terça-feira, maio 21, 2019

História de cabides

Olá, Rosa, como vai, tudo bem? Que bom falar com você. Vou bem. Estou escrevendo, sim. Sei, as pessoas estão acostumadas com muito texto, toda semana uma história, mas a vida de uma escritora é assim mesmo, nem sempre vai no mesmo ritmo. Às vezes dizem por que você não escreve um romance, desses bem extensos, quatrocentas páginas? Olhe, que engraçado, dizem até a quantidade de páginas!, como se fossem o editor e suas exigências de mercado. Aliás, os editores do nosso país não gostam de livros longos, a tal realidade cultural do país. Mas as pessoas desejam que a gente faça o que elas gostariam, tem muita gente que adora minhas histórias, então perguntam por que não escrevo o longo romance, com todos os ingredientes de que gostam, uma torta de morango, e que faça muito sucesso. É muito engraçado, certa vez, no lançamento de um de meus livros, muitos leitores queriam me contar uma pequena história, alguns faziam um rápido resumo e diziam, antes de me beijarem, olhe, não deixe de falar disso, vai ser um grande sucesso. Ah, sim, mas já passei dessa fase. Você sabe que escrevo por prazer. Não me cobro, não, está bom assim, as pessoas gostam do que escrevo, é uma espécie de escrita pequena, subversiva. Já pensou se me torno muito famosa? Aonde irei, aquele monte de jornalistas atrás, tanto mais se tratando dos assuntos meus. Está bom assim, não digo que já não quis escrever uma literatura maior, participar de círculos de debates nas universidades. Mas isso tudo é um grande aborrecimento. Professores universitários fazem pesquisas acadêmicas, não me dou muito bem com isso, sou espontânea e gosto de me divertir. Sim, acho que na vida privada eles leem minhas histórias. Não faz mal que este tipo de literatura não se torne arte maior, como os críticos literários afirmam, mas não ligo pra isso, não. Olhe, tenho uma história ótima, pra você que é minha amiga, vou mandar por e-mail, ok?, mas não mostra pra ninguém, espere sair primeiro. Sou louca?, sei, é porque distribuo histórias antes de serem publicadas. É só pra você, viu, que é minha amiga, minha leitora favorita. Está tudo bem, não? Vou, sim, está marcado, vamos ao teatro e depois àquele restaurante, sei, conversamos melhor. É mesmo?, a Sônia?, ela é fogo viu, não deixa passar ninguém, quem sabe até escrevo uma história sobre suas façanhas. Tudo bem, você me conta. Beijos, amiga, muitos beijos.

Oi, Rosa, conforme prometi, eis a história. Guarde, por favor, bem guardadinha, e aproveite, você vai gostar.

Histórias de cabides. Vejam se cabides podem servir de motivo para um conto. Mas foi muito engraçado. O namorado abriu a porta do apartamento e me deixou passar na frente. Não repare, por favor, sabe como é, homem que mora sozinho. Entrei, sorrindo como sempre, e perdoando-lhe alguma possível desordem. O que mais gostei foram alguns livros de poesia que encontrei sobre uma espécie de mesa de centro, eram poemas de Eucanaã Ferraz. Que ótimo, adoro os poemas dele. O namorado sorriu. Ele não sabia, até então, dos meus dotes para a poesia. Fique à vontade, disse e foi até à cozinha. Tenho umas comidinhas muito gostosas, você vai adorar. O namorado sempre solícito. Voltou com uns salgadinhos de forno, uma garrafa de suco, outra de água, tenho também cerveja e vinho, disse. Ótimo, falei. Saboreamos os salgados, os biscoitinhos, uma pasta com rodelinhas de pão francês, depois o vinho. Conversamos amenidades. Jamais se devem puxar assuntos sérios ou difíceis com um namorado, tudo deve seguir com leveza, o corpo de uma modelo, como se a vida fosse uma grande esteira de prazeres. O céu, olhe, como estão lindas, quantas as estrelas, ar fresco, falei. Um abraço romântico, nossos hálitos, corpos quentes, beijos e mais beijos. O vinho descendo na garrafa, alguns salgados desaparecendo, penetrando nossas bocas, o prazer do paladar. Como a vida é boa, simples, e acabamos querendo tantas coisas complicadas. James Joyce e Saul Bellow escreveram livros muito difíceis, plenos de angústia, acho que o passar do tempo, a solidão, o desejo reprimido, a premência da morte. A mão do namorado encostou às minhas coxas nuas, a saia curta convidava. O vinho tinha escrito a introdução. A vida fluía natural, era um rio, que não encontrava obstáculos. Aliás, outro dia li não sei onde, é possível se banhar duas vezes no mesmo rio sim; basta que ele seja lento e que tenhamos uma bicicleta veloz. Não sei por que lembrei a história do cabide. Minha amiga Tânia arranjou um namorado, de primeira ela aceitou o convite para ir à casa dele. Louca, a Tânia. Louca e feliz. Trajava um vestidinho branco, tinha renda e forro, bem passado, estava armadinho, não consigo imaginá-la que não vestida de bailarina. Sentou no sofazinho da saleta do namorado, era um apartamento pequeno, jeitosinho, um estúdio na verdade. O homem veio sorrateiro, sentou ao lado. Lembrou então que tinha na geladeira uma garrafa de champanhe. Ah, a champanhe!, afirmou minha amiga. Depois que ele abriu tudo correu bem, como o creme nas mãos de uma boa massoterapeuta. Minha amiga se soltou, imaginem. Uma delícia esse champanha. Por conta própria, avançou através da porta da pequena saleta. Oh, o quarto, que bom, a cama imensa. Deitou-se, inocente, chamou o homem pelo nome. Ele não demonstrou surpresa, apenas perguntou a roupa?, você vai ficar toda amarrotada. Você tem um cabide?, Tânia nua, nos braços do homem, o tal creme, mas já não o da massoterapeuta.

Meu namorado ficou a me admirar. Em que eu estava pensando? Quando éramos adolescentes perguntávamos ao namorado, caso o silêncio fosse longo, em que você está pensando? Outra coisa que acontecia naquela época era a dificuldade de se desligar o telefone quando nos despedíamos. Desligue você primeiro. Não, desligue você. Não, da outra vez fui eu quem desliguei, é a sua vez. O tempo passava acompanhando, curioso, nossa falta de assunto.

Depois de mais um beijo, bem quente, devastador, procurei minha taça de vinho sobre a mesa e tomei mais um gole. Posei-a a seguir sobre a mesa e sorri. Arrumei meus cabelos. Você gosta de sacanagem, não?, ri depois da minha pergunta. O namorado também sorriu. Pega então um cabide pra mim, vai.

terça-feira, maio 07, 2019

Ele fez o leme

Eu passava pela porta do prédio dele e via seus olhos a me acompanharem. Quem manda usar saia curta, tudo de fora?, eu me perguntava. Ele acha que estou querendo trepar, só pode ser. Aliás, todos os homens pensam que a gente está morrendo de tesão, que quer trepar, não há outro modo de refletir. Houve um que me pediu pra tirar uma foto, ele o fotógrafo, e eu a fotografada. Nua! Não, por favor, nada de fotos; mas acabei deixando o homem enquadrar meu grelo. Apenas o grelo, viu, ninguém precisa saber que é o meu. Quando vi na tela do computador, que coisa horrível! não sei como você pode admirar isso. Levou meu grelo no telefone, todo satisfeito. Será que contou ao admirador que me olha quando passo em frente ao tal prédio? É muito ruim ser falada, cair na boca dos homens como se fosse uma vagabunda. Disse ao meu fotógrafo não conta pra ninguém, você vai ter tudo que quiser. O homem vibrou. Tudo? Sim, tudo. Ele é calado, e ficou maravilhado com a foto, mais com a foto do que comigo.

Fui à praia no dia seguinte, uma camiseta sobre o biquíni, a bolsa a tiracolo e uma sandália de borracha. Dizem que o acaso não existe, mas encontrei na praia um homem que não via fazia tempos. E o lugar em que o conheci nada tinha a ver com o mar e as areias. Foi uma carona que aceitei há algum tempo. O cara me levou pra casa, melhor dizendo, pra perto de casa. Na pracinha do Alto, estacionou e pediu que eu ficasse um pouco, vamos conversar. Todos os homens têm muitas histórias, mesmo que não sejam bons leitores, mesmo que jamais tenham lido sequer um livro. Contou de suas idas e vindas por aquele caminho, se eu conhecia o fulano, a fulana, o beltrano, a beltrana. A cada nome de mulher eu sentia um arrepio. Mais uma que ele comeu! Quem sabe eu viraria assunto, história para enriquecer sua antologia. Essa bermudinha tua é bonita, ele disse. Olhei pra minha bermuda, uma bermuda preta, bem colante, sem atrativo algum, conclusão, no lugar da bermuda, minhas pernas, era o que ele admirava. É, falei, são boas sim. Ele sorriu. Passei minhas mãos sobre a bermuda, desci ambas até os joelhos. Bem, tenho de ir, sabe, não posso me atrasar, qualquer dia desses a gente se encontra. Lembrei-me então da Adalgisa. Virgem, que nome, mas minha amiga é bonita e tanto, diz que se chama Alda. Certa vez cavalgou sobre o homem, até aí nada de mais. Mas dentro de um automóvel, numa rua escura, ela de sainha sem calcinha. A própria me contou. Disse que sentiu um medo terrível, mas o desejo era maior. Tem de ser de camisinha, viu? O porta-luvas do automóvel estava cheio, pode escolher ele disse. Pode escolher, ele me disse. Pra que fui abrir o porta-luvas? Mania minha de apertar botões. O troço saltou na minha direção. O que eu ia fazer com tanta camisinha, e eu só de bermudinha...

A praia estava boa, calor, aquela quentura que dá no ventre, sei lá, sente-se um arrepio magnífico. O homem que me dera a carona a me olhar. Caramba, faz dois ou três anos, quem sabe quatro. Difícil esquecer essas coisas. Dentro d’água o bronzeador não sai não, é do bom, assegurou. Não tinha o porta-luvas; mas as camisinhas, sim. Como você pode ter camisinha no bolso de uma bermuda, dentro d’água, na Prainha. Bem, dá-se um jeito, nada de cavalgar, acho que nado cachorrinho. Ele fez o leme.