quarta-feira, dezembro 18, 2013

Gosto de histórias fortes, sabia?

Ele vinha dirigindo pela avenida que margeia o canal, eu caminhava pela calçada. Parou o carro, buzinou, abaixou o vidro e me chamou. Sorri, cumprimentei e dei um adeusinho. Ele é professor lá da escola. Às vezes conversamos durante os intervalos. Sabe que me separei. Contei às amigas sobre a separação e ele escutou.

Meu marido só me queria para o sexo. Podia ser qualquer hora do dia, eu podia estar em qualquer cômodo da casa, bastava ele me encontrar para me agarrar, me dar um tapa na bunda e começar a tirar a minha roupa. Dizia que estava louco para trepar comigo. Falando assim, sei que muitas mulheres vão sentir inveja, outras dirão que me estou fazendo de gostosa.

O professor fez o vidro elétrico subir e novamente ficou incógnito dentro do automóvel. Aquilo, não sei por que, me provocou certo arrepio. Acelerou e se foi.

Na semana seguinte, enquanto eu almoçava no restaurante que fica em frente à escola, encontrei ao acaso com ele. Logo seus olhos cruzaram com os meus. Moveu a cabeça num ligeiro cumprimento e foi ao buffet se servir. Na volta, perguntou se podia sentar à mesma mesa onde eu estava. Sorri em sinal de aprovação. Será que ele também só pensa em sexo?, perguntei silenciosa aos meus botões. Colocou a pasta na cadeira ao lado e começou a comer. Não demorou a me fazer uma pergunta. Quis saber se eu vou ao Rio ou a Niterói com alguma frequência.

Vou pouco para aqueles lados, apenas se houver grande necessidade. Tudo o que preciso tem por aqui.

Ah, sim, falou e pareceu surpreso.

Uma vez fui a Niterói para fazer umas fotos, lembrei e disse a ele.

Umas fotos, que legal, enquanto comia olhava o prato e, quando podia, a mim.

É, fiz um álbum de fotografias, sabe, nunca tive um.

Mas fotografias de que tipo?, quis saber.

De todos os tipos. Queria ter uma lembrança de mim enquanto sou jovem, magra, sei lá, as mulheres sempre se preocupam com essas coisas.

Você gosta de manter e de reviver o passado?, ele, curioso.

A gente tem que aproveitar enquanto é jovem, é isso que eu acho. Depois que passam os anos, geralmente engordamos; aproveito enquanto tenho esse corpinho.

Ai, Gisele, você é tão burrinha, pensei, está alertando o homem a prestar ainda mais atenção em você.

É para ter uma lembrança, você compreende?, repeti.

Compreendo. As mulheres são muito vaidosas.

Só as mulheres?, ressaltei.

Na maioria das vezes, sim.

Hoje há homens que vivem em salões de beleza, afirmei.

Você repara bem as pessoas, não?

Depois de suas palavras, acabei um tantinho vexada. Pois ele sabia que eu estava separada, e pela minha conversa dava para perceber que eu andava reparando os homens.

Dias depois, enquanto saíamos da escola, ele me avistou e ofereceu carona.

Moro aqui pertinho, falei.

Mas não é melhor ir de carro?

Acabei aceitando. Ele seguiu em frente, cruzou duas ruas e eu já estava em casa.

Na semana seguinte, me convidou para sair.

É que tenho uma história para te contar, falou.

Uma história?, perguntei com ar de curiosidade. É sobre alguém aqui da escola?

Agora não posso dizer.

O bandido me deixou curiosa, sabia lidar com as mulheres.

Aceitei o convite. Era um sábado, oito da noite, quando ele veio me pegar em casa.

Cadê a menina?, perguntou.

Ficou com minha mãe, sorri já dentro do carro.

Deu a partida. A noite estava fresca. Andamos pelas vias internas da cidade até começarmos a trafegar numa marginal que nos leva à orla marítima.

Entrou com o carro num estacionamento, virou a cabeça para mim e perguntou:

Você quer caminhar um pouco ou prefere ir direto a um restaurante?

Acho melhor passearmos primeiro, sugeri.

Começou a contar uma história, mas logo descobri que não era sobre ninguém que eu conhecia. Na verdade, pelo que entendi, ele falava sobre um personagem de livro, embora afirmasse que a história aconteceu mesmo. Contou sobre um cara que resolveu ir morar no litoral.

Gosto de histórias fortes, sabia?, falei.

Você, com essa carinha de anjo?

Eu, anjo?

Pelo menos é o que parece. Mas pode deixar que essa história é bastante forte.

A história começava com um homem dizendo que iria se matar no dia seguinte, e falava a um dos filhos. Eu, atenta, ouvia.

No início o filho tenta contra-argumentar, mas logo desiste. Percebe que a decisão do pai é irremovível. Aliás, não é uma escolha. Na verdade, ele não tem escolha. Mas o pai, de modo surpreendente, faz um pedido insólito. Que ele, após o suicídio, leve a cadela que o acompanha há quase dezesseis anos a uma veterinária amiga e peça que a sacrifique. A mulher já sabe mais ou  menos da história. O filho, a princípio, acha tudo um grande absurdo e diz que não vai assumir tal compromisso.

Meu amigo esperou que eu perguntasse alguma coisa.

Ele não tentou o suficiente para salvar o pai do suicídio, falei.

O que aconteceu foi que o rapaz acabou convencido pelo pai de que o suicídio era o melhor caminho, tanto mais nas circunstâncias em que o velho se encontrava.

Ele estava doente?

Tudo leva a crer que sim, mas a doença não é mencionada, apenas falam sobre um grande sofrimento.

Mas como esse filho pode ter aceitado isso?, eu mostrava indignação.

Você não falou que gosta de histórias fortes? Estou contando.

Está bom, continue, você tem razão, é uma história forte. Enquanto caminhávamos, abotoei o agasalho e cruzei os braços abaixo dos seios, quis me proteger da brisa que soprava do mar. Apesar do friozinho, era uma noite bonita, o céu estava cheio de estrelas.

E, há uma outra coisa, continuou, a mulher desse filho, antes do episódio do suicídio, já o havia trocado pelo irmão.

Como?, fiz que não entendi.

Isso mesmo. Já fazia alguns anos. A esposa começou a gostar do irmão e foi com ele. Eles, os irmãos, nunca mais se falaram. Passaram o resto da vida como inimigos.

Olhei para ele e sorri. Mas foi um sorrido de desconforto. Gostara da história, até me causara alguma excitação, mas era uma situação muito triste.

Durante o jantar, ainda perguntei sobre o que aconteceu depois.

É uma história verdadeira, posso lhe garantir, falou. Embora tenha sido publicada num livro de ficção. É tudo verdade, assentiu com a cabeça.

Depois dessa noite, passamos a nos encontrar uma vez na semana. Lógico que no começo fiz o tipo de mulher difícil. Três encontros depois, passeamos de novo, mas em Rio das Ostras. Caminhamos à noite numa das praias e jantamos num restaurante da Praça da Baleia. Como não estou acostumada a bebidas alcoólicas, fiquei de pilequinho. Acabei levando-o para a minha casa depois do jantar.

Me conta uma história?, pedi, estou precisando.

Precisando?, riu.

Isso mesmo. Não sei se já falei a você, essas histórias me deixam a mil.

Começou a contar sobre um americano que soube que dentro de poucos meses morreria. Estava com câncer e o médico lhe assegurou, com muita honestidade, que para o seu caso todos os medicamentos eram apenas paliativos. O homem pôs a venda tudo que tinha, e passou a dizer às pessoas que faria uma longa viagem.

Ele tocava saxofone, continuou. O homem queria viajar para um país longínquo, o Vietnam. Queria morrer em terra estrangeira e longe de todos. Como os elefantes, já ouviu falar?, perguntou.

O que tem os elefantes?, eu quis saber.

Eles se retiram quando sentem a morte próxima, afastam-se da manada e morrem sozinhos.

E o homem fez isso?

De certa forma, sim, mas antes arranjou uma namorada.

Senti intenso arrepio com essa parte da história.

Então ele transou com ela antes de morrer?, perguntei.

Várias vezes. Mas no final ela acaba com outro.

Ah, que pena, exclamei. Pedi para ir ao banheiro.

Quando voltei, eu disse que também tinha uma história para contar. Algo que eu mesma vivenciara.

Tive um aluno cujo pai se matou.

Foi na Florinda, não? Todo mundo ficou sabendo desse caso.

Foi, sim. Trabalhei lá mais uns dois anos, depois pedi transferência. O fato foi traumático para todos. O garoto não tinha mãe e, de repente, o pai se suicida.

E como ficou o menino?

Totalmente fora de órbita. Pensei na época, que foda, como esse garoto vai sobreviver. Ele andava pelos cantos da escola, sempre em silêncio, pensativo, como se dependesse do seu pensamento a possibilidade de descobrir as razões que levaram o pai a esse tipo de morte. Há suicídios que não possuem lógica nem explicação. Alguém me contou que quando se sofre violência na infância, com o passar do anos a vítima tende a sentir essa violência cada vez de modo mais intenso, até o ponto de não mais suportar.Daí a razão de tantos suicídios inexplicáveis. Sei lá, isso é uma loucura só, concluí.

Naquela noite, após tantas histórias, a maioria insólita, fiquei nua nos braços dele.

Depois que me separei ainda não transei com ninguém, eu disse. E olha que o meu marido era tarado por mim.

Você realmente é muito bonita, falou demonstrando muita admiração.

Acho que encontrei o homem certo, falei sem querer, como se pensasse em voz alta.

Como você pode saber se ainda nem me conhece direito?

Preciso de um homem que me conte histórias como essas que você contou. Promete que sempre terá uma história para me contar, principalmente antes de me levar pra cama?

Prometer não prometo, isso é muito complicado, mas vou tentar. Não é fácil ter sempre boas histórias. E também nada sabemos sobre o futuro.

É fácil sim, tem tanto livro por aí. E quanto ao futuro, ele acontece sozinho.

Tudo bem, deixando o futuro de lado, você não disse que as histórias precisam ser verdadeiras?

Disse, mas você também me disse que é tudo verdade.

Concordo. De certo modo, é tudo verdade. E você também contou uma história muito verdadeira.

É que eu me excito com essas narrativas, inclusive com a do suicídio do pai do meu ex-aluno.

Já que você gosta de histórias fortes e se excita tanto com elas, será que não vai me matar essa noite? Assim também terá o que contar, só não precisa dizer que a assassina é você, riu, depois me beijou na boca.

Quem sabe, respondi fazendo de conta que entrava na brincadeira. Vou te pedir mais uma coisa, assim pode ser que eu não te mate, continuei.

Fale, sou todo ouvido.

Salta sobre mim como o animal mais feroz. Me penetra o mais fundo que você puder. Mas faço uma ressalva.

Silenciei durante trinta segundos.

Você quer o salto, a força, o pênis do tigre, não é isso?, ele.

Isso. Enfim encontrei um homem que me compreende.

Mas há uma ressalva, completou e olhou para mim esperando que eu continuasse.

Ah, sim, a ressalva, repeti abandonando qualquer vestígio de vexo. O que quero dizer é o seguinte, nada de tapas na bunda, viu, isso é coisa de criança. Me bate na cara, e bem forte. Outra coisa, quero que você me amarre. Tenho uma corda bem grossa, ali na gaveta do armário, a gaveta de baixo; mais além, vai à cozinha e volta com uma faca, há uma de ponta, pequena, na gaveta dos talheres. Percorre o meu corpo com ela, pressiona a ponta sobre a minha pele, onde você quiser, pode fazer uns furinhos, chupa então o meu sangue, chupa, me bebe, depois enfia teu peru em mim, mete bem fundo. Mas precisa ser pela noite inteira, sabe, a noite toda, e não para, viu, não para, quem sabe gozo até o dia claro, ou até já não houver sol. Agora vem, me aperta, não demora a começar, quero também o teu sangue...


Nota: a história do pai que chama o filho para comunicar que vai se matar é de Daniel Galera, e está no livro Barba ensopada de sangue, editora Companhia das Letras, e a do homem que sofre de câncer e quer morrer em terra estrangeira é do livro Hanói, de Adriana Lisboa, editora Alfaguara.

quarta-feira, dezembro 04, 2013

Depois você me paga

Sentei na beira da cama, cruzei as pernas e esperei. Não entendi o que ele tinha em mente. Achei mais elegante nada perguntar. Meu vestido repousava no mesmo lugar onde o deixara horas antes, após me despir. Devido a meus seios rijos, não viera de sutiã, quase não o usava, mas a calcinha... Ele ainda dormia, ou fazia de conta, não posso dizer ao certo. Ouvi barulho de vozes vindo da rua. Eram pessoas que chegavam de alguma festa, conversavam. A madrugada agradável fazia que demorassem a seguir cada qual o seu caminho, queriam mais tempo entre os amigos. Depois de mais ou menos dez minutos levantei e me vesti, apenas o tecido fino sobre a pele. Pensei na noite que tivéramos: primeiro o passeio; depois, ali no seu apartamento, a música na pequena sala e o amor. Começamos de pé, encostados a uma das paredes, a seguir o sexo ardente na cama de casal do único quarto. Ele dissera ao meu ouvido que eu era a mulher da sua vida, que nunca namorara alguém tão quente como eu. Talvez tudo conversa fiada. Devia contar a mesma história para todas que conquistava. E eu ainda o incentivei, falei de um namorado que me deixara nua à porta de casa. Excitou-se, quis saber detalhes, contou então sobre um baile de carnaval de tempos atrás. Namorou uma fada que usava apenas biquíni, deixou-a sem a varinha. Só roubou-lhe a varinha?, perguntei. Ele dissimulou, mas acabou revelando, tomou-lhe também o biquíni. Sou também uma fada, falei, pena não ter vindo de biquíni, o que você vai levar de mim? Sorriu. Fazia pouco tempo que nos conhecêramos, ainda nem bem partíramos para o sexo. Demoro a ir para cama com namorado novo. Sei que já não sou tão jovem, sei também que os tempos são outros, tempos em que tudo se resolve com rapidez. Mas ainda sou lenta, não gosto de precipitações. Ele mexeu-se na cama. Esperei mais um pouco. Fez silêncio novamente. Achei que não acordaria. Procurei a sandália, a bolsa, fui até o banheiro e olhei-me no espelho. A aparência estava boa, disfarçava. Chamaria um táxi e correria para casa. Não sabia se o procuraria de novo. Lembrei-me de sua fadinha. Quem sabe ainda possuía a varinha, quem sabe me mostraria o biquíni. Onde será que os guardava? O apartamento era pequeno, não seria difícil encontrar. Temi que acordasse e não me deixasse ir. Pensei na fadinha nua e sem poder algum. Não queria acabar do mesmo jeito que ela. Que ninguém me olhasse por baixo da roupa. Que não pensassem mal de mim. As mulheres têm certa fascinação em se sentirem prostitutas, falam algumas pessoas. Será?.

Quando desci encontrei na portaria um garoto. Gostosa, ouvi-o dizer. Há quanto tempo não ouvia essa palavra. Voltei-me. Ele sorriu. Tão bonito o garoto. Ei, moça, espere aí. Esperei. Ele veio até a mim. Você quer passear comigo?, perguntei. Quero, falou com decisão. Mas precisa pagar, sabe, comigo nada é de graça. Quanto você cobra? Duzentos, e tem de ser adiantado, mais uma coisa, vou avisar porque há homens que depois reclamam. O que é?, ele, curioso. O último cliente me roubou a calcinha. Não quero a calcinha, quero você, decidiu. O garoto levava jeito. Tem aonde me levar?, indaguei. Tenho, não moro sozinho, mas você passa por minha namorada, o único problema é quanto aos cem. Cem, não, duzentos, fiz de conta que me assustei. É, desculpa, os duzentos, ele reparou. Não faz mal, falei, fechamos por cento e cinquenta. Não é que você não valha, afirmou pegando uma das minhas mãos, é que também não tenho cento e cinquenta. Ok, sorri, deixo por cem, mas só dessa vez, viu?