quinta-feira, maio 24, 2012

Deleuziana

A tarde cai, também crepuscular o ambiente na faculdade. Seria bom ter sempre gente para debater assuntos como filosofia, literatura, pensamento contemporâneo, a escrita dos franceses sobre a tênue fronteira entre a palavra e o que ela representa etc. Mas não é tão fácil. Muitos estão aqui apenas para receber o diploma no fim do curso e com ele ganhar dinheiro. O debate sobre a produção da cultura humana, sobre até que ponto se pode chegar ao requinte de se elaborar fios de pensamentos representados por palavras, artifícios mais delicados do que uma teia quase transparente, é difícil de se concretizar, a não ser durante alguns fugazes minutos numa defesa de tese de aluno brilhante. Mas o mundo é assim mesmo, sempre o palpável é o caminho mais fácil, a vereda dos sentidos. Concreto é sentir fome, sede, necessidade de sexo. Até mesmo experimentar o fino paladar de uma taça de vinho raro já não é para qualquer um. Imagine as abstrações e suas representações. No mundo de hoje existem  pseudo-abstrações extremamente vendáveis; dão esperança de uma vida melhor a muitas pessoas, induzem ao pensamento de que obstáculos são fáceis de serem superados. Emagrecer, eliminar a depressão, superar o temor, viver feliz sem namorado, estar satisfeita dentro da própria casa etc. A tarde vai caindo, vou deixando para trás o campi da universidade. Entro no mundo dos comuns. Uma aluna disse a outra que adoro tomar cerveja. Esta observou que sou magra, talvez mesmo o exemplo atual de mulher bonita, como poderia então tomar cerveja? Não sei, voltou à carga a primeira, ouvi falar que ela entorna. Ri da expressão. Quer dizer que entorno... Não comentei nada com ninguém, achei tudo tão engraçado. A conversa chegou ao meu ouvido por vias transversas. Vá lá, acho que ela tem um pouco de razão. Mas não entorno. Caso o fizesse, teria pelo menos um pouquinho de barriga. A causa do comentário deve ter sido a festa na boate. Alunos sempre acabam sabendo. Não chegam a eles nossas ideias básicas, nossa linha de raciocínio, o que publicamos no último artigo na revista da universidade. Mas o que bebemos na última festa. Seria bom que comentassem sobre minha principal pesquisa, sobre os conceitos que se originam nos franceses a respeito de territorialização, fronteira, entrelugar, estranhamento. Tudo isso fica ao largo, à deriva em mar de escolhos. Dão valor apenas ao que aconteceu na boate e ao tanto que bebi. Por falar em fronteira, em entrelugar, pode ser que acidentalmente comentem sobre isso, mas não devido à leitura atenta dos conceitos deleuzianos. Algumas pessoas reparam que gosto de dançar, que num fugaz momento enquanto vou voraz no ritmo de uma canção alguém me toca as costas e acaba deixando a mão. Não entendem que precisamos relaxar após o dia intenso de leitura e de pesquisa. É por isso que nos largamos em boates ou mergulhamos em copos de cerveja vez ou outra. Mas aquela mão me toca com tanto carinho, com tanto cuidado, que a permito sem me dar conta da pessoa. Um professor admirador? Algum aluno? Alguém desconhecido? A mão é de uma mulher. Deixo a mulher continuar. Faço de conta que nada sinto. Ouço vozes, a Ana é muito bonita, mas acho que gosta de mulher. A Ana é lésbica. Oh! exclamam quase todos. Talvez uma aluna mais sofisticada se manifeste, a Ana às vezes deixa seu território e passa para território vizinho. O lugar de mulher é deixado ao largo para que ela adentre outro em que não está claro a quem pertence, se a homem ou a mulher, talvez seja essa a definição de poesia da qual ela tanto gosta. Pau é pedra; pedra é pau. Simultaneamente. Palavras são reflexos luminosos frágeis, que mais criam situações do que definem experiências humanas. Não existissem as palavras, impossíveis as situações. De quem a razão? Platão, Aristóteles, Kant, Hegel ou Lacan? Deleuze detonou a psicanálise apresentando a tese de que o Édipo é apenas um pó ante as inúmeras situações que marcam a proibição. O lugar da Ana Lídia é altamente volátil, está diluído numa microfísica de poder em que não se encaixa a formulação de filósofos que trazem teorias totalizantes. Ufa! Tudo isso por causa de um desregramento na boate. Mas atravessaria apenas mentes privilegiadas. Para homens e mulheres comuns: lésbica. Quem estuda o entrelugar, o lugar extremamente volátil, aquele espaço móvel em que não se sabe se está nua ou vestida, é alguém que possui o espírito sutil. Não sei se palavras como espírito e sutil são adequadas, mas vamos a elas para o bom entendimento. Preciso ser didática nesse ponto. Vestido curto, soltinho (sempre o calor), sandália rasteira, dou a volta pelo estacionamento, vou ao copo. Quem na mesa pode discutir territorialização e espaço tênue entre fronteiras? Homem ou mulher? Não importa. Alguém. Conversa também é afeto.

quinta-feira, maio 17, 2012

Naco de amor

Blusa de algodão; saia de malha, preta, curta, solta, corte em diagonal; meias arrastão descendo até entrarem pelas botas de cano longo. Apenas. Se faz frio, o casaco cinza escuro. À noite vou pelas travessas do centro velho. Vielas de luz escassa. Um ou outro bar. Homens, que sempre se enganam, julgam-me prostituta. Represento. Se já tive algum problema. Teria, se minha defesa não fosse o ataque. Polícia? O que há de mais perigoso. A cidade tem suas luzes esmaecidas. Perco-me em meio às sombras, sob o tímido brilho das estrelas do céu urbano. Espero o prazer. Ainda que barato. Sozinha, na indigência dos resíduos que escorrem do dia findo. Enfio-me num beco. Nova York? Letreiro de loja apagada, esquecida à hora tardia. Riscos nas paredes. Grafite rasurado. Alguém me quer sem as meias, sem a saia, sem a blusa surrada. Agarra-me num beco, beija-me a boca, roça meu corpo. Tira seu sexo e tenta encaixá-lo entre a costura esgarçada de minhas pernas. Gozo eu? Talvez.

Abandona-me nua, encolhida, os braços apenas de abrigo, sussurro-lhe ao ouvido.

Escondo-me. Procuro outros vãos, reentrâncias, silêncios. Até quando a fragilidade do fio suportará o peso do equilibrista?

Leva-me nua, digo a outro em meio ao burburinho seco da noite vazia, deita-me ainda que sobre a soleira de qualquer porta, não me deixes escapar sem que eu umedeça teus lábios, sem que te deixe o sexo molhado.

Aventura. Que mulher não está disposta? Basta-lhe leve indício de sobrevivência. À beira do abismo, porém. O fio da vida quase partido. Momento do orgasmo. Não temes? Alguém há de perguntar. Temer?, repito o verbo. Temem a mim. Sou eu a fera. Primeiro, mansa, os braços soltos a deslizar sobre os alheios, homens rasos, noturnos, desconhecidos. Não sei nem interessa a mim de onde vêm, aonde irão. Como tremem! Ante a mulher nua que anda na via pública, amante que lhes oferta o corpo suado de volúpia.

quinta-feira, maio 03, 2012

Assuntos profissionais

Essa história que você conta não é do meu agrado. Não gostaria que viesse um homem conversar comigo no final da madrugada para depois despedi-lo e levar apenas o número do telefone. O melhor seria conhecê-lo cedo, no início da festa, ficar com ele a maior parte do tempo e depois namorá-lo em algum lugar privado, até o amanhecer. Ou, quem sabe, dormir com ele na sua própria casa, acordar e beijá-lo muitas vezes. Sair de uma festa sozinha significa um fracasso. Você me disse que dias depois o encontrou para um negócio, algo profissional, e que ganhou um bom dinheiro, as tais fotos que você fez como modelo para uma grife famosa. Ótimo. Mas quando se sai para diversão, não se deve pensar em trabalho, e sim em prazer. Às vezes é possível unir as duas pontas, não é mesmo? Mas é difícil. Um evento musical num lugar como Cabo Frio é o momento certo para se divertir. A cidade sempre está em clima de festa. A Carlinha foi criticada por muita gente, e até hoje falam nisso. Só porque no fim da noite foi à beira da praia para namorar um dos rapazes. E ficou nua. Mas ela estava certa, deve ter aproveitado bastante. Eu fui àquela comemoração. Carla esteve nos braços de três ou quatro homens, e não foi apenas para dançar, a roupa que usava, um vestidinho curtíssimo e transparente, também foi motivo de críticas por parte das garotas fofoqueiras. Ainda bem que ela nem ligou para o que falaram. E o mais importante: continua a mesma. Não só os rapazes gostaram, mas, aposto, as garotas queriam estar no lugar dela. Quando falam muito é porque sentem inveja. Eu, porém, não gosto de transar em lugar público, mas aí já é problema particular de quem gosta. Certa vez, acho que já faz dois anos e pouco, foi no mês de janeiro, viajei a Angra dos Reis. Ali, sim, tive muita sorte. Fiquei com um homem lindo. Não era um rapaz, não, mas um homem mesmo, devia ter seus quarenta anos. Disse que era engenheiro numa grande empresa de petróleo. Precisava ver como me tratou. Meu amor pra cá, meu amor pra lá... Além da festa, me levou a um restaurante lindíssimo. Depois, fomos ao barco dele. Tinha na verdade um iate, passamos a noite juntos. Nunca havia namorado num iate. Foi ótimo. Ele tirou toda a minha roupa e fizemos amor num dos camarotes. Não tive preocupação alguma. Pena que depois não continuei com ele. Propôs que morássemos juntos. Mas achei cedo. Tenho o meu emprego, e é um bom emprego, você sabe. Ele queria, porém, que eu me demitisse para casar com ele. Não achei aquilo bom, temi que mais tarde não desse certo. Mas não sei, às vezes me arrependo das minhas decisões. Sou muito pele, todos percebem isso, quero (deixa falar baixinho) gozar muito, não penso em muitas responsabilidades. Também não me apetece ficar na dependência de um homem. E se eu sentir desejo por outro? Você me entende; quando a gente tem por fim o prazer, não conta muito a pessoa a quem se está ligada. Já tive quase todas as experiências, muitas delas já contei a você. Só não tive a que viveu a Carlinha. Amanhecer nua numa praia, nunca aconteceu comigo. Também conheci vários tipos de homem. Mas acho que ultimamente estou sem sorte. Acabar uma festa e ter de voltar sozinha pra casa é muito azar, não acha? Sou muito bonita, me cuido, vou ficar bonita sempre, tenho certeza, penso que mereço o melhor, mas não se deve exigir demais. Por isso é que digo: se me aparecesse um homem como esse de quem você acabou de falar, eu não ia, pelo menos a princípio, tratar de assuntos profissionais.