?”

“Isso mesmo. O que você me roubou”, levantei-me, beijei-lhe o rosto, deixei com ele meu cartão e desci as escadas em direção ao saguão do hotel.

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