sábado, dezembro 19, 2009

Sem as botas

Foi muito divertido. Só no final que fiquei um pouco apreensiva. Eu tinha de chegar nua naquele local, uma espécie de consultório. Uma porção de gente sentada: homens, mulheres, e uma recepcionista junto a uma pequena mesa observando alguns dados na tela do computador. Tinha de estar nua, mas na verdade não em pelo. Eu vestiria uma blusa curta, umbigo de fora, mas as mangas compridas; na mão esquerda, a bolsa segura por uma pequena alça; daí pra baixo a nudez, apenas a bota a cobrir de um ponto abaixo dos joelhos até os pés. Deveria agir com muita naturalidade, dirigir-me à recepcionista e dizer meu nome. Sabia que uma câmera se escondia em algum lugar da sala, mas não seria possível percebê-la. As pessoas, quaisquer que fossem suas reações, não deveriam me incomodar. Mesmo que falassem comigo, reparassem com palavras a minha nudez, ou mesmo me censurassem. Tinha de sentar após o aval da funcionária, pegar uma revista e aguardar a minha vez. Fora orientada a não dar conversa a pessoa alguma entre os que também aguardavam. Caso alguém inquirisse sobre qualquer assunto, deveria sorrir de modo delicado e nada comentar. Meu papel seria desconversar.

Percorri o corredor comprido do andar. Ao descobrir o número 508, empurrei a porta e entrei. Fiz o que estava previsto. A recepcionista perguntou meu nome, alguns dados e pediu que aguardasse apontando-me uma das poltronas. As pessoas estavam absortas. Algumas olhavam à tela da TV, outras liam, duas senhoras conversavam em voz baixa, uma jovem ao meu lado (devia ter uns quinze anos) lia um livro. Como todos se mantinham alheios, não quis esticar o braço até o console onde estavam as revistas, para não chamar a atenção. Fechei um pouco os olhos, concentrei-me nos exercícios costumeiros, inspirei vagarosa, ainda as pálpebras abaixadas. Foi quando um homem de meia idade me ofereceu uma revista. Agradeci e pus-me a folheá-la. Após cerca de dez minutos, a recepcionista chamou meu nome. Levantei-me e a acompanhei a uma antessala onde em um dos cantos um abajur lançava luz sutil, meio prata meio ouro. Ouvi mais uma vez a voz da mulher: “tire toda a roupa e me acompanhe”. Fiz o que mandou, permaneci apenas de botas. Num outro cômodo mais espaçoso e bem decorado fez-me sentar numa poltrona larga. “Fique à vontade”, falou mais uma vez. Olhei a mobília, os quadros, as luminárias, tudo se harmonizava. Mais alguns minutos e dessa vez um homem jovem veio me chamar. Acompanhei-o a um cômodo menor. Ficou atrás de uma mesa, como um médico a anotar o prontuário de um paciente. Mas não fez perguntas, disse apenas: “pode deitar”. Dirigi-me a um estofado branquíssimo. Só então percebi uma outra mulher. Estava vestidíssima, mas descalça. Aproximou-se, tirou-me as botas e vestiu-as. Levantou-se, olhou-se de perfil no espelho, segurou a bolsa com a mão direita e se foi. Ainda ouvi sua voz antes de fechar a porta: “obrigada”.

Depois alguém me cedeu sandálias de salto, fez que eu as calçasse, entregou-me a pequena bolsa como meus pertences e disse: “vai com Deus”.

Quando me vi do lado de fora, o céu já não estava tão escuro, tive de me apressar. Entrei no carro, dei a partida e desapareci no fim da rua.

Feliz natal, boas festas de fim de ano e muita saúde, realizações e fantasias em 2010.
Volto a publicar meus contos a partir do final de janeiro, quando esse blog completa quatro anos!
Beijos

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Londrina

Hoje, dou voz a uma amiga rica, que gosta de viajar, frequenta o jet set internacional e sempre está cercada de gente importante.

“Vou contar apenas um episódio que me aconteceu, porque falar sobre tudo seria preciso mais de um livro.

Tenho paixões por sapatos, de salto, já que sou baixinha: 1,66m. Em qualquer lugar, caso encontre uma loja dessa especialidade e nela alguns interessantes, não deixo de entrar e imediatamente comprar alguns pares. Sou atualmente casada com um empresário nórdico, digamos assim para não definir de quem falo. Tenho também uma outra paixão além dos sapatos; digo-a apenas agora: gosto de homens jovens. Tenho 39 anos, reconheço que os namorados mais interessantes são os que são cinco ou até mesmo dez anos mais jovens que eu. Outro dia estava almoçando num famoso restaurante, em Londres, quando vi numa das mesas vizinhas um jovem ator. Ele já me conhecia de uma recepção beneficente, inclusive contribuiu de modo generoso para uma de nossas causas, uma ONG ambientalista. Fui até à mesa em que conversava com os amigos e cumprimentei-o com alegria. Apresentou-me as pessoas que o rodeavam. Disse que precisava falar-lhe, mas não queria ferir a etiqueta. Marcamos um encontro no foyer do hotel, uma hora e meia mais tarde. Ainda aproveitei o curto espaço de tempo depois do almoço para atravessar a rua e mergulhar nos sonhos que os sapatos da loja em frente me instigavam. A vendedora me adorou, disse que já tinha lido alguma coisa sobre mim nos jornais ingleses. Comprei três pares. Depois voltei para o hotel. O ator já me esperava. Perguntou por minhas amigas, chegou a dizer que tenho uma espécie de séquito, isto é, moças e rapazes que sempre viajam comigo, para me servirem. Respondi-lhe que dera uma espécie de folga a eles, e que estavam a fazer compras pela cidade. Reparou que eu calçava sapato belíssimo, de salto.

‘Posso dizer uma coisa você?’, perguntou.

‘Claro.’

‘Já que estamos nos tornando amigos íntimos, adoro uma mulher sobre saltos, e tanto mais se eles forem bem altos.’

‘Que bom’, respondi, ‘assim você vai me amar cada vez mais.’

‘Há mais uma coisa.’

‘Qual?’, aprontei-me curiosa.

‘Gosto que elas apareçam sobre os saltos inteiramente nuas.’

Não deixei de rir, mas desviei a conversa. Uma mulher importante como eu não poderia demonstrar vulgaridade.

Despedi-me após uns trinta minutos. Falou que ainda ficaria na cidade por dois dias e deu-me o endereço de seu hotel.

Foi então que eu e as amigas que sempre me seguem nas viagens resolvemos aprontar. Contei a elas a paixão dele por mulheres nuas sobre saltos.

Fomos ao seu hotel por volta da uma da madrugada. Não foi difícil entrar e nos acomodarmos na suíte onde ele se hospedava.

Chegou sozinho, em torno das duas horas, ligeiramente bêbado. Achamos que assim seria melhor. Quando se atirou sobre a cama, havia muito que eu e as outras três estávamos em pelo. E sobre saltos.

Ao nos ver, saltou assustado, sentou-se sobre a cama, pegou a garrafa de uísque e bebeu no gargalo. Sorrimos, fazendo poses especiais. Andamos sobre nossos saltos, para que ele gozasse toda a sua paixão.

Quando quis nos agarrar, sinalizei que esperasse. Saímos as quatro. Nuinhas. E desaparecemos no corredor comprido do hotel.

Dias depois o vi na TV. Narrou o episódio. Disse, num programa noturno de entrevistas da BBC, que estava em seu quarto de hotel quando três (enganou-se na conta) mulheres nuas e sobre saltos invadiram o seu apartamento. O entrevistador perguntou se ele tinha exagerado na bebida naquela noite.

Respondeu:

‘Sempre exagero, mas nunca me aconteceu de aparecer três mulheres nuas ao mesmo tempo.’

Todos caíram na gargalhada.

Ainda bem que ele não contou sobre a noite seguinte. Tudo aconteceu da mesma forma. Só que fui sozinha. E não me dissolvi nas sombras.”

sábado, dezembro 05, 2009

A natureza é nua

Quando morei em Estâncias do Vale, uma pequena cidade no noroeste do Rio, tive experiências fascinantes com a natureza. Minha casa ficava no meio de um bosque onde se podiam apreciar árvores diversas e acolhedoras. Sempre achei que há árvores que não desejam a proximidade de seres humanos. Mas, ao menos em relação a mim, elas se mostraram receptivas a partir do momento em que me estabeleci ali e passei a admirá-las. Ainda bem que minha casa ficava fora do perímetro urbano, e a residência mais próxima a mais ou menos quinhentos metros. Podia sair à vontade em qualquer hora do dia ou mesmo da noite que me sentia protegida por toda aquela exuberante natureza. O canto dos pássaros, os sons de animais de que eu nem mesmo sabia o nome não me intimidavam. Nada ali poderia me fazer mal. À noite, gostava de caminhar até um platô de onde eu observava todas as estrelas possíveis. Não havia luzes por perto, logo era mais escuro o céu e as estrelas brilhavam como diamantes. Não me lembro de, antes, ter apreciado um céu assim.

Quando chegou o verão, um vento morno soprava ao entardecer. Após as dez da noite, já se podia sentir a pele sendo acariciada por um sudoeste que vinha para nos arrepiar. Aí esquecia-se todo o calor do dia que findara para se mergulhar numa noite fresca, confortável.

Certo dia estava excitada. Não sabia o motivo. Meu peito arfava, queria sair, irmanar-me a toda aquela vegetação, acariciar o tronco das árvores, sentir o pulsar de suas seivas, recostar num arbusto que se mostraria irmão de uma mulher que não estava ali para destruí-lo nem tramar nada de mal contra ele. Na mesma noite, notei que me faltava algo. Observei mais acurada a natureza; tentava descobrir nela o que faltava em mim. Passeei por vários caminhos; andei sobre a relva; resvalei em árvores que até então não havia reparado; descobri a areia fofa das margens de um pequeno regato que eu escutava mas ainda não estivera com ele. Depois olhei de novo para o céu. Toda a imensidão desembocava numa confluência que é difícil traduzir em palavras. As palavras às vezes matam a experiência. Subitamente descobri o que me fazia diferente: a natureza é nua! Isso mesmo, nada a cobre, a não ser sua própria pele: cascas, folhas, resíduos diversos, frutos e flores. Descobri um galho que se sobressaía em uma árvore maior. Galho à meia-altura, convidativo a aparar as roupas de uma mulher que se embebia de um suco embriagador. Tirei toda a roupa. Que não era muita. Pendurei-a no galho saliente.

Passei então a andar entre as árvores, a fazer meu passeio noturno como vim ao mundo, exatamente como todo aquele bosque, com plantas, árvores pequenas e grandes, vegetação diversa, e pequenos bichos.

A natureza expõe sua beleza através de seus próprios traços; os homens e as mulheres convencionaram criar traços que vão além daqueles com os quais nasceram.

Depois de algum tempo, já não precisava do galho em que pendurara minhas roupas na primeira e na segunda vez. Saía nua de casa.

Então veio a estação das chuvas. Quis sentir a tempestade sobre a própria pele, quis viver a experiência das árvores maiores, que estão expostas ao tempo, que não têm onde se esconderem. A água escorria sobre meus cabelos, sobre meu corpo inteiro, até atingir a terra que alimenta todos nós. Observava os galhos maiores, os troncos úmidos, as folhas que jaziam já sem vida à sua volta. Tudo era amor e silêncio, cheiro de terra e vida que se acumulava.

Quando voltou o sol, saí nua em plena luz do dia. Fui mais longe do que nunca. Quando voltava reparei sons vizinhos, vozes estranhas ao local, ruídos que destoavam à natureza. Fiquei à espreita, procurei um tronco maior onde me abrigar. Escalei-o sôfrega. Protegi-me nos galhos mais altos. Nunca tinha subido numa árvore, mas percebi que aquela me ajudava. Eles passaram. Eram dois e traziam uma espingarda. Demoraram a partir. Apenas ao anoitecer pude sair do meu esconderijo. Então, já não se ouvia som humano. Perto de casa, recostei-me numa árvore que sempre me acarinhava, contei-lhe o sucedido.

Dali em diante, fiquei muito tempo sem sair nua. Ao mesmo tempo, tentei descobrir quem eram aqueles homens. O que pude saber é que não moravam na cidade nem em nenhum arraial próximo.

Quando tudo se tranqüilizou novamente, me expus como antes, agora em pleno júbilo, talvez devido ao desejo reprimido.

Foi aí que me descobriste. Nua! E eu morrendo de vergonha. Te aproximaste e pediste que eu não temesse, que tu já me espiavas de longa data e também querias viver a mesma aventura. Fingi acreditar, embora exigisse que tapasses os olhos para que eu escapasse incólume. Prometeste naquele momento que não me farias mal algum e que só tocarias meu corpo com minha permissão. Fiz-me afável, talvez tenha semeado algum tipo de esperança em teu coração.

Mas ao amanhecer do dia seguinte, antes que voltasses – porque eu sabia que voltarias –, parti. Deixei para trás minhas árvores, minhas flores, meu céu nunca antes visto. Concluí que minha vida era um sonho; que aos homens e às mulheres não é possível a mesma vida das árvores.