quinta-feira, abril 30, 2009

De olhos vendados: capítulo 8 - Final

Zilda retomou as saídas com Roberto. Ora era ela mesma, ora pregava uma peça e aparecia de surpresa, como se fosse outra pessoa. Algumas vezes ele realmente ficava na dúvida de quem se tratava. Jamais conseguiu entender como uma jovem de dezessete anos, vestida como quem vai para um ensaio de balé, pudesse ser aquela juíza, vinte anos mais velha do que ele.
Roberto tomava um suco num quiosque, na Vieira Souto. De repente se viu envolvido com alguém de menos idade do que ele, o cabelo amarrado com duas tranças. Ela perguntou:
“Moço, paga um suco pra mim?”
“Mas você é tão bonita, bem tratada, como pode querer que eu pague um suco?”
“Moço, por favor, as aparências enganam.”
“Onde você pratica balé?”
A jovem disse o nome de uma famosa academia de dança, situada no mesmo bairro.
“Como você tem dinheiro para pagar a mensalidade de uma academia caríssima e não tem para comprar um suco?”
“É que eu achei você bonitinho.”
“Bonitinho pra pagar um suco?”
“Bonitinho pra namorar”, falou e caiu na gargalhada.
Entendeu o que ela queria.
A moça o pegou pelo pescoço e beijou-o no rosto, depois procurou a boca do escritor.
Ele aceitou o afago, mas viu-se embaraçado num beijo escandaloso às três da tarde, em plena rua.
Ficou com a moça durante algumas horas. Ela pediu que a levasse à casa dele. Roberto sentiu algum temor.
“Qual a sua idade?”
“Não se faz essa pergunta para as mulheres.”
“Levar você ao meu apartamento pode me trazer problemas.”
“Você é casado?”
“Não, não se trata disso; é que você é muito jovem.”
“Você não gosta de garota nova?”
“Gosto, mas você parece que é menor de idade.”
“Acho que vou ter de mostrar a minha identidade.”
Tirou de dentro das roupas uma carteira. Tinha dezessete anos e se chamava Daniele.
“Dezessete anos ainda não é maior de idade.”
“Como não, se posso votar pra presidente?”
Roberto riu da argumentação; acabou ficando com a menina.
Ela fez apenas duas exigências quando já estavam no apartamento do rapaz: uma camisinha e que o quarto estivesse muito escuro.

No dia seguinte, ao encontrar Maria Zilda, ele não acreditou quando ela disse que representara para ele uma personagem chamada Daniele. Apesar de ter contado todos os pormenores, ele não se convenceu.
“Você contratou alguém para me seduzir”, disse.
“Seduzir você?”
“Isso, seduzir.”
Maria Zilda riu alto.
“Não pode ser verdade, não vou acreditar de modo algum nisso, você vai acabar me enlouquecendo.”
“Você me traiu”, disse Zilda.
“Como, traí?”
“Me traiu com essa Daniele.”
“Mas você não está dizendo que essa moça era você?”
“Mesmo que fosse, você me traiu, saiu com outra pessoa; sabia que você não abriria mão de uma mulher mais jovem.”
“Mas foi você que instigou, que criou essa situação. Ninguém ficaria imune a uma moça daquele tipo.”
“Você me traiu”, foi a sentença de Zilda.

Ficaram sem se falar dali em diante. Ela não mais telefonou. Roberto passou a enfrentar um terrível dilema. Toda mulher que conhecia, temia que fosse Maria Zilda.
Depois de um ano de análise psicanalítica, porém, passou a não se preocupar mais com isso. Se fosse Zilda, azar o dela. Um dia contratou duas mulheres para fazer amor com ele. Foi assim que resolveu a questão. Se Zilda estivesse ali, seria apenas uma.

Em setembro, lançou seu terceiro livro. Escritor já famoso, festejado, premiado nos dois livros anteriores. A intelectualidade carioca compareceu em peso numa quarta à noite, na livraria Argumento. Atendeu a leitores, a fãs e a jornalistas. Autografou muitos exemplares.
No final, quando se preparava para ir embora, uma anciã entrou na livraria.
“Sei que já passou da hora, mas será que o senhor Roberto ainda se encontra?”
“Alguém apontou para onde ele estava.”
A velha foi até ele.
“Poderia autografar esses dois exemplares?”
“Sim, qual o seu nome?”
“Maria Zilda.”
Roberto a olhou incrédulo. Autografou rápido e entregou os exemplares.
“A juíza que é sua personagem faz parte de algum tribunal inferior?”, quis saber a mulher.
“Tribunal inferior? Que tribunal inferior?”
“Oh, o senhor nunca leu O processo, de Franz Kafka?”
“Oh, Kafka, Kafka...”, repetiu mecanicamente.
A senhora guardou os exemplares na bolsa, agradeceu e se foi. Se alguém caminhasse a seu lado, ainda poderia ter ouvido uma última frase, num tom quase melancólico:
“Oh, esses jovens escritores...”

sábado, abril 25, 2009

De olhos vendados: capítulo 7

Enquanto Roberto esteve em Brasília, Maria Zilda saiu com um velho amigo, no Rio. Ele trabalhava como analista de judiciário, uma função importante nesse ramo do poder. Ela o conhecia de longa data, desde antes de tornar-se juíza. Marcaram encontro no bar do Sofitel.
Na noite de quinta-feira, não há show ao vivo no local. Aproveitaram para conversar e beber uísque. Poucas pessoas freqüentavam o bar; a música de fundo era baixa.
Maria Zilda vestia-se de modo elegante, um tailleur de cor clara. João Carlos, seu amigo, trajava terno, como de costume. Ele tinha a aparência de alguém em constante estado de angústia, mas quando sorria mostrava uma face jovial. A bebida fez logo que ele se soltasse. Tinha uma forte queda pelas mulheres, porém nunca tentara nada em relação à Zilda, temia perder sua amizade.
“Quer dizer que agora você tem passeado com um escritor?”
“Tenho, mas ele ainda é jovem, parece que vai lançar o terceiro livro.”
“Você já leu alguma coisa dele?”
“Sim, o primeiro livro dele é muito bom, fez sucesso entre a crítica.”
“Crítica?”, perguntou o amigo em tom de deboche.
“Isso. Os principais jornais falaram bem.”
João Carlos estava por volta dos quarenta e cinco anos, tinha a vida estabilizada financeiramente.
“E quantos anos ele tem?”, quis saber.
“Acho que trinta ou trinta e poucos, não tenho certeza.”
“E já faz tanto sucesso?”
“De certa forma, sim.”
“A imprensa quer rostos jovens e bonitos, celebridades, não está interessada no que eles escrevem.”
“Mas pelo que sei, não falaram do rosto dele, falaram do livro.”
“E não apareceu a foto no jornal?”
“Sim”, confirmou Zilda.
“Então?”
Maria Zilda olhou para o amigo, piscou os olhos, sorriu e levou à boca mais um gole de uísque.
O amigo foi quem falou:
“Sabe, já tentei ser escritor. Tenho até umas coisas escritas. Mas acabei desistindo. Acho que a minha vida organizada fez que eu perdesse o interesse pela literatura. Veja, fiz concurso, consegui um bom emprego público, ganho bem, nada me falta. Vou escrever sobre o quê? Hoje, bebo; é isso que sei fazer melhor.”
Levou o copo também aos lábios, sorveu um longo gole enquanto a amiga olhava para ele e não deixava de estampar um bonito sorriso.
João Carlos olhou para fora, pôde apreciar toda a orla marítima. Como era noite, não podia ver o mar até o horizonte. Mas a paisagem, possível de ser admirada da varanda do bar, permitia que se visse o céu escuro, a arrebentação com suas espumas claras e a iluminação noturna que ia até a beira d’água. Mais próximo de onde estavam, exibiam-se a avenida e os automóveis que transitavam àquela hora.
“Não sabia que você escrevia. Nunca tentou publicar?”
“Não, não tive ímpeto para isso; talvez nunca tenha acreditado no que escrevia. Certa vez, ganhei um concurso de contos. Mas isso já faz vinte anos.”
“Que pena; não se deve desistir dessas coisas.”
“E você? Fale-me um pouco sobre o que anda fazendo ultimamente.”
“O que uma juíza de uma vara trabalhista pode andar fazendo ultimamente?”
“Ah, não sei. Há coisas interessantes. E fora o trabalho?”
Maria Zilda olhou firme para ele, disse com convicção:
“Sou uma atriz.”
“Atriz?”, repetiu em forma de pergunta o homem e acabou por deixar escapar uma ligeira gargalhada.
“Por que as atrizes não merecem respeito?”
“Desculpe-me, claro que merecem”, tentou consertar. “Então explique. Você trabalha em que peça de teatro?”
“No momento, não atua em peça alguma. Mas sou um outro tipo de atriz.”
“Como? Então me explique.”
“Quer saber, mesmo?”
“Represento quando tenho vontade."
Ela tinha a intenção de lhe contar a verdade. Esperou que ele fizesse outra pergunta. Mas ele permaneceu durante longo tempo em silêncio.
Quando voltou a falar, foi para perguntar se ela se desejava comer alguma coisa. Zilda meneou a cabeça em negativa. Mas mesmo assim ele chamou o garçom e pediu um pequeno couvert. Queria acompanhamento para a bebida.
“Escritores, atrizes, poucos tem coragem para isso. Preferimos a bebida. Por frustração tornamo-nos alcoólicos.”
“Talvez”, não titubeou Zilda. “Mas mesmo assim a vida tem seus atrativos.”
“Oh, claro, o fato de estarmos aqui, de termos dinheiro para freqüentar um lugar requintado como esse, de podermos viajar nas férias, conhecer outros países, ver monumentos, museus e tudo mais são grande atrativos. Porém, ao ver um escritor, ao constatar que faz sucesso, ao me deparar com um deles, que geralmente são mais novos do que eu, sinto uma intensa frustração, ou mesmo inveja. Não sei ao certo a definição.”
“Eu não sinto inveja das atrizes. Represento melhor. E, quando represento, ninguém percebe que está no teatro. Falo sério, viu? E só estou contando isso a você.”
“E o seu amigo escritor gosta de você?”
“Claro que gosta, mas é meio burro. Não percebeu ainda o meu teatro. Quando falei com ele sobre isso, não entendeu e quase entrou em crise.”
“Os jovens são imaturos”, afirmou João, “mesmo que escritores. Já vi gente que criou personagens fabulosos; mas quando conheci o criador, nunca pensei que tanta mediocridade pudesse levar a personagens tão geniais.”
“Mas isso não é característica só dos jovens, muitos escritores de idade avançada também aparentam ser pessoas medíocres.”
“Acho que quando se é jovem, tanto pior.”
“Esse meu amigo alterna momentos de lucidez com momentos de extrema ingenuidade.”

Por que a vida vivida no dia-a-dia não satisfaz as pessoas? Por quê, para muitas delas, são necessárias ações extremas, que poderiam colocá-las em perigo?
Certa vez conversava com uma jovem que a procurara para uma questão judicial. Viera por intermédio de uma outra juíza que anos antes trabalhara com Maria Zilda. Conversaram sobre amenidades antes de entrar na questão que era o motivo da visita. A jovem tocou num assunto referente a um relacionamento conturbado que ainda vivia. De repente, falou:
“Conheci o rapaz numa boate, mas não saímos naquele dia.”
Então foi a vez de Zilda:
“Você sai com um rapaz no mesmo dia em que o conhece?”
“Saio apenas para conversar, mas tenho amigas que saem no mesmo ida, vão direto para o hotel, ou para algum lugar onde seja possível transar.”
“É mesmo?”
“Sim; tenho amigas que não pensam duas vezes.”
“E elas não têm medo?”
“Não sei”, continuou a moça, “acho que não. Eu tenho medo. Se não conheço o homem, não vou pra cama com ele logo na primeira vez. Às vezes demoro muito a aceitar a relação sexual. Então eles vão embora à procura de outra.”
“Mas você parece que conheceu alguém, se relacionou, e depois saiu muito prejudicada, certo?”
“Certo.”
“Então? Você não achava que o conhecia?”
“Conhecia-o, sim. Fui prejudicada, mas não trepei com ele na primeira noite em que o vi. Creio que caso o tivesse feito, não aconteceria nada demais. Mas não é sobre isso que falo. Acho que há homens que são malucos; são capazes de machucar, ou mesmo matar. Por isso, é melhor sair para fins sexuais com alguém já conhecido no nosso círculo de amizades; assim é mais seguro. Mas quanto a esse relacionamento que me causou e ainda me causa problemas, as razões são outras...”
“E já houve problemas com algumas de suas amigas que vão para cama com alguém logo no dia que o conhece?.”
“Acho que não, nunca perguntei. Certa vez ouvi falar de uma que foi agredida, ou coisa semelhante, mas não tenho certeza.”

Naquela mesma noite, Zilda enquanto caminhava pela Avenida Chile na direção da Rio Branco, avistou o homem que, tempos atrás, a seguira de dentro de um Citröen. Dentro do mesmo carro, ele dirigia procurando acompanhá-la. Vez ou outra algum motorista de outro automóvel tinha de reduzir a velocidade por causa dele; então buzinava, ultrapassava e escapava em velocidade, demonstrando todo descontentamento por ter sido atrapalhado. Maria Zilda continuou andando como se nada tivesse percebido. Mas o homem a seguiu. Quando ela se encontrava na cafeteria que costumava ir, lá estava ele, numa outra mesa, olhando para ela. O homem tinha nos olhos alguma alegria.
Ela lembrou da conversa que tivera com a jovem, sobre sair com alguém que se conhece no mesmo dia. A possibilidade de enfrentar aquele homem, proporcionou-lhe um certo frio na barriga. Quem sabe se o encontrasse numa outra situação, ela sendo outra pessoa?

A Barra da Tijuca havia muito não constava nos planos da juíza. Tanto mais à noite. Mas marcara com o homem. Conseguira fazer chegar a ele um pequeno bilhete, após sair da cafeteria. Agora, estava na varanda de um restaurante, na avenida Sernambetiba. A construção ficava longe do mar. Era possível ver a arrebentação, mas para ouvi-la, era necessário apurar os ouvidos. Zilda viera como ela mesma. Não tivera coragem de construir outra personagem. Sabia o risco que corria. O homem provavelmente a conhecia, sabia de seu cargo, tinha sua vida esquadrinhada. Ela achou que se arriscava. Mas já fizera o mesmo outras vezes. Já saíra com alguém no mesmo dia em que travara conhecimento? Bem, era melhor não levantar a questão no momento...
Ela chegou antes da hora. Gostava de se antecipar. Ele chegou na hora marcada. Olhava para os lados e não se surpreendeu ao vê-la.
Sorriu, estendeu a mão. Ela levantou-se e ofereceu o rosto.
O que poderia conversar com um homem daquele?
De inicio, a conversa foi travada. Muitas mesuras e considerações. Mas, depois, ele começou a falar mais abertamente.
“Pensei em procurá-la no seu gabinete, mas não tive coragem. Achei que seria uma afronta.”
Sorriu. Ia dizer que não achava nada demais, porém apenas mexeu com os olhos e procurou o copo sobre a mesa.
Ela quis saber se não se aborrecera durante o tempo todo em que esteve tentando encontrá-la.
“Algumas vezes pensei em desistir. No outro dia, logo achava que não perderia nada em fazer mais uma tentativa.”
“E a tentativa foi essa última, na cafeteria?”
“Não, saí muitas vezes no seu encalço. Mas não tive sucesso.”
Via-se que era um homem formal. Não tinha conversa. Procurara-a apenas por atração física, ou mesmo porque poderia ser interessante se relacionar com uma mulher importante.
“Você gosta de livros?”, perguntou a ele.
“Oh, gosto.”
“O que está lendo ultimamente?”
Demorou tanto para citar alguma coisa, que logo percebeu que ele não lia; ou lia apenas jornal. Pois citou um livro que despertou uma polêmica entre alguns críticos de literatura, cuja discussão aparecera no último sábado, num jornal diário.
Quis saber como funcionava a justiça.
Maria Zilda, para encurtar a conversa e não trazer os aborrecimentos do dia-a-dia para aquela hora, foi ao ponto certo quando disse:
“Simplesmente não funciona.”
Ao acabarem de jantar, Zilda embarcou no automóvel dele.
“Você sabe, um homem e uma mulher juntos, não pode haver apenas isso...”
“Isso, o quê?”, perguntou Zilda.
“Um jantar.”
Ela não quis perguntar o que poderia haver a mais. Sabia a resposta. Apenas falou baixo:
“Não nos apressemos; temos todo o tempo do mundo.”
Ele não perdeu a oportunidade:
“Será?”
A juíza disse que morava em Copacabana. Mas seu recente enamorado insistiu em permanecer um pouco mais ao lado dela. Maria Zilda jamais contou a alguém o que aconteceu naquele intervalo de três horas, desde a saída do restaurante até pisar o passeio da principal avenida do bairro onde dizia morar.
Deixou-a na entrada de um prédio bonito, na avenida Atlântica. Zilda deu adeus e ele se foi. Entrou a seguir num táxi e rumou para o Leblon.

sexta-feira, abril 24, 2009

De olhos vendados: capítulo 6

O aeroporto internacional Tom Jobim tinha um movimento digno de uma quinta-feira; um número médio de pessoas transitava por suas dependências. O local onde havia mais movimento era o terceiro piso, onde fica um pequeno shopping e a praça de alimentação. Roberto chegara cedo, faltavam em torno de duas horas para o seu vôo. Dirigiu-se ao restaurante Domoiselle, o mais luxuoso do lugar. Ele vinha puxando uma pequena mala e trazia no ombro uma pasta, em que guardava alguns livros, documentos e o notebook. Um funcionário do restaurante acompanhou-o até uma das mesas e disse que ficasse à vontade. Roberto olhou ao redor, reparou os dois salões, um deles ainda quase vazio, com mesas cobertas por toalhas muito brancas, sobre elas talheres de prata; poltronas acolchoadas rodeavam as mesas. Optou pelo salão central, onde várias pessoas já almoçavam. Havia um longo corredor com as iguarias arranjadas artisticamente. As pessoas podiam transitar por ali e escolher o que bem desejassem. Pousou as malas sobre uma das poltronas, tendo a preocupação de avisar a um dos garçons que iria até o self-service. O funcionário atendeu-o e falou que não se preocupasse. Roberto segurou um grande prato e colocou um pouco de salada, alguns legumes cozidos e um pedaço de frango grelhado. Decidiu que faria uma alimentação frugal. Voltou à mesa e encomendou um suco de laranja sem gelo. Enquanto comia, reparou as pessoas que se espalhavam pelas outras mesas. Havia muitos homens de terno; alguns usavam crachás que indicavam quem eram e em que trabalhavam. Reparou na mesa ao lado dois homens que deveriam ter trinta e poucos anos. Suas identificações mostravam que se tratava de funcionários da Polícia Federal. Seus ternos eram muito elegantes e os dois se portavam com desenvoltura e naturalidade. Conversavam animados e em determinado momento acenaram para um senhor mais velho que eles. O de aspecto mais jovem disse:
“É meu amigo, trabalha na Receita.”
Apresentou-o ao outro. O recém-chegado juntou-se a eles e a conversa tornou-se ainda mais animada.
Roberto gostou de apreciar aqueles três. Irradiavam um ar de felicidade e satisfação pelo local em que estavam e provavelmente pelos cargos que ocupavam na vida profissional.
Em outras mesas havia senhores dos mais variados tipos, mas a frquência do local primava por aqueles que tinham mais de quarenta anos. Algumas mulheres também almoçavam, sempre junto a dois ou três daqueles homens, todos tinham o aspecto de pessoas bem sucedidas. Em uma das mesas, uma jovem falava ao telefone, seu cabelo castanho descia sobre o ombro esquerdo numa enorme mecha.
Quando acabou a refeição principal, o garçom veio perguntar-lhe se estava satisfeito. Agradeceu. Disse que se sentia muito feliz por estar ali. O empregado apontou-lhe a mesa das sobremesas. Roberto levantou-se e rodeou o local. Decidiu comer um pequeno doce de cor amarela. Depois agradeceu muito, pagou a conta e saiu.
Já fora do restaurante, caminhou pelo salão onde ficam os cafés e as lanchonetes. Olhou uma coisa e outra, deu-se com as lojas que vendiam lembranças do Brasil, como café, cachaça, perfumes e outras miudezas. Depois olhou a livraria. Deu alguns passos mudando de direção e viu a grande lanchonete do Café Palheta. Sentiu vontade de tomar chá preto. Perguntou a uma das funcionárias se a casa servia chá. Ela disse que sim. Ele dirigiu-se ao caixa e pediu a bebida. Quando se encontrava em uma das mesas, observou uma mulher muito bonita, que vinha descontraída; ela sentou-se em uma das mesas próximas. Destacava-se das outras pessoas porque usava vestido preto curto, que saía por baixo de uma jaqueta branca de algodão; a jaqueta ia aberta. A mulher provavelmente ouvia música; era possível observar os fones que tinha no ouvido. Ela sorriu, talvez para ela mesma, tomou nas mãos o telefone e fez uma ligação. Soltou um dos fones, sua voz fez-se ouvir; abriu um sorriso ainda maior e pareceu falar com alguém a quem chamava de amor. Enquanto se manteve sentada, cruzara as pernas; apareceram-lhe as grossas coxas nuas. Roberto ficou a observá-las e achou-se pequeno para uma mulher daquele tipo. As pernas compridas dela com a sandália alta nos pés ressaltavam a elegância da jovem. Ele pensou um pouco mais e concluiu que, na verdade, nada tinha que o diminuísse perante uma mulher daquele tipo. Viu que ela virou-se e olhou para ele algumas vezes; mantinha o sorriso. Como ainda estava ao telefone, não sabia se o sorriso era para ele ou para a pessoa com quem falava. Quando desligou o aparelho, sua primeira ação foi colocar novamente os fones no ouvido. Ainda permaneceu à mesa durante alguns segundos, depois se levantou e partiu em direção a uma das lanchonetes. Trazia uma bolsa dependurada a um dos ombros e via-se um casaco de malha grossa amarrado elegantemente à própria bolsa. Depois que ela se foi, Roberto levantou-se e deu mais uma volta pelas lojas; caminhou até a proximidade dos caixas eletrônicos; quando voltou e dirigia-se à escada rolante, deu-se mais uma vez com a mulher; ela caminhava em sentido contrário. Roberto olhou mais uma vez para o seu rosto, depois para o vestido curto e, por fim, para suas coxas nuas. Foi a última vez que a viu.
Durante o vôo para Brasília, Roberto leu uma revista de poesia. Na verdade, ela aparentava mais um livro, devido ao formato e tamanho. Muitos autores escreviam nela, poetas, sobretudo, e de vários países. O exemplar que ele portava tinha o autógrafo do organizador, um poeta conhecido. Roberto comparecera ao lançamento.
Ao seu lado, a poltrona ia vazia, mas na seguinte havia uma jovem, talvez tivesse dezoito ou dezenove anos. Ele sorriu algumas vezes; aqueles sorrisos que as pessoas expressam muitas vezes em viagens, quando não tem o que dizer. Sempre há alguém que é solidário durante um espaço de tempo em que se tem de conviver juntos, mas, ao mesmo tempo, não se deseja conversar, apenas um sorriso de simpatia. A moça lia a revista Seleções. Interessante, pensou ele, não via ninguém ler essa revista havia muito. Voltou-se para o livro de poesias. A comissária passou rápida e sorriu também. Ele reparou que ela usava nos braços uma espécie de manga comprida, mas que não dependia de blusa alguma, vinha desde acima do cotovelo e terminava nos punhos. Era bonita a mulher, como quase todas as comissárias. Roberto a imaginou nua, trajando apenas aqueles panos elásticos brancos que lhe cobriam os braços.
Ao chegar à capital federal, ainda era cedo para apresentar-se na Universidade. Faria uma palestra em que o tema era a literatura e os jovens autores. Um táxi que o aguardava levou-o a um hotel elegante no Setor Hoteleiro Norte. Reparou a vasta recepção, a elegância dos funcionários e o modo como o receberam. Ficou hospedado no décimo quinto andar. Ao chegar ao apartamento, já com as duas malas repousando junto à mesa lateral, deu alguns passos até a janela e pode reparar a vasta paisagem. O prédio era alto para o nível de construção da capital; podia ver algumas quadras, o eixo monumental, e mesmo os automóveis que circulavam distantes.
A palestra não foi o principal acontecimento para ele. Encontrara diversos amigos, conversara com todos sobre cultura e literatura. Foi procurado por alguns jovens que queriam estrear no mercado editorial; autografou alguns exemplares de seu último livro; aceitou examinar, mais tarde, algum manuscrito. Mas o principal foi a ida a um restaurante a convite de um amigo que viera de São Paulo. Beberam e comeram à vontade. O amigo era muito mulherengo e já marcara um encontro com duas jovens, daí o convite para que Roberto o acompanhasse.
Elas chegaram às dez e trinta, uma hora depois desde a chegada dos dois Vestiam roupas curtas. Roberto achou as moças um tanto extravagantes.
“Não gosto de falar de literatura, gosto de beber e de mulheres”, dissera-lhe o amigo.
Roberto, depois de ter tomado duas doses de uma cachaça interiorana, bebida boa, artesanal, começou a achar que Ramon tinha razão. A que levavam as conversas sobre literatura? Debatiam-se livros que quase ninguém lia; a seguir, as pessoas queriam saber particularidades da vida do autor. As mulheres, sim, elas eram sempre falsas, mentiam; mas nisso, ao menos, existia uma verdade; até mesmo um cego a enxergaria. Apesar de todo o fingimento, de toda a maquiagem material e espiritual, eram pessoas indispensáveis.
Roberto, porém, descobriu que elas eram prostituas.
“E quem não é?, disse o amigo no momento em que as duas pediram licença para ir ao toalete. E repetia para ver se Roberto acordava para aquela verdade: “E quem não é?”
Em seguida, o garçom chegou com mais duas doses. Uma de Black Label para Ramon e a cachaça para Roberto.
“As pessoas se vendem por qualquer preço; veja, o próprio capitalismo tornou ético tudo que antes era denominado prostituição. Você pode trabalhar para alguém, caso encontre outra pessoa que lhe pague mais, você muda imediatamente. Mas essa já é uma conversa antiga, vamos prestar atenção nas mulheres, e elas já estão voltando.”
Elas sorriram e sentaram-se. Evitavam bebidas alcoólicas. Eram bonitas, apesar de as prostitutas não terem muito essa qualidade. Uma delas tinha o cabelo preto, ele descia pesado até a metade das costas. Sorria sempre. A outra tinha o cabelo mais claro e mostrava-se séria. Bastava, porém, algum elogio partido de um dos homens para que ela abrisse um meio sorriso. Quase não falavam; esperavam a iniciativa deles.
Roberto e Ramon evitaram assuntos intelectuais. Preferiam conversar sobre o que viam no cardápio. As duas mulheres não fizeram questão de pedir algo para comer, pareciam não ter fome. De soslaio, Roberto olhou para as pernas da morena; cruzara-as talvez sem intenção de mostrar parte das coxas. O vestido não era muito curto, mas na posição em que ela se encontrava, ele subira.
Talvez um dos problemas de sair com prostitutas seja esse, pensou Roberto. Elas quase não falam, talvez apenas se interessem pelo ganho financeiro que terão durante a noite. O fato de elas nada falarem o incomodava. Seu amigo, porém, não se afetava com isso. Ele logo perguntou se elas estavam acostumadas a vir àquele restaurante. A reposta foi dada imediatamente pela morena, dizendo que iam com mais frequência aos restaurantes que se situavam do outro lado, após a terceira ponte. A de cabelos mais claros chamava-se Letícia; ela pôs-se a comentar sobre os restaurantes mais badalados da capital. Roberto ficou a ouvi-la; então notou que Angélica, a morena, descruzara as pernas, mas o vestido permaneceu no mesmo nível, deixando agora as duas pernas da mulher de fora. Letícia era a mais simpática. Acabou aderindo totalmente à conversa, comportando-se como uma pessoa que os conhecesse havia muito. Bebia seu coquetel sem que deixasse perceber para que estava ali.
Em determinado momento, Roberto pensou em Maria Zilda. Preocupou-se com o que ela poderia estar fazendo àquela hora. Não via o momento de voltar ao Rio para procurá-la e tê-la nos braços. Temeu que ela estivesse encenando mais uma de suas representações. Maria Zilda era uma mulher que lhe escapava totalmente do controle.
Ramon envolvera-se na conversa. Descobrira que uma delas era de Belo Horizonte. Não suspeitava que houvesse alguém de BH que pudesse exercer a profissão que as duas escolheram. Depois, sem que perguntasse, Letícia falou que viera a Brasília para estudar e que na verdade nunca deixara de fazê-lo. Estava numa faculdade do DF, cursava jornalismo.
Roberto ouviu parte da conversa e duvidou que ela soubesse escrever alguma coisa, ao menos a nível profissional, mas ocultou o que ele e o amigo faziam quando ela perguntou em que trabalhavam.
“Para o governo”, foi a resposta que haviam combinado.
“Oh, atendemos muita gente do governo.”
“Que bom, vocês então já estão acostumadas”, falou Ramon.
“De certo modo, sim; mas há alguns clientes que são extremamente desagradáveis. A proximidade do poder faz muitos pensarem que podem tudo.”
“Não é o nosso caso”, apressou-se Roberto, “depois, nem temos tanto poder assim.”
Deixaram o restaurante por volta da meia-noite e foram para o hotel. Não tiveram problemas ao subir com as mulheres. Por coicidência, estavavam hospedados no mesmo andar, cada um em um apartamento. Ranon escolheu Letícia.
Divertiram-se. Elas também gostaram. No meio da madrugada os dois falaram-se pelo telefone e combinaram trocar de mulheres. Angélica e Letícia saíram rápidas e mudaram de apartamentos; percorreram a pequena distância que separava os dois, sem vestir roupa alguma.

quarta-feira, abril 22, 2009

De olhos vendados: capítulo 5

Errou de modo escandaloso. Foi ela quem ligou. E marcou para saírem numa quarta-feira à noite.
Esperou-a durante quarenta e cinco minutos numa adega no Largo do Machado. O lugar não era mal, mas estava mais para botequim do que para um restaurante em que teria um encontro com uma juíza. Achava que magistrados gostassem apenas de lugares requintados. Ali não havia quase requinte, apesar de lhe terem dito que o chope era digno. Quando já não podia esperar e pensava que ela não apareceria, pediu a soma do pouco que consumira. Ao preparar-se para sair, deu-se com uma mulher jovem; deveria ter uns vinte três anos, ou até menos.
“Moço, o senhor pode me dar um pouco de atenção.”
Olhou-a da cabeça aos pés. Ela usava mini-saia e as pernas eram brancas e compridas. Ele assustou-se. Apesar de ser jovem e de atrair mulheres também jovens, achara a figura feminina um tanto vulgar. Não estava acostumado a conversar com mulheres semelhantes a bonecas de luxo.
“Moço, você não me respondeu.”
“Ah, é que eu esperava uma pessoa e...”
“E ela não veio?... Não faz mal, estou aqui, quero diverti-lo.”
“Divertir-me? Mas como?”
“Existem muitas maneiras”, disse dengosa.
Roberto a olhou de modo penetrante. Tinha a maquiagem forte, estava um pouco borrada e seus cílios eram longos. Não deixou de demonstrar desaprovação pelo estilo da jovem.
“Mas estamos de pé, não vamos nos sentar?”, ela emitiu uma voz fraquinha e de tom agudo.
“É que eu já estava de saída...”
“Mas não vai esperar pela pessoa que você mencionou?”
Roberto levantou um dois braços como se não soubesse o que dizer.
“As mulheres se atrasam, são pessoas diferentes”, sua voz quase de menina pareceu incomodar o escritor.
Ele queria dizer que já esperara demais, que na certa ela não viria.
“Você precisa de dinheiro, ou mesmo quer que eu pague alguma coisa para você comer?”
“Pagar?”, fez cara de choro. “Assim você me ofende; não fale para ninguém, mas sou uma mulher rica.”
“Rica?” Roberto repetiu a palavra, riu de modo debochado e chegou a levantar a cabeça mostrando-se surpreso.
“Surpreso você vai ficar quando souber quem eu sou.”
“Quem você é?”
“Uma acrobata.”

Maria Zilda ficou sem ligar durante duas semanas e também não atendeu telefonema algum. Quando Roberto conseguiu falar-lhe, não se desculpou nem deu satisfação. Agiu como se nada houvesse acontecido.
Saíram mais uma vez. Escolheram um restaurante na orla, em Copacabana. Conversaram.
“Você representa bem”, disse Roberto, “poderia ser uma atriz; ou melhor, é uma atriz.
“Você precisa saber que a representação na verdade pode não ser uma representação, pode ser a verdade.”
“Como assim?”
“O que faz você crer que eu represento?”
“Durante o dia você não representa, você é uma juíza...”
“Quem disse que a função de juíza não é uma representação?, e pode ser tanto maior do que a de uma atriz de verdade. A atriz representa somente no horário da peça. No meu caso, posso representar de modo mais autêntico. Posso estar representando o tempo todo, em nenhum momento eu seria eu, ou melhor, não existiria esse eu exclusivo, mas sim todos ao mesmo tempo, ou se não todos, ao menos um de cada vez.”
“E quem seria você, afinal?”
“Aí é que está a questão. Eu poderia ser todas e, ao mesmo tempo, nenhuma.”
“Mas isso seria enlouquecedor...”
“Não, não seria, pode-se dizer que isso seja a representação total.”
“Mas quem seria você afinal, como eu lhe chamaria?”
“Por que você se desespera tanto com isso? Você precisa de que eu seja uma, a verdadeira? Você precisa de uma certeza, precisa de alguém que o ancore a um terreno seguro?”
“Isso na verdade é ameaçador!”, sua voz mostrava desespero.
“Ouça, é você o romancista. Você poderia pensar sobre essas coisas melhor do que eu. Sou apenas uma mulher que anda por aí, cada dia sendo uma diferente. E pelo fato de eu ter um nome, um cargo ou uma profissão, não significa que essa representação que você diz não ser representação seja mais verdadeira do que as outras.”
“Mas você tem documentos...”
“Oh, documentos...”
“Você tem uma carteira de identidade, um CPF...”
“Oh, um CPF! O CPF e a carteira de identidade nos salvam da esquizofrenia; os documentos que instauram a legalidade são um modo de dar sentido a essa loucura toda! Que escritor é você? O que você escreve nada vale? Também não é documento? Não criam uma outra legalidade, ou mesmo um outro mundo?”
“Eu já pensei nisso e pensei muito. Os documentos além de serem um meio de dar sentido dão poder às autoridades, não permitem a loucura, afastam-na para bem longe, encerram-na em hospícios ou prisões. A loucura é uma forma de desorganização, ou organização da desorganização, mas cada qual organizando-a a seu jeito, logo não seria suportável; seria um meio de fala por metáforas e não é possível falar por metáforas o tempo todo.”
“E a legalidade não é uma metáfora?”
“Talvez, mas sob a toga do poder, tal qual a sua; se você não a veste, está ameaçando a vida social”, disse Roberto com segurança. “Você não pode abandonar um julgamento para sair por aí fantasiada de drag queen!” Ele mostrara certa violência nas palavras, dava por vencida a discussão.
“Sei que tenho limites, mas uma mulher como eu tem prerrogativas.”
“Os magistrados sempre têm prerrogativas.”
“Não falo nesse sentido; sou uma mulher rica, tenho minhas vantagens.”
“A representação estaria mais próxima da riqueza, então?”
“De certa forma, sim. É preciso que exista dinheiro para que a representação seja possível, e que seja levada a sério, tão a sério que soaria como uma verdade.”
“E o talento? Onde entra nessa história?”
“Dinheiro e talento. E, veja, você é um escritor, seria difícil sê-lo caso fosse uma pessoa extremamente pobre.”
Os dois silenciaram por algum tempo. Roberto olhou para as outras pessoas que se espalhavam pela parte da frente do restaurante. O mar estava longe, mas ouvia-se a arrebentação. Depois seus olhos encontraram os de Zilda. Ela sorriu.
“Deixemos essas bobagens”, ela disse e pegou-lhe uma das mãos. “Vamos namorar”, sorriu mais uma vez, “talvez isso faça mais sentido.”
“Hoje vou levar você para minha casa”, disse Roberto. “Quero ver a nudez de uma juíza.”
“Não vai ver nada diferente do que há nas outras mulheres.”
“Nunca namorei uma juíza.”
“Será que é a juíza que você vai namorar?”
Ambos acabaram sorrindo.

Acostumaram-se àquele jogo. Passaram a encontrar-se uma ou mesmo duas vezes na semana. Às vezes voltavam ao assunto da representação. Nada concluíam em definitivo, mas ficava o sabor amargo de não ser possível uma representação que excluísse os papéis sociais que os dois ocupavam; ele, de escritor; ela, de juíza. Às vezes desejavam ir a conseqüências extremas, mas percebiam que os papéis vividos por amabs durante algumas horas do dia eram os fios que os ligavam à realidade e proporcionavam a lucidez de que precisavam para não serem chamados de loucos. Ainda assim encontravam-se e gostavam de representar. Maria Zilda, principalmente, era a mais extravagante. Roberto preferia adotar a representação apenas no mundo romanesco.

Dois sábados depois, quando foi ao encontro de Zilda, deparou-se com uma mulher de meia idade que dizia ser uma turista viciada em jogo e que estava perdida na cidade. Falava português, mas seu sotaque era estranho. Não podia dizer que era Maria Zilda disfarçada, pois a estatura da senhora era menor, um tanto titubeante no andar e tinha olheiras profundas.
Ele tentou saber de onde ela vinha.
“De que isso importa?”, foi a resposta que a mulher deu. Ele demorou para entender.
De repente começou a pensar o porquê de estar ali ao lado de uma estranha, num lugar em que marcara o encontro com aquela de quem gostava. Fora a mulher que lhe fizera sinal, lembrava. Mas, em seguida, começou a pensar que poderia estar sofrendo algum tipo de golpe.
“A senhora me desculpe, mas não posso ficar a seu lado.”
“Não espera alguém?”
“Esperava, mas acho que a pessoa desistiu. Trata-se de uma mulher difícil e intempestiva.”
“O que vem a ser intempestiva?”, a mulher soletrou os fonemas, teve dificuldade em pronunciar a palavra.
“É uma palavra que vem de tempestade.”
“Oh, tempestade?”
“Isso mesmo, fenômenos da natureza, às vezes devastadores.”
“Como um tufão?”, ela arremessou o vocábulo com um som final quase terminado em "om".
“Exato, a senhora entendeu.”
Roberto achou melhor partir. Foi para casa e lá se deitou. Achou que tinha de deixar Zilda. Seria a loucura total permanecer ao lado dela. O telefone tocou, mas ele não atendeu. Sentou-se à mesa, encontrou algumas folhas e pôs-se a escrever. As palavras seguidas organizavam-lhe o pensamento. Não se tratava de nenhuma frase com sentido completo, eram palavras soltas, que começavam com as mesmas letras; primeiro, a mesma consoante e a mesma vogal, depois criava uma série delas que era puxada pela primeira palavra. Quando o encadeamento se dava por esgotado, partia para outra consoante e outra vogal, dali continuava. Enumerou várias colunas que, entre si, levavam apenas a objetos isolados. No final tentou uma série de sons que já não tinham significado algum; pouco a pouco perdeu-se num universo de ecos sem sentido. Adentrava um mundo apenas de sons imaginários; vez ou outra parava e tentava pronunciar fonemas esparsos, até que resolveu escrever uma frase. “Uma mulher nua bate à minha porta”, era uma fantasia, mas não deixava de ter sentido completo. Lembrou que certa vez escrevera um conto em que se dava a cena, ficou a imaginar a história e pensou de novo que ela poderia acontecer-lhe; e caso acontecesse, qual seria sua reação. O telefone tocou. Foi atender. Era Zilda.
Depois de alguns segundos em silêncio, ouviu que ela perguntava quem era. Continuou sem responder. Bateu o telefone. Mais alguns segundos e nova ligação. Era ela de novo. Escutou-lhe a voz, a respiração pesada. Desligou mais uma vez. Foi até o bar, tomou nas mãos uma garrafa de uísque, encheu meio copo, atirou a bebida goela abaixo, entrou no quarto, atirou-se na cama. Tudo estava escuro. Dormiu em poucos minutos.

Nos dias que se seguiram não mais atendeu o telefone. Sabia que ela o procurava, mas tinha medo de encontrá-la; desenvolveu uma intensa resistência a ela. Para esquecê-la, saía a esmo pela cidade, entrava em bibliotecas, pegava livros de filosofia, história, algum romance. Esquecia-a e também esquecia a conversa que tiveram. A questão da representação doeu-lhe fundo; tratava-se de um enigma, e ela queria vivê-lo ao máximo, aquilo para ele não era possível, precisava de lucidez, precisava ter uma identidade. Era um romancista, construía mundos, estabelecia ordens, mas essas ordens não podiam ser mutantes como queria a mulher, tinham que ter alguma estabilidade. Tinha consciência de que a literatura, mesmo que utilizando a metáfora, estabelecia uma ordem, uma ordem tão conservadora como a do mundo em que se vivia, portanto o que Zilda queria extrapolava todos os limites da razão. Certa vez ela o alertara que se a literatura não suportasse tal experimento, não teria capacidade alguma de resistência ou de contra-ataque. A literatura tornava-se, sob esse ponto de vista, mais um instrumento da ideologia, mesmo que se apresentasse como contra-ideológica. Lembrava que era como querer procurar uma nova nota musical, um som inexistente nas escalas da voz e dos instrumentos. O que queria aquela mulher? Queria enlouquecê-lo; era o que ele achava.
Num dos dias seguintes, a campainha soou enquanto lia um romance. Esquecera a mulher já fazia algumas semanas. Interrompeu a leitura e foi até a porta. Estranhou que ninguém ligara da portaria. Como é que a pessoa passara sem identificar-se? Poderia ser então alguém do próprio prédio. Mas não conhecia ninguém ali, nunca emitira mais do que um ligeiro cumprimento. As pessoas nem sabiam o que ele fazia, e muito menos que era um escritor com um futuro promissor. Foi até a porta e olhou no pequeno orifício que apresentava o lado externo. Mas estava escuro, não conseguiu ver coisa alguma. Teria imaginado o som? Quando analisava tal alternativa, escutou dois dedos que lhe batiam à madeira da porta. Olhou mais uma vez.
“Quem é? Diga quem está aí?”, a voz dele soou insegura, tentava alcançar a pessoa lá fora. De repente percebeu um papel que era enfiado por debaixo da porta. Tomou-o nas mãos. Leu as letras trêmulas.”
“Abra, por favor, estou em apuros. Não deixe que me descubram.”
Abriu a porta com as mãos ainda hesitantes.
Era Maria Zilda nua.
Acabou por namorá-la terrivelmente durante boa parte da noite. Ela gemeu de prazer o tempo todo. Mostrou-se quase que insaciável. Quando ele quis saber onde estavam suas roupas e como conseguira subir daquele jeito, ela nada falou.

segunda-feira, abril 20, 2009

De olhos vendados: capítulo 4

Durante duas semanas, Maria Zilda dedicou-se quase apenas ao trabalho. Nas horas vagas, principalmente nos momentos em que não tinha sono, lia algum romance. Durante muitos momentos, enquanto exercia seu cargo com a frieza que a justiça exige, chegou a pensar naquele homem educado com quem saíra para jantar e acabara por namorá-lo por uma noite. Ele não telefonara, nem mesmo uma vez. Ela tampouco. Ficou a lembrança. Quando levantava os olhos para ouvir o defensor de uma das partes sobre alguma questão trabalhista, muitas vezes o enfado fazia que ela escapasse daquela sala de onde teriam de sair decisões senão justas ao menos próximas à eqüidade.
Ao ultrapassar a marca dos vinte dias daquele último encontro, já esquecera o assunto; ou se isso não se dera, ao menos ocupava um ponto menor no rol de suas lembranças.
Foi então que uma das poucas amigas convidou-a para uma recepção. Rachel, a anfitriã, fizera parte com ela de uma vara criminal, quando iniciavam a carreira. Seguiram seus caminhos profissionais após alguns anos, conseguindo ambas ajeitar-se no ramo jurídico que mais agradava a cada uma, que não era o criminal. Depois o contato diminuiu, mas nunca desapareceu de todo. Ao receber o convite, Zilda achou que deveria comparecer. Andava muito sozinha e estar em meio a outras pessoas não lhe faria mal.
A festa estava marcada para o clube Caiçara, na Lagoa. Zilda, durante a tarde de sábado, preparou-se para o evento. Ela mesma cuidava do cabelo e de toda a aparência. Não tolerava salões de beleza nem especialistas em pele e maquiagem; fazia tudo de modo a manter o máximo de naturalidade e discrição.
Saiu de casa em torno de nove da noite. Como era a própria Rachel que fazia aniversário, calculava que os primeiros convidados não chegariam cedo. O normal, naquelas circunstâncias, era que a frequência aumentasse somente depois das dez horas.
Encontrou a pequena ilha, onde o clube se situa, muito iluminada. Um maître aguardava os convidados e os encaminhava para a balsa que não demorava a percorrer a pequena distância entre a entrada do clube e a ilha. Já que não estava frio, as mesas, inteiramente ornamentadas e preparadas para os convidados, se espalhavam pelo lado externo dos dois salões,. Os garçons já estavam servindo aperitivos e pequenos canapés. As pessoas aguardavam com expectativa a aniversariante. Após a travessia, Zilda foi recebida por um outro maître, este de terno preto. Ele, após encontrar o nome dela na lista de convidados, encaminhou-a com muita distinção a um dos principais lugares. Ela pensou em recusar e ficar por ali, andando de um lado a outro, com a expectativa de encontrar algum conhecido; assim se manteria mais à vontade. Mas a organização da festa era rigorosa. O homem fez questão de levá-la ao lugar pré-determinado. Um garçom se aproximou com um pequeno cardápio com tudo que seria servido e perguntou a ela o que a apetecia. Ela disse que comeria o mesmo que estava sendo servido para os outros convidados. Ele curvou a cabeça e saiu com a intenção de logo voltar. Alguns músicos já executavam, numa das partes do salão principal, uma pequena peça clássica.
Zilda observou dois jovens de uns vinte e poucos anos. Eles a olharam e ela ficou a pensar se a conheciam. Sorriam, conversavam fazendo gestos largos. Vestiam ternos, o que não era comum entre a juventude, mas se mostravam muito à vontade. Outro garçom parou com a bandeja e uma garrafa de uísque escocês junto a eles. Recusaram, mas de modo polido. Mantinham a animada discussão. Vez ou outra, o de cabelos castanho-claro virava-se para onde ela estava sentada, mas logo se voltava para o amigo.
Outras pessoas entraram, chegavam juntas. E uma delas era conhecida de Zilda. Tratava-se de uma mulher alta, que também trabalhava na Justiça, mas era defensora pública. Aproximou-se e cumprimentou a juíza, ficando durante alguns minutos desfiando uma conversa sem importância. Um dos rapazes dos que Zilda observara havia pouco aproximou-se, conhecia também a defensora. Cumprimentou-a e acabou sendo apresentado a Maria Zilda.
“É um grande prazer” ela retribuiu o sorriso.
A amiga observou que o lugar era muito chique; nunca estivera ali, não estava acostumada a festas desse tipo.
Zilda nada falou, mas propôs que sentassem juntas, pois a mulher também viera só.
O dois rapazes não se afastaram delas. A defensora, que se chamava Marlene, convidou-os:
“Vamos ficar todos juntos, assim a conversa flui mais animada.”
Acabaram sentando todos na mesa que estava reservada a Zilda. Imediatamente um dos garçons aproximou-se oferecendo uma bandeja com salgados. Sobre a mesa, repousavam, de modo harmonioso, uma garrafa de vinho e outra de champanha.
“Que bebida bonita”, sorriu Roberto – era o rapaz de cabelos pretos – ao receber do garçom o coquetel. “Tequila com limão e mais alguma coisa que não consigo distinguir.”
“Deixe-me provar”, o outro, Maurício, aceitou do garçom também uma taça e os dois começaram a travar um debate sobre o possível nome daquele coquetel.
Zilda ainda não aceitara bebida alguma. Sua amiga disse ao homem que desejava água mineral com gás.
Após alguns minutos, a conversa começou a definir-se. Em meio ao silêncio que perdurou por momentos, alguém se pôs a dar a primeira tacada, e foi sobre o nome de um livro: “Arcabouço mágico”. O livro era de autoria de Roberto, um dos jovens presentes. Seu amigo considerava a publicação como a mais inusitada nos últimos tempos.
“Ah, é você o autor dessa obra tão comentada”, Zilda mostrou-se surpresa. “Li uma resenha a respeito num jornal.”
“Com toda a modéstia de um jovem que lança o seu segundo livro; realmente acho que ainda tenho muito a aprender.”
“Pretendo comprá-lo dentro de alguns dias; é que ainda não tive tempo”, falou Zilda, “confesso que a matéria despertou minha atenção. Se soubesse que encontraria aqui o autor, já o teria comprado; traria para pedir um autógrafo.”
Roberto sorriu com o fato de ter encontrado alguém que sabia do livro.
“Que bom que encontrei a senhora. Até agora, fora o jornal, não soube de quem falasse do livro ou o elogiasse. A senhora trabalha com literatura, ou coisa semelhante?”
“Não; talvez até seja interessante trabalhar nesse ramo, mas nunca tive oportunidade.”
“Maria Zilda é uma juíza muito conceituada”, falou Marlene enquanto olhava para o interlocutor de Zilda.
“Juíza?” O amigo de Roberto pareceu levar um grande susto, “não sabia que encontraria aqui uma pessoa da mais alta patente.”
“Patente?”, atalhou Roberto, “onde juiz ou juíza é patente? Você com essa mania de hierarquia militar. E aqui entre nós, juízes e militares não se relacionam muito bem.”
Mara Zilda deixou escapar um riso franco, enquanto o próprio Maurício percebeu que acabara por fazer a conversa desviar-se. Tentou consertar.
“Peço desculpas; é a maneira de falar...”
“Você nem parece que estudou no Colégio Sion”, meteu-se Roberto de novo.
“Vamos fazer uma coisa”, disse Maria Zilda, “aqui somos apenas convidados para uma festa; esqueçamos cargos ou postos de importância. Já que estamos num lugar tão maravilhosamente ornamentado, pleno de pessoas bonitas e bem trajadas, um lugar onde predomina a arte, falemos dela, da arte, e já que estamos na presença de um escritor, ouçamos algo a respeito do seu livro.”
“Oh, não”, Roberto sorriu lisonjeiro, “é tão difícil falar sobre a própria obra.”
“Sei que escritores são pessoas vaidosas; você concorda?”, continuou Zilda.
“Lógico que ele há de concordar”, meteu-se Marlene; “ele finge falsa modéstia, conheço-o de outros carnavais.”
“Isso, a palavra certa: carnaval”, disse o escritor.
“Por quê?”, quis saber a juíza.
“Porque no carnaval cometem-se exageros, e a literatura para dar certo também precisa de exageros.”
“Como Dostoiévski?”, ela quis saber.
Roberto preparou-se para falar, mas reparou que seu copo estava vazio. Olhou na direção de um dos garçons – os garçons sempre se mostravam a postos – e este entendeu o que ele desejava.
“Dostoiévski não era um exagerado, senhora”, contestou.
“Não falo num sentido amplo, sobre sua obra toda; mas ele era de opinião de que a literatura não pode existir apenas com o lugar comum”, disse Zilda.
“Não sei, não sou leitor cuidadoso do escritor russo, pode ser que a senhora tenha razão.”
“Não precisa me chamar tanto de senhora, sejamos informais. Fale então sobre o seu livro. O que o levou ao tema?”
“O tema é a própria representação.”
Marlene e o amigo acompanhavam em silêncio, ora bebericando ora servindo-se de algum acompanhamento.
“Discuto no livro os diversos tipos de representação; mas não se trata de um ensaio, e sim ficção. Talvez tenha a ver com essa questão que você tocou, um tipo de exagero que precisa estar presente para que um texto capte o leitor”, Roberto continuou.
Outras pessoas chegavam. Em certo momento viu-se a aniversariante. Os quatro levantaram-se e procuraram captar sua atenção. Fizeram movimento de que iriam na direção dela, mas a mulher, muito bonita e reluzente nos adornos, fez sinal para que esperassem; dirigiu-se a eles.
“Que bom encontrar gente jovem e bonita, quero ser sempre assim, adoro vocês todos.”
Beijou primeiro Marlene, depois beijou e abraçou longamente Zilda e por fim dependurou-se nos rapazes.
“Comprei seu livro, vou começar a ler amanhã.”
“Ainda bem, assim não vou estar mais aqui”, ele completou.
Todos riram.
“Sei que vou gostar. Se amei o primeiro, acho que o segundo ainda deve ser melhor”, depois virou-se para Zilda e acrescentou:
“Ele é uma revelação; falo sério, não é porque ele está presente.”
A seguir pediu licença e partiu ao encontro dos outros convidados. Disse que caso houvesse algum problema quanto ao serviço, que a procurassem. Queria contentar todos os gostos.
Uma banda de música substituiu os músicos iniciais e começou a entoar um tipo de jazz. Apareceu em seguida uma mulher que, numa atitude cool, pôs-se a cantar. As pessoas aplaudiram.
Roberto aproximou-se mais de Maria Zilda; gostara da presença dela, percebeu que era uma mulher de personalidade, alguém capaz de expressar as próprias opiniões. Durante algum tempo, porém, não voltaram à literatura.
“Como é o processo de criação dos seus personagens?” Zilda perguntou, pegou a taça – tomava agora vinho – e esperou pela resposta.
O rapaz encenou um pouco, como que procurando valorizar seus pequenos gestos, depois falou:
“Eles aparecem.”
“Aparecem?”
“Simplesmente aparecem.”
“E não há um trabalho preparatório?”, insistiu Zilda.
“Quando há, não sobrevivem, ou mesmo renascem em outros.”
“Há oficinas por aí que ensinam muitas técnicas; parece que há jovens interessados em freqüentá-las...”
“Nunca pisei em uma.”
“Você não acredita em exercícios?”
“Acredito, mas não do jeito como são ensinados nesses lugares. As oficinas acabam servindo para que escritores ganhem dinheiro dando aulas; é um modo de sobrevivência para quem quer viver apenas da escrita.”
Maria Zilda sorriu, repousou a taça sobre a mesa. O rapaz ofereceu mais um pouco de vinho. Ela aceitou. Começava a gostar daquela mulher; ela tinha idade de ser sua mãe.
Marlene e Maurício perderam-se numa conversa paralela, que não era necessariamente sobre literatura. Ora ouviam a música, ora voltavam a alguma observação; pareciam fazer comentários sobre a festa e sobre as pessoas.
Lá pelas tantas, os músicos foram substituídos novamente. Dessa vez, a festa tornava-se pouco a pouco dançante. Uma banda que tocava rock ou mesmo algumas baladas fez que as pessoas se agarrassem e fossem para o meio do salão. O som tornou-se mais alto, impossibilitando a conversa. Roberto achou importante que isso acontecesse; temia estar sendo enfadonho e, além de tudo, já começava a sentir que o excesso de bebida lhe pesava a dicção. Com algum cuidado, falou:
“Sinto um pouco de receio ter de convidar uma juíza para dançar...”
Esperou que ela respondesse. Mas ela não o fez, apenas sorriu, levantou-se e tomou-lhe a mão. Dirigiram-se também para o centro do salão.
No dia que seguinte, Maria Zilda dormiu mais do que de costume e, quando acordou, percebeu que alguém lhe mandara um buquê com orquídeas e um cartão com dizeres elogiosos.
“Gostei muito de ter conhecido você. Conto que não me ‘julgue’ mal.” Abaixo vinha a assinatura: Roberto.
“Será que esses rapazes não dormem?”, pensou ela, ainda com muito sono. Depois sorriu ao observar o vocábulo “julgar” em destaque. Gostara de ter travado tal tipo de relação; apenas pensava como faria para levar o relacionamento adiante, e onde aquilo acabaria.
Por volta das quatro da tarde, Zilda atendeu o telefone. Era ele, Roberto. Ela, primeiro, agradeceu as flores, depois, ouviu-o. Ele queria encontrá-la à noite, precisava falar-lhe, dizia que era urgente.
“Urgente? De que se trata?”
“De literatura.”
“Então, não é urgente”, insistiu ela.
“Claro que é; não há nada mais urgente do que a literatura.”
Mara Zilda sorriu sozinha. Roberto não podia ver seu rosto. O sorriso era amplo e ela adivinhava o que vinha pela frente.
Roberto teve de esperar alguns dias para que ela aceitasse um encontro. Falaram-se duas ou três vezes pelo telefone durante a semana seguinte à festa. Enfim, marcaram para nove horas da noite de sábado, no restaurante Fiorentina.
Havia muito frequentara o Fiorentina. Mesmo antes da reabertura da casa tradicional. O restaurante primava por clientela importante, selecionada, portanto gostava do lugar. Na verdade, gostava também do bar do Sofitel. Mas uma mulher não pode estar sozinha durante muito tempo no mesmo lugar, desperta interesse até mesmo nos garçons. Depois de duas ou três visitas ao belo bar de estilo inglês, onde se podia ouvir música instrumental como algum jazz ou blues, voltou ao mesmo Fiorentina. Ali, era mais discreto.
Não é que Maria Zilda sempre saísse e quisesse uma vida boêmia. Nada disso. Na maior parte dos dias, voltava a casa, tomava um banho quente, ouvia música e lia alguma coisa. Mais tarde via algum telejornal, de preferência na TV fechada. Não dormia muito tarde.
Voltava, àquela noite, à famosa casa situada no Leme. Ao entrar, o maître a reconheceu e fez um cumprimento respeitoso. Depois, perguntou o número de lugares que ela queria.
“Apenas dois, e que seja discreto.”
O homem a levou até uma das mesas laterais, de onde podia apreciar quase todo o ambiente; mas, devido à posição transversal que ocupava, estaria ela e o acompanhante livres de olhares indesejados.
Roberto chegou pontualmente e se surpreendeu ao ser de pronto identificado pelo mesmo maître e de ser levado até onde estava a mulher.
“Que surpresa, você é pontual.”
“Sou uma juíza.”
Sentiu-se um pouco embaraçado; não esperava por aquelas palavras. Tranqüilizou-se quando Zilda abriu um sorriso e pediu que não se assustasse. Não costumava falar assim.
Pouco a pouco foram sondando o terreno e puderam conversar de modo mais solto. Pediram para beber coquetéis suaves, sem ácool, que mais impressionavam pela cor. Para comer, permaneceram longamente apenas beliscando o couvert.
“Quer dizer que há algo urgente quanto à literatura?”, quis saber Zilda.
“Não exatamente”, Roberto falou e virou-se para ela, como se quisesse observá-la com vagar e em detalhes.
“Como, não? Por que você quis então encontrar comigo?”
“Porque achei você uma pessoa digna de habitar as páginas dos melhores romances.”
“Ah!”, exclamou e sorriu mais uma vez. “Talvez você não se engane...”
“Quer dizer que você mesma também acha?”
“Você talvez tenha oportunidade de me conhecer melhor; daí poderá ter sua opinião.”
A conversa assumiu um tom formal; aquilo incomodava o escritor. Queria quebrar a barreira que surgira entre os dois e experimentar um pouco de camaradagem. Foi então que falou.
“Conheci você semana passada na festa da Rachel, esperava conversar hoje com franqueza, mas sinto que há algo entre nós que se apresenta intransponível. Peço desculpas.”
Zilda riu mais uma vez; simulou tirar a máscara e roçou os longos dedos sobre uma das mãos do rapaz. Aquilo pareceu amenizar a situação.
“Você sabe que sou um romancista, interesso-me pelas pessoas, achei você de uma intensa personalidade...”
Ela então interveio:
“Você quer realmente me conhecer ou quer construir um personagem para uma de suas histórias?”
Roberto franziu a testa, tentava disfarçar mas, na verdade, desejava a mulher.
“Se quer me conhecer, chegue mais perto, por favor”, falou Zilda, “se quer até me namorar, talvez eu diga que sim, mas não me convide para outros fins; não gosto de ser usada, meu amor.”
Durante alguns segundos, ele não soube o que dizer. Embora tivesse toda a experiência em criar personagens, não esperava por uma mulher daquele tipo. Ao mesmo tempo não precipitou o que lhe trouxera até aquela mulher.
Ela ainda complementou:
“Não tenho vergonha de dizer isso; e olha que tenho idade de ser sua mãe.”
“Quando se é hábil na escrita, não se tem a mesma destreza num confronto direto”, fora a fala de um dos personagens do seu primeiro livro, lembrou-se dela e atirou-a em direção à mulher.
“Interessante suas palavras”, Zilda não conhecia o livro nem a fala do personagem. A seguir, continuou: “esqueça a mãe, fica mulher.” Escorregou até ele e beijou-lhe a testa.
Dali em diante a conversa tornou-se amena.
“A literatura na verdade é urgente”, voltou Roberto ao assunto, “não se pode viver sem a fantasia.”
“Há muitos modos de se realizar a fantasia, mas também acho que a literatura é o modo mais adequado.”
As últimas palavras, ditas por Zilda, fizeram que ele se alegrasse.
“Você pensa mesmo assim?”
“Penso; não mentiria a você. Leio em média cinco livros por mês. Conheço alguma coisa.”
“Puxa, que bom conhecer uma mulher que têm essas opiniões...”
O garçom aproximou-se com uma garrafa de vinho tinto. Zilda alertara o maître a respeito da hora exata de trazê-la. Abriu-a com estilo e fez o gesto de que um deles experimentasse a bebida. Foi ela quem provou. Sorriu em aprovação. O garçom encheu cada taça até a metade, deixou a garrafa sobre a mesa e afastou-se. Roberto foi o primeiro a levantar a taça para fazer o brinde. Tilintaram e beberam alguns goles.
O rapaz olhou de modo mais intenso para os seios de Zilda. Ela trajava um vestido bege com estampas escuras, que não disfarçava seus seios volumosos. Ela estava elegante e tinha o corpo em forma. Notou que ele a olhava.
“Conversar sobe literatura às vezes pode ser enfadonho”, ela se expressou assim e levantou a taça para beber mais uma vez.
Roberto não teve o que dizer; apenas pensou e concluiu que tinha diante de si uma mulher difícil. De repente ouviu:
“Você sabe representar?”
“Representar? Como no teatro?
“Isso, como no teatro.”
“Não, não tenho essa habilidade; posso até escrever as falas, mas representar seria um caos.”
“Você já escreveu algum texto para ser representado?”
“Escrevi um, uma vez, mas foi coisa de amador; não creio que faria sucesso hoje.”
“E por que não tenta escrever outras vezes?”
“Sinto-me tolhido quando escrevo textos onde só existem diálogos.”
“Eu vou representar para você.”
“Você é atriz?”
“Depende da ocasião.”
“Em que teatro se dará o espetáculo?”
“Não será no teatro.”
“Onde então.”
“Você saberá.”
Maria Zilda desviou a conversa. Falaram sobre alguns livros, discutiram um pouco de filosofia, depois enveredaram por uma discussão que tinha como destaque um autor americano que falara que a literatura estava com os dias contados. A conversa também escapou em outro rumo quando ela acrescentou:
“E o que não está com os dias contados?”
Roberto riu. Diria que não foi isso que aquele autor quisera dizer, mas preferiu o silêncio. Tomavam os últimos goles da garrafa de vinho.
Ela não aceitou ir mais a lugar algum, alegou cansaço. Desejava a própria casa e a solidão. Deixaram em aberto o próximo encontro.
Roberto, pelo que conhecia das mulheres, chegara à conclusão de que não a veria mais. Ao menos em encontros como aquele. Achou que agira mal, que maculara a própria imagem. A mulher era exigente. Mesmo que ele fosse bom escritor, não conseguiria convencê-la a respeito de coisa alguma. Ela procuraria alguém mais interessante.

sábado, abril 18, 2009

De olhos vendados: capítulo 3

Dois dias depois, enquanto tomava chá no salão da cafeteria, no subsolo do Ed. Avenida Central, Zilda esquecia por alguns momentos os grossos processos que trazia na bolsa para pensar na aventura que vivera durante a madrugada na boate. Às vezes censurava a si mesma pelo comportamento intempestivo, pelos disfarces e frequência a ambientes que podiam complicar-lhe a vida. Caso alguém descobrisse sua verdadeira identidade, o que aconteceria? A desembargadoria tentaria impedir que ela exercesse o cargo? Em muitas ocasiões, os superiores fingem que nada sabem, agem como se nada acontecera, mas no momento em que há o interesse de alguém, um parente ou mesmo amigo próximo, não deixam de exercer o poder e investigam a fundo a vida daqueles de quem desejam o cargo, dando ouvidos até mesmo a boatos. Portanto era preciso ser cautelosa. Não se sentia culpada. O que estava fazendo não era errado. Gostava de divertir-se, e os disfarces, em meio às atribulações diárias, atuavam como uma espécie de relaxamento da tensão. Sabia que era bom realizar-se com a carreira que escolhera, que as atividades profissionais deviam bastar-lhe; mas, será que se vivia apenas para isso? Será que não tinha o direito a divertimentos que a deixassem num estado eletrizante? Certa vez ouvira de uma amiga que muitas pessoas extasiam-se com o perigo. O risco torna-as excitadas. É mais ou menos como acontece quando frequentamos um parque de diversões. Por que escolhemos, principalmente quando ainda jovens, o brinquedo mais perigoso? Será que é apenas porque precisamos de autoafirmação? Ou será que há um desejo oculto, um desejo que temos dificuldade de nomear e que só se realiza ante o perigo? Dizem que, na relação sexual, o momento do gozo nada mais é do que uma centelha de êxtase ante a perspectiva da morte. E, na verdade, essa morte ocorre. Após o orgasmo, cai-se numa atitude de inação, que não deixa de ser uma metáfora do próprio fim. Aquele que supera esses momentos e continua impetuoso, sente-se, talvez, uma espécie de fênix. O ato de morrer e renascer, instantes de ressurreição, estabelece de modo perene o prazer de se trafegar e tocar corpos ante a perspectiva do abismo.
Zilda sentiu um arrepio. Olhou em volta, mas as outras pessoas conversavam entre si ou – principalmente as sozinhas – mergulhavam os pensamentos nas xícaras de chá ou nas taças de suco de laranja.
No dia seguinte, após colocar a leitura dos processos em dia, recebeu o convite de um promotor de justiça para jantar num restaurante em Ipanema. Ela aceitou. Marcaram para nove horas. Ela também permitiu que ele a apanhasse em casa.
Nesse dia, nada de disfarces, Maria Zilda era ela mesma. Estava exuberante. Vestira-se com uma roupa que a tornou uma senhora de aspecto bem sucedido. Fazenda de primeira, corte especial, jóias e o cabelo com um prendedor pequeno mas capaz de brilhar sob poucas luzes.
Quando já estavam sentados à mesa do restaurante, enquanto ela olhava o cardápio, o homem sussurrou:
“Nunca saí com uma mulher tão maravilhosa como você.”
Ela o olhou por cima dos óculos:
“Você está sendo muito delicado. Já não sou jovem. Há muitas mulheres que conseguem manter-se dentro dos padrões de beleza que os homens dos dias hoje têm em mente.”
A conversa ia e vinha. Via-se que seu acompanhante estava fascinado. Não a cortejava apenas por delicadeza. Zilda sabia, mas viera porque precisava de disfarce. Não como os usuais, mas para que as pessoas a vissem e comentassem que ela era uma mulher normal. Na verdade estava usando aquele cavalheiro. E, quando deu conta disso, sentiu-se um tanto vexada.
Jantaram; beberam uma garrafa de vinho tinto. As luzes do restaurante eram baixas nas laterais. Os garçons acompanhavam todos os movimentos dos freqüentadores. Não deixavam copo ou taça vazios. Traziam o que havia de melhor e procuravam mostrar-se sempre solícitos. Havia em outras mesas mulheres com roupas que reluziam, acentuando o desejo de serem observadas. As mulheres são mais afeitas a essas coisas; adoram exibir-se. Maria Zilda comeu até o último pedacinho da sobremesa. Achou tudo maravilhoso. Sorriu o tempo todo, deixando o homem que a convidara muito feliz.
Já havia muito que ele vinha fazendo convites e ela esquivava-se. Naquele momento, acreditava, acertara. O enamorado pegara-a num bom dia, ou numa boa noite, estava feliz. Ela, por sua vez, representava; talvez o próprio papel, mas representava. Seu prazer não era aquele, tentava, no entanto, passar credibilidade como atriz.
Quando acabaram, ele surpreendeu-se com uma palavra dela. Apenas uma. Que saiu em forma de pergunta.
“Namoro?”
Ele a olhou enquanto esperava pela iniciativa dela para deixarem o local. Talvez pensasse que ela embriagara-se com a pouca bebida. Ouviu de novo.
“Namoro?”
Agora com o segundo “o” mais aberto, tornando a palavras mais pessoal.
Saíram do restaurante. O manobrista entregou-lhe o carro e ele pôs-se a dirigir. Não sabia o que dizer nem para onde ir. Mas levá-la em casa parecia desperdício. Guiou o veículo até a orla marítima. O ar que vinha do oceano invadiu-lhes os pulmões, embora trafegassem com os vidros fechados. Maria Zilda abriu a janela e respirou fundo, de olhos fechados.
“Deseja ir a mais algum lugar?”, perguntou suave, temeroso. Não queria encerrar o passeio de modo abrupto. Conhecia a mulher, ela às vezes era incisiva.
“Quem sabe você não me convide para ouvir uma música, num lugar de luz baixa, onde o som apenas envolva nós dois?”
Ao fazer a curva no final do Posto 6, trafegavam no sentido de quem vai para a Lagoa.
O apartamento do promotor era grande. Apesar de morar sozinho, não poupava esforços para ter o que chamava de apartamento onde a beleza jamais deixa de estar presente. Apreciava convidar pessoas para beber, ou mesmo para conversar. Viera de São Paulo, precisava fazer amigos, os parentes eram poucos e não havia nenhum no Rio. Uma vez que era relativamente jovem, gostava de festas. O apartamento servia. Mas tudo acontecia na maior discrição, sem grandes ruídos, sem qualquer tipo de incômodo para a vizinhança.
Som de orquestra espalhou-se pela sala. Havia alto-falantes embutidos no teto, o que dava à musica possibilidade de expansão. Ouviram uma sonata, silenciosos. Quando esta acabou, ele trouxe uma garrafa de champanha. Abriu-a. Serviu à mulher e depois encheu a própria taça. Brindaram.
Maria Zilda deixou-se envolver por um abraço demorado. Correspondeu ao beijo que ele oferecera-lhe. Após alguns segundos, ajeitaram-se sobre a poltrona larga. Ela olhou ao redor, parecia procurar alguma coisa.
“Há algo que você deseja?”
“Não”, ela sussurrou, “estou olhando a decoração.”
Ele aumentou a luz, através de um pequeno comutador que ficava junto a uma mesa lateral. Quadros se enfileiravam na parede oposta. A mulher pôde perceber a variedade de telas que ornamentavam o apartamento. Embora algumas trouxessem ao ambiente o traço moderno, tendiam ao clássico.
Beberam o champanhe, quase sem palavras. Zilda percebeu que seu anfitrião era vagaroso; talvez temesse que algo desse errado. Esperava por ela; dava mostras de que não desejava desagradá-la. Sentia-se bem ali, mas será que ele não ficaria no encalço dela depois desse dia? Será que a importunaria? Por momentos achou que não tomara a atitude correta quando o incentivou a convidá-la ao apartamento dele. Tudo estava muito bonito e agradável, mas temia as consequências. O que faria dali em diante? Diria que desejava ir embora? Não seria boa a solução. Começou a suspirar pelas suas saídas anônimas e disfarçadas; além de não ter de dar satisfação a ninguém, podia manter a máscara pelo tempo que desejasse. Na situação em que se encontrava, não seria elegante tentar desvencilhar-se do homem tão de repente. Pensou mais um pouco, enquanto ele aproximou-se e alcançou-lhe o rosto. Ela representou uma mulher em início de paixão. Cedeu. Os braços dele desceram-lhe as costas e pararam no pedaço que antecede a cintura. Ele a puxou para si e quis que ela recostasse sobre seu tronco. Zilda obedeceu. Ficaram assim por longos minutos.
A mulher disse que precisava ir ao toalete. Ele apontou a porta correspondente. Ela tomou mais um gole da bebida, pousou a taça sobre a mesinha, levantou-se e caminhou a passos suaves, levando a bolsa consigo. Chegara à conclusão do que faria para acabar com aquela noite de forma mais rápida; mas de modo que não o ofendesse.
Deixou a bolsa sobre um aparador, onde havia cremes e perfumes; olhou-se no espelho, retocou os cantos do rosto, passou uma camada suave de batom. Começou então a colocar o plano em ação. Tirou toda a roupa, sem pressa. Procurou um lugar para colocá-la de modo que não ficasse dobrada e marcada. Olhou-se mais uma vez e viu seu reflexo na lâmina do espelho. Não estava má sua silhueta. Manteve-se sobre os sapatos de salto e segurou a bolsa. Saiu do banheiro, com muita naturalidade; voltou e sentou-se no mesmo lugar onde estivera.
O homem, ao repará-la, teve ímpetos de tomá-la nos braços com violência e deitá-la ali mesmo, mas conteve-se. Sorriu levemente e fingiu estar acostumado àquele tipo de atitude. Maria Zilda também sorriu e o puxou para si.
Namoraram longamente. Na poltrona e mesmo sobre o tapete.
Mostrou-se uma mulher ardorosa.
Quando acabaram, ele falou, ainda deitado junto a ela:
“Nunca vi você com homem algum, fiquei a princípio temeroso de convidá-la...”
“Não tenho namorado”, ela disse, “nem tenho intenção de ter.”
Ele permaneceu em silêncio. Apesar de todos os movimentos ousados daquela mulher, compreendeu que jogava um jogo difícil, com alguém que se mostrava quase impossível de ser batido.
“Já teve algum?”, a pergunta saiu quase que indesejada; depois, reparou que não marcara ponto com a investida.
Ela apenas disse:
“Alguns.”
No meio da madrugada, quando estava pronta para partir, beijou-o mais uma vez. E, talvez ainda com a finalidade de confundi-lo mais um pouco, sorriu e disse:
“Quando era mais jovem, mais ou menos aos vinte e poucos anos, tive um namorado. Ele era muito avançado para época. Me deixava nua em quase todos os lugares para onde me levava; e muitas vezes eram lugares públicos.”
Ele teve vontade de perguntar o que se sucedera, mas não ousou, apenas sorriu.
Maria Zilda não permitiu que ele a levasse em casa. Telefonou para que viesse um táxi. Apesar de muitos os protestos do homem.

quinta-feira, abril 16, 2009

De olhos vendados: capítulo 2

Durante duas semanas Zilda esteve às voltas com a leitura de um processo muito extenso. Tratava-se de uma ação movida por um grupo de pessoas que se sentia ludibriado por um empresário fraudulento. Ela precisou de noites inteiras dedicadas à questão. Quando tinha algum tempo vago, consultava compêndios sobre o tema. Era perfeccionista, queria a decisão mais acertada.
Nos poucos momentos vagos, tentava ler um romance. Gostava de, ao mesmo tempo em que se dedicava ao trabalho, estar fazendo algo que a distraísse. A leitura de romances era um tipo eficaz de distração. Caíra-lhe nas mãos um romance de uma autora russa que escrevera sua obra em francês. O livro chamava-se Suíte francesa. No começo achou que era uma narrativa comum, dessas que a gente lê e logo esquece, mas depois descobriu que se tratava de uma história pungente, ocorrida em meio à Segunda Grande Guerra. Sentiu pena de não poder dedicar-se àquela leitura de modo exclusivo. Como os processos tomavam-lhe grande parte da noite, a leitura do livro era muito desejada, mas pouco avançava.
Duas semanas após a última saída noturna, resolveu dar a si uma noite de prazer. Começou a pensar o que poderia fazer. Gostava daqueles disfarces, de sair como outra pessoa. Durante alguns anos tentara fazer análise psicanalítica para descobrir o motivo daquela ânsia de representação. Mas trocara umas tantas vezes de analista, que concluíra que aquilo não era para ela. Lembrou de uma amiga que gostava de se fazer de ex-hippie e que freqüentava boates que tocavam músicas dos anos de 1960, gostava de Janes Joplin. Quis arrumar-se de modo semelhante. Vestiu-se, mas achou-se ridícula quando se olhou no espelho. Decidiu então usar uma peruca de cabelos compridos castanho-claro. Vestiu uma blusa que deixava seus seios volumosos e insinuantes. Experimentou um tipo de minissaia. Não era curta, mas sentiu-se nua com aquela roupa. Faltava a sandália. Optou por uma de meio salto. O conjunto combinava. Mas parecia ser ela ainda, Maria Zilda. Tinha que intensificar o disfarce. Com um batom de um vermelho carmesim cobriu os lábios. Para completar, levou ao rosto óculos escuros. Era noite, mas esses óculos eram a única maneira de livrar-se da própria personalidade. Talvez na boate pudesse tirá-los. Caso não o fizesse, ninguém tinha nada com isso. Poderiam achá-la louca, mas pouco se importava. Perfumou-se com um perfume extravagante, tomou nas mãos a cigarreira, colocou-a na bolsa e estava pronta para sair.
Na rua, ao embarcar num táxi que chamara pelo telefone, reparou quando duas adolescentes olharam em sua direção e comentaram alguma coisa. As moças talvez opinassem que ela seria uma mulher autêntica. E na verdade era. Chamava-se naquela noite, Adélia.
Quando entrou na boate, o recepcionista perguntou se fizera reserva ou se pertencia a algum grupo. Ah, o eterno problema das reservas. Como poderia saber quando fazer reserva se decidia ir aos lugares de repente e sozinha? Disse que pertencia a um grupo que se reunia naquele lugar às quartas. Sabia que havia muitos desses grupos, que marcavam festas para quase todas as semanas. O homem citou o nome de algumas personalidades. Ela disse que acreditava que seu grupo estava um pouco atrasado, mas que não demoraria. O funcionário deu-lhe uma insígnia para que colocasse na blusa. Assim ela entrou.
Não havia muitas pessoas na pista. Quase todas as mesas já estavam tomadas e nelas casais ou grupo de amigos conversavam. Como ainda era cedo, a música era lenta e o ambiente tranquilo. O garçom surgiu como por encanto com a bandeja cheia de copos de uísque. Ofereceu um e ela aceitou. Reparou que era permitido fumar. Abriu a pequena bolsa, tirou um cigarro e o acendeu. Numa das mesas, viu um casal num beijo demorado. Não se incomodavam com as outras pessoas. Entregavam-se totalmente um ao outro, como se tivessem apenas aquela noite para amar. Reparou uma mulher de uns trinta e poucos anos que se levantou de uma das mesas. Seu vestido parecia apenas uma blusa, era curtíssimo. Numa das extremidades da pista de dança, viu dois rapazes conversando; um deles a mirava com insistência. Pouco a pouco a música foi ficando mais rápida; as pessoas começaram a mexer mais o corpo, acompanhavam o ritmo. Os rapazes animaram-se, a pista tornou-se mais freqüentada e o que a olhara veio para onde estava Adélia. Tomou-a pelo braço num gesto convidativo e a puxou para o centro, bem em meio às outras pessoas. As luzes rodopiavam em várias cores, incentivam um delírio que apenas começava. Maria Zilda deixou-se envolver pela música e pelo homem. Assim permaneceram durante várias músicas, algumas mais rápidas, outras, menos. Quando o ritmo permitia, ela era abraçada por seu par e deixava-se levar, sempre acompanhando-o nos movimentos. Em algum momento pediu licença e tirou da bandeja de um dos garçons mais um copo de uísque. A bebida a deixava animada, numa intempérie que não ocorreria caso estivesse sóbria. O rapaz a acompanhava, mas tomava cerveja. Em meio ao som alto, não era possível conversar; voltaram então para a pequena pista e dançaram. Reparou que muitos casais beijavam-se na boca. Maria Zilda não iria tão longe, mas Adélia poderia.
“Tira um pouco os óculos”, a voz do rapaz lhe chegou ao ouvido após algumas tentativas vãs, em meio ao barulho e à agitação.
Ela por meio de gestos fez que não, estava bem assim.
“Por que os óculos?”
Ela fez alguns gestos e pôs-se a rodopiar como se não tivesse entendido o que ele perguntara.
Após mais algumas músicas, pediu licença e foi ao toalete. Lá havia outras mulheres. Ouviu de uma delas a respeito de um rapaz que viera naquele dia, com quem tivera um breve namoro. A outra respondia que não via nada de mais, pois se já nenhuma relação tinha com ele, não deveria cumprimentá-lo. Fingisse que não o reconhecia.
“Esse seus óculos é show”, disse uma mulher, “você soube escolher bem, serve mesmo para noite, você ficou uma gata”, sorriu para ela.
Adélia ao sair não mais queria encontrar o rapaz. Como faria para que dali para frente ele não a assediasse? Dirigiu-se para o bar. Lá casais conversavam com mais tranquilidade, porque a música não chegava com tanta intensidade. Alguns homens estavam sozinhos e permaneciam junto ao balcão. Havia quem tomasse cerveja, taça de vinho e até mesmo quem tinha junto de si uma garrafa de uísque. Um senhor sorriu para ela e pediu para que se aproximasse. Adélia o atendeu.
“Rui, é um prazer estar junto a uma mulher encantadora”, ele era baixo, um pouquinho gordo, mas parecia ser simpático. Tinha cabelos apenas nas partes laterais da cabeça.
“Adélia, também fico feliz em conhecê-lo.”
“Conhecê-lo?, que charme!”, espantou-se com a maneira de ela falar.
Ofereceu a ela a bebida, pediu ao garçom um copo com algumas pedras de gelo e colocou um pouco de uísque.
“Basta, por favor, acho que já bebi demais.”
“Essa líquido dourado e glorioso nunca é demais.”
O bar ficava no fundo, de onde se podia ver todo o ambiente. Àquela hora já havia muitas pessoas na boate. Ela olhou ao redor e observou que as luzes moviam-se, que não apenas as pessoas balançavam-se ao sabor da música rápida, mas que tudo parecia girar. As luzes e a escuridão no intervalo de cada mudança de movimento dos pequenos holofotes eram mergulhos no negrume que há no espaço vazio do céu, onde o brilho das estrelas chegam rarefeitos. O rapaz que estivera durante a maior parte do tempo com ela a encontrou.
“Você sumiu, estava à sua procura.”
“Você então é um bom investigador”, falou enquanto descansava o copo, após ter tomado mais um gole de uísque.
“Vamos, a pista está fervendo.”
“Prefiro ficar aqui; ah, queria apresentar a você o meu namorado”, apontou para o senhor que conhecera havia pouco.
Este, sem demonstrar surpresa, estendeu a mão ao jovem, disse o nome e completou com: “é um imenso prazer”.
Depois que desistiu de Adélia e afastou-se, ela voltou-se para Rui e disse:
“Você me salvou, obrigada, já estava cansada dele, assediou-me desde que cheguei.”
“Eu que agradeço por ter sido promovido a posto tão honroso.”
“Posto?”
“Por que não?”
A música romântica fez que os casais se abraçassem; era uma balada, incentivava namoros. Muitos se beijaram na boca. Não teve coragem de se voltar ao homem que estava a seu lado. Sempre gostara da espontaneidade desses jovens, mesmo daqueles que já entravam pelos anos e demonstravam o mesmo ardor. Agarram-se e beijam-se com tanta facilidade. Apenas concluiu o pensamento, sentiu a mão do homem a tocar-lhe os ombros. Depois ele colocou-se à sua frente, abraçou-a e ensaiaram alguns movimentos que não eram bem os de uma dança. Seus corpos se tocaram. Ela pode sentir o calor que o corpo dele emanava. Então também o abraçou e fez que ficasse mais apertado a si. Ele exalava álcool; ela, porém, nada podia reclamar, bebera já três doses, seu hálito, portanto, não deveria ser diferente. Foi então que o beijou. A espontaneidade das outras pessoas e o efeito da bebida ajudaram-na. Precipitara-se, mas não se arrependia.
Durante cerca de duas horas ficaram num namoro apertado, um junto ao outro; ora iam até a pista, ora voltavam ao bar, onde a garrafa de uísque os esperava. Enquanto dançaram, permaneceram bem próximos. Não admitiram a intromissão de homens ou mulheres que se aproximavam remexendo o corpo, em busca de cumplicidade, mesmo que apenas na sintonia dos movimentos.
Já ia alta a madrugada quando ela percebeu que tinha de ir. Caso contrário, não manteria o disfarce. O mínimo que aconteceria era ter de revelar onde morava. Não desejava deixar tal pista. Manter-se anônima custava caro. Pediu licença e foi ao toalete. Ao voltar, disse:
“Preciso partir”, sua voz tinha o timbre trágico das artistas de talento.
“Levo você.”
“Não é possível.”
“Mas, por quê?”
“Espero que compreenda.”
“Mas eu não poderia deixar você ao menos nas proximidades...”
“Volto de táxi.”
Rui olhou com certa tristeza. Já tivera muitas mulheres, passara por várias alegrias e desilusões com elas; pressentia que, aquela à sua frente, elegante, de saia curta, não seria de fácil conquista. Tinha a experiência dos velhos amantes, sabia que não devia insistir. Mostrou-se suave.
“Deixe-me beijá-la.”
Adélia não só permitiu o beijo como tocou com ambas as mãos as costas do homem, trazendo-o mais próximo. Ao mesmo tempo fechou os olhos e os manteve assim para que ele a observasse; deixara nas pálpebras cerradas uma ponta de volúpia que ele não deixou de reparar.
“Acompanho você até o lado de fora.”
“Não é preciso, peço que fique.”
Tocou-lhe o rosto com mais um beijo, depois deu as costas e partiu.

quinta-feira, abril 09, 2009

De olhos vendados: capítulo 1

A avenida Chile sempre foi uma via de grande importância para muitas pessoas que trabalham no centro do Rio; de alguns anos até os dias de hoje, passou também a ter muita importância para advogados, promotores e demais pessoas que atuam na Justiça do Trabalho. O imponente prédio fica na rua do Lavradio, e a Chile é, para quase todos, passagem obrigatória. Maria Zilda é uma das que freqüentam o local. Poucas vezes vem no próprio automóvel; é mais comum vê-la chegar de táxi. Mas há dias em que prefere vir de metrô, saltar na estação Carioca e percorrer o pequeno trecho, que é agradável, desde que o clima esteja ameno. É bom andar pela avenida, olhar de relance o espaçoso edifício da Petrobrás, o do BNDES, e empreender a caminhada a passos macios, perdida em pensamentos, ainda distante do que terá de enfrentar quando entrar em seu gabinete. Maria Zilda é juíza.
Numa manhã de quarta-feira, optou pelo trajeto a pé. A estação do metrô já ficara para trás e ela margeava a catedral. Reparou um homem dentro de um veículo, que a observava com interesse. O carro era um Citröen, desses novos, de cor vinho. O desconhecido parecia aguardar uma vaga para estacionar, descobriu a mulher elegante, de óculos escuros, roupa sóbria, firmou os olhos nela. Ela continuou seu trajeto sem dar importância.
Gostava de andar furtiva pela cidade, sem que pessoa alguma a reconhecesse. Na maioria das vezes o conseguia. Costumava ir a um café, no subsolo do Edifício Av. Central. Na verdade o local era uma cafeteria que ficava no corredor à direita de quem desce a escada rolante pela entrada da Rio Branco. Ali, acomodava-se em uma das mesas laterais, mais ou menos na metade do salão. A garçonete vinha servir-lhe, trazia um enorme cardápio. Achava aquilo tão engraçado; um cardápio enorme e depois um salgado tão pequeno, de farinha integral, pastel de forno de berinjela. Tomava um chá preto; demorava-se. Vingava-se do dia estafante, de todos os problemas que a circundavam. O lugar era requintado, com pessoas bem trajadas, pessoas com ares de importância.
Já vira o homem do automóvel vinho, tinha certeza, num final de tarde, naquela mesma cafeteria.
Maria Zilda cruzou a entrada do prédio da Justiça sem olhar para ninguém; depois do hall, deu mais alguns passos à esquerda e tomou o elevador exclusivo para os magistrados; subiu sozinha.
O dia-a-dia de um juiz ou juíza não é fácil como parece para a maioria das pessoas. Muitos acham que quem ocupa tal cargo é um privilegiado. Pensamento rasteiro e desprovido de consistência. Esse tipo de profissional sempre se vê às voltas com uma quantidade inumerável de processos. Sua capacidade de leitura precisa ser tamanha que, caso decidisse ler apenas romances, conseguiria-o com desembaraço; leria pelo menos um por dia, e dos grossos. A parafernália jurídica que ocupa o gabinete de muitos juizes seria suficiente para fazer qualquer um desistir de ao menos pensar em seguir o caminho da magistratura. Existem, no entanto, aqueles que são teimosos. Enveredam pelo Direito e não esmorecem enquanto não obtém a aprovação e nomeação para tal cargo. Maria Zilda pertencia a tal estirpe. Inumeráveis pareceres, instruções, ordens, audiências e, por fim, sentenças – estas exigiam sempre muita reflexão – deviam ser emitidos durante um dia. É bem verdade que a uma juíza não é necessário olhar para o acúmulo de compromissos e ser tomada pelo estresse. Sempre se dava um jeito. A justiça é morosa, todos sabem, e, da mesma forma, sabem que precisam esperar. Há ainda os instrumentos jurídicos, que não deixam de avolumar os processos, por mais simples que o caso aparente. Maria Zilda conseguia manter-se dentro dos padrões exigidos pela instância superior à qual devia satisfações. E não decepcionava.
Naquele dia, apenas um fato fez que ela ainda pensasse sobre o dia excessivo. Foi o momento em que um homem – tinha em torno dos trinta anos – dirigiu-lhe diretamente a palavra, com uma inquirição, e de modo grosseiro. Tratava-se de uma pendência com a empresa onde trabalhara. Sem esperar a vez de falar, interpelara a juíza, assim como se falasse com uma pessoa qualquer. Ela, severa, virou-se para o advogado dele, como que o repreendendo. Este cochichou uma ou duas palavras no ouvido do querelante, que de imediato suspirou e nada mais falou.
No final da tarde, ela perdeu-se proposital por algumas ruas do Centro. Onde andavam os outros que tinham cargo de destaque na sociedade? Andariam em automóveis de vidros escuros, sempre escondidos, saindo de um ambiente fechado para outro. Temiam o reconhecimento na via pública. Por que não se encontram juizes e juízas andando a esmo por aí? Qual o local que eles freqüentam? Zilda conhecia alguns restaurantes, ponto certo de magistrados, promotores e até mesmo de advogados. Também sabia daqueles que viviam trancados em suntuosos apartamentos, ou casas de condomínios fechados. Passeavam, mas não muito no Rio de Janeiro. Preferiam outros estados, onde não atuavam, ou mesmo eram partidários de que passear com tranqüilidade era possível apenas no exterior, nas metrópoles do mundo desenvolvido. Ela, porém, não pensava da mesma forma. Saía, ia a vários locais, embora não se mostrasse plena; preferia o disfarce. E tinha-os em grande número.
Maria Zilda sentia-se perfeitamente realizada com a carreira que escolhera. Havia dias, porém, em que cometia algum exagero, uma espécie de compensação para o trabalho exaustivo que o cargo lhe impunha. Uma mulher ao ser percebida com demora por um homem precisa manter a discrição, tanto mais uma juíza. Naquele mesmo dia, só que à tarde, ela deparou-se com o mesmo homem que cravara os olhos nela pela manhã. Só que agora, ela não estava na rua, mas na mesma cafeteria em que o vira dias antes. Ele a estaria seguindo? Às vezes reparava seu olhar acintoso. Maria Zilda escondia-se atrás de óculos grandes, de lentes não tão escuras, mas o suficiente nebulosas para esconder-lhe os olhos. Antes que se sobressaltasse, a garçonete sussurrou algumas palavras no ouvido dela, como que pedindo desculpas, mas o homem insistira tanto; entregou-lhe um pequeno cartão. Ela mal olhou o que estava escrito. Grande descortesia. Levantou-se, deixou algum dinheiro sobre a mesa e se foi. O cartão permaneceu sobre a toalha, quase intocado.
Dali seguiu por algumas ruelas que a levaram ao Centro Velho. A Livraria da Travessa desanuviou seus olhos turvos. Entrou. Estacou diante dos livros de literatura, todos arranjados de modo a despertar o interesse no leitor. Antes de procurar algum título, prestou atenção ao semblante das pessoas. Reparou que aqueles que estavam voltados para os livros não levantavam os olhos para os outros freqüentadores, mesmo que estivessem de frente um ao outro, ou mesmo lado a lado. Assim se sentiu mais confortável.
Entreteve-se com um livro de um escritor inglês. Lera havia muito tempo vários daqueles romances, reparou que agora os livros se apresentavam em nova tradução e de modo mais sofisticado. Mais adiante viu O país das neves, de Yasunari Kawabata, logo abaixo havia A dançarina de Izu. Lembrou que lera ambos, o último tão delicado, tratava-se da história de um jovem que num período de férias escolares viaja para as montanhas e encontra um grupo de atores. Estes vão de aldeia em aldeia apresentando uma peça de teatro. O jovem decide acompanhá-los; um primor, o conto. Passeou por outros nomes e outros títulos, deu-se com Lídia Jorge, A costa dos murmúrios, lembrou que lera outro livro da autora, mas fugia-lhe o nome.
Permaneceu entre as estantes e descobriu a de teatro. Olhou alguns títulos, reparou que vira algumas montagens; depois, dispersou-se mais adiante. Despertou-lhe o café, tão requintado, que havia no lado direito da loja. Sentou em uma das mesas e aguardou que a atendessem. Queria continuar o chá que fora interrompido pelo homem inoportuno. Algumas pessoas conversavam em voz baixa enquanto tomavam café; havia aqueles que após terem comprado algum livro sentavam-se e folheavam-no enquanto aguardavam o garçom. Seria bom que ela estivesse em companhia de alguém. Mas, para uma mulher como ela, ter amigos era uma complicação a mais. Com exceção de duas mulheres e um amigo que na verdade fora empossado como analista judiciário, não se aproximava de outras pessoas. Ao saberem que ela era juíza, olhavam-na de forma diferente. Ao mesmo tempo, sabia Zilda que não poderia ser íntima de muitas pessoas. Isso lhe atrapalhava a vida. Talvez, muitos achem pedantes pessoas do porte de Maria Zilda. A garçonete trouxe o chá.
Duas jovens manuseavam livros nas estantes de filosofia. Pôde apreciar o brilho nos olhos delas ao segurarem algum exemplar de filósofos que, dali de onde ela se sentara, não conseguia distinguir. A filosofia era algo que deslumbrava certas pessoas, parecia revelar segredos de difícil decifração ao comum dos mortais. Lembrou que também vivenciara isso, mas optara pelos livros de Direito. As diversas ramificações da área jurídica e suas peculiaridades fascinaram-na mais do que qualquer outra coisa. No Direito havia mais certezas e, além disso, podia ler os livros de filosofia apenas como hobby.
Viu quando um casal trocou um beijo rápido enquanto via algum livro. Eram namorados, conversavam, olhavam as capas e aproveitaram o momento para ligeiro contato fisco. Zilda, de sua mesa, mostrou um breve sorriso. Aprovava a espontaneidade da juventude.
A noite já se estabelecera quando deixou a livraria. Caminhou novamente pelas pequenas ruas do Centro. Muitas pessoas ainda andavam também por aqueles caminhos. Todos iam em busca de transporte; voltavam para casa após mais um dia de trabalho. Maria Zilda, incógnita, acompanhava toda aquela gente. Quando chegou à Rio Branco, atravessou-a e, quase de imediato, entrou num ônibus especial, desses todo fechado e de ar-condicionado, que ia para o Leblon. Reclinou um pouco a poltrona e pôs-se a olhar as pessoas que estavam no passeio. As janelas vedadas do veículo faziam o lado externo da vida sem som. Ouviam-se apenas os ruídos internos e alguns murmúrios emitidos pelos poucos passageiros que conversavam.
A maioria das mulheres ainda opta pelo casamento, ou mesmo que não se casem, por algum tipo de relacionamento. Ela, no entanto, optara pelo estudo e pela profissão. Às vezes, debruçava-se sobre um livro na maior parte das horas vagas. Por outro lado, em determinadas noites, sentia que precisava sair, aproveitar a vida de uma outra maneira. Talvez estivesse sozinha durante a maior parte do tempo porque não soubesse dosar suas predileções. Na verdade, não gostava de dizer que era uma mulher só. Sentia-se bem consigo mesma. Tentara estabelecer relacionamentos afetivos, mas não conseguira mantê-los. Os homens eram controladores, e ela não se adaptava a isso. Não era do seu feitio dar satisfações, dizer aonde ia ou o que faria; ou mesmo ter de atender telefonemas durante o dia para dizer como passava. Quando os homens percebiam onde pisavam, pouco a pouco diminuíam os convites, até que desapareciam. A partir daí, passou a sair só, mesmo à noite quando ia a um espetáculo ou mesmo quando decidia jantar em um ou outro restaurante refinado. Apareciam-lhe pretendentes? Sim. Ela era uma mulher bonita, ainda jovial, apesar dos quarenta e poucos anos. Passou a flertar através de olhares, de movimentos sutis. Dissimulava, mas gostava de saber que estava sendo admirada. Até que uma idéia estimulou-lhe o dia-a-dia. Alguns dias atrás tivera uma idéia que tal conhecer alguém e nem precisar saber-lhe o nome? Sair com a pessoa uma vez, conversar, assistir a algum filme ou peça de teatro, depois jantar e, quando lhe apetecesse, ter um contato mais íntimo? Mas como seria essa pessoa? Quem seria ela? Pensou em diversas artimanhas para atingir esse objetivo. Talvez encontros casuais com alguém que ela achasse interessante, fazendo chegar a essa pessoa um bilhete com uma intenção. Para aquele que sabe ler, não são necessárias demasiadas metáforas; e as palavras diretas também não são delicadas. Uma vez que as línguas permitem volteios e graças, aproveitaria. Sabia que, ao andar muito sozinha, não seria difícil receber convites. Mesmo naquele momento, em que não predominavam abordagens diretas, os homens conheciam meios de fazer uma mulher receber um cartão, ou um número. Caso ela facilitasse, ao menos com um olhar, ainda que distraído, tudo estaria resolvido. Lembrou do cartão que recebera na cafeteria; não devia tê-lo recusado. Mas precisava ter cuidado, tinha de se mostrar um tanto difícil. Também não desejava ser reconhecida.
Ao chegar em casa decidiu que, àquela noite, sairia. Iria a algum lugar com a finalidade de se divertir. Tomou um copo de suco, sentou-se na ampla cozinha e ficou a reparar a arrumação perfeita que a empregada fizera durante o dia. Tudo era bonito e estava no devido lugar. Arranjara a empregada perfeita, tinha um senso de arrumação muito parecido ao seu. Achou que bastava o pensamento de como queria as coisas dentro de casa para que a mulher atendesse de pronto.
Acendeu um abajur lateral e uma luminária que corria de modo longitudinal o contorno do teto. Não demorou a afundar-se numa das poltronas da sala. Vislumbrou na parede em frente dois quadros que comprara na última visita a uma famosa galeria de arte, em Ipanema. Apresentavam pintura figurativa, mas era preciso um pouco de imaginação para visualizar o que o artista pretendera pintar. Numa pequena mesa lateral, havia dois livros. Pegou-o nas mãos e folheou-o sem que prestasse atenção ao conteúdo. Algumas palavras foram retidas por sua mente. Uma mulher em férias na Bahia conhecera um diplomata, os dois empreendiam uma viagem pelo mundo. Depois deixou o livro no mesmo lugar e pôs-se a imaginar. O outro era uma obra que comentava de modo minucioso o código processual. Folheou-o também; procurou as passagens que tanto a apaixonavam; as minúcias das leis, os trâmites que precisavam seguir. Não era à toa que decidira ser juíza, pois tinha verdadeira paixão por aqueles longos parágrafos, aquelas letras pequeninas. Era como uma investigadora que desvenda um mundo novo, quase uma revelação; e apenas ela tinha aquele conhecimento, poucos iam tão a fundo no estudo de todos os trâmites jurídicos. Após algum tempo, repousou o livro, cuidadosa, no mesmo local de onde o retirara. Voltou-se para os próprios pensamentos. Sairia à noite. Mas disfarçada. A idéia capturou-a de maneira voluptuosa. Fazia isso vez ou outra. Vivia alguns disfarces. Era interessante rodar pela cidade fingindo ser outra pessoa. Arranjava até novos nomes. Além de ser uma juíza importante, sabia que tinha talento para também ser uma atriz. Na verdade, usava máscaras. Sentia-se seduzida, começou a imaginar como faria naquela noite.
O telefone, de repente, soou. Olhou o número de origem e não atendeu. Sabia de quem se tratava, um outro magistrado. Teria alguma dúvida e ligava para ela. Era mais antiga do que ele na função e conhecia certos procedimentos de que ele sempre necessitava. O aparelho continuou no seu lamento. Quando o silêncio voltou a predominar, reparou que o céu estava escuro lá fora, voltou então à questão. Um disfarce, sim, era tudo de que precisava.
Entrou em um táxi às dez e quarenta e cinco. Usava uma peruca de cabelos pretos compridos, óculos de lentes redondas um tanto azuladas, que não deixavam entrever, de todo, os olhos. Vestia um vestido que lhe cobria os joelhos. Mas o tecido era fino e deixava o corpo com curvas sinuosas. O decote era um tanto ousado e permitia que se apreciasse parte dos seios volumosos, além da pele brilhosa. Ascendia aroma de sutilíssimo perfume.
Naquela noite, o Esch Bar apresentava um trio de músicos ingleses. Não havia mesa disponível. Ela não fizera reserva e não desejava ter fornecido um nome falso para tal. Um senhor gordo, porém, ao reparar que a mulher ficara embaraçada porque não fora atendida na solicitação de uma mesa, convidou-a para a sua. Foi o maître que transmitiu o convite a Maria Zilda.
“Muito prazer, Emília”, mentiu Zilda.
“Nelson, encantado”, disse o homem.
“Agradeço a gentileza, acabo de chegar ao Brasil e perdi o costume de ter de reservar um lugar em restaurantes.”
“Oh, que grata surpresa, além de estar encantado, tenho ao meu lado alguém que frequenta as casas mais famosas da velha Europa?”
“Mais ou menos.”
“Qual sua profissão?”
Maria Zilda não se surpreendeu. Estava acostumada a essas perguntas indiscretas. Os homens só pensavam em profissões, negócios, dinheiro. Não tinham discrição suficiente para reparar que alguém poderia ser uma pessoa rica e não precisar trabalhar.
“Atualmente, não preciso trabalhar.”
Como o bar costumava ser frequentado por gente da elite, não temeu proferir a última frase. O homem, porém, olhou para ela com mais interesse.
O som dos músicos que iniciavam a apresentação veio do fundo da sala e fez que as pessoas se voltassem para o pequeno palco. Todos aplaudiram. Durante algum tempo, as pessoas interromperam a conversa e prestaram atenção à exibição dos artistas. Quando iam pela segunda música, Nelson chegou ao ouvido de sua recém-conhecida e sussurrou-lhe demonstrando entusiasmo:
“Eles são bons, não acha?”
Zilda, para ele Emília”, assentiu com a cabeça e sorriu.
Devido à proximidade, pode sorver o perfume da mulher; não era um perfume comum, tinha um componente especial que por segundos assaltou-lhe os sentidos, imergindo-o numa espécie de embriaguez. Desejou possuir aquela mulher naquela mesma noite. Sabia que, no entanto, não seria fácil. Fez que o garçom se aproximasse e pediu uma garrafa de vinho, do mais fino e famoso. Sabia que aquele tipo de mulher tinha um preço alto. Não poderia começar por qualquer bebida.
Os músicos ainda tocavam, aplaudidos vez ou outra por algum grupo mais exaltado, quando o casal tilintou as duas taças e Emília levou aos lábios a sua. Seus olhos brilharam ao mesmo tempo em que a bebida rubra espelhou as luzes frágeis da casa. Nelson percebeu e viu nessa conjunção, além de uma exuberante beleza, uma certa aprovação para suas intenções.
Saíram do bar às duas e trinta da madrugada. Beberam um pouco mais do que de costume, mas tinham-se sob domínio. Emília parecia estar completamente sóbria, apesar do vinho. Nelson ia mais alegre. Pensou em tomá-la pelos braços, mas a achou séria demais. Temia um revés.
“Será que posso levá-la em casa?”
“No seu lugar, eu não me arriscaria?”
Ele pareceu se surpreender e quis saber por quê.
“Moro na Barra, é muito longe daqui. Pego um táxi.”
“Oh, não, absolutamente, para mim nada é longe para estar um pouco mais em sua companhia.”
“Agradeço. Peço que não ínsita. Prefiro ir de táxi.”
Nelson ficou sem saber o que dizer. Tudo estava indo tão bem, estava tão encantado pela sorte que tivera naquela noite, que não imaginava perder a mulher. Mas não quis insistir, seria deselegante e, ao mesmo tempo, não queria humilhar-se.
“Se é assim que você deseja, ajudo a tomar seu táxi.”
Aguardaram. Depois que Emília embarcou, descobriu que não pedira e ela não lhe dera o número do telefone. Bom, essas coisas acontecem. Ao menos tivera ao seu lado durante a noite uma mulher encantadora.
Ao chegar em casa, Zilda estava afogueada. Tirou toda a roupa e deitou-se. Pôs-se a imaginar a impressão que causara no homem e no desejo que despertara nele. Não desejava propriamente a pessoa, mas sentia intenso prazer ao perceber que ocuparia durante algum tempo o pensamento de alguém.