quinta-feira, abril 30, 2009

De olhos vendados: capítulo 8 - Final

Zilda retomou as saídas com Roberto. Ora era ela mesma, ora pregava uma peça e aparecia de surpresa, como se fosse outra pessoa. Algumas vezes ele realmente ficava na dúvida de quem se tratava. Jamais conseguiu entender como uma jovem de dezessete anos, vestida como quem vai para um ensaio de balé, pudesse ser aquela juíza, vinte anos mais velha do que ele.
Roberto tomava um suco num quiosque, na Vieira Souto. De repente se viu envolvido com alguém de menos idade do que ele, o cabelo amarrado com duas tranças. Ela perguntou:
“Moço, paga um suco pra mim?”
“Mas você é tão bonita, bem tratada, como pode querer que eu pague um suco?”
“Moço, por favor, as aparências enganam.”
“Onde você pratica balé?”
A jovem disse o nome de uma famosa academia de dança, situada no mesmo bairro.
“Como você tem dinheiro para pagar a mensalidade de uma academia caríssima e não tem para comprar um suco?”
“É que eu achei você bonitinho.”
“Bonitinho pra pagar um suco?”
“Bonitinho pra namorar”, falou e caiu na gargalhada.
Entendeu o que ela queria.
A moça o pegou pelo pescoço e beijou-o no rosto, depois procurou a boca do escritor.
Ele aceitou o afago, mas viu-se embaraçado num beijo escandaloso às três da tarde, em plena rua.
Ficou com a moça durante algumas horas. Ela pediu que a levasse à casa dele. Roberto sentiu algum temor.
“Qual a sua idade?”
“Não se faz essa pergunta para as mulheres.”
“Levar você ao meu apartamento pode me trazer problemas.”
“Você é casado?”
“Não, não se trata disso; é que você é muito jovem.”
“Você não gosta de garota nova?”
“Gosto, mas você parece que é menor de idade.”
“Acho que vou ter de mostrar a minha identidade.”
Tirou de dentro das roupas uma carteira. Tinha dezessete anos e se chamava Daniele.
“Dezessete anos ainda não é maior de idade.”
“Como não, se posso votar pra presidente?”
Roberto riu da argumentação; acabou ficando com a menina.
Ela fez apenas duas exigências quando já estavam no apartamento do rapaz: uma camisinha e que o quarto estivesse muito escuro.

No dia seguinte, ao encontrar Maria Zilda, ele não acreditou quando ela disse que representara para ele uma personagem chamada Daniele. Apesar de ter contado todos os pormenores, ele não se convenceu.
“Você contratou alguém para me seduzir”, disse.
“Seduzir você?”
“Isso, seduzir.”
Maria Zilda riu alto.
“Não pode ser verdade, não vou acreditar de modo algum nisso, você vai acabar me enlouquecendo.”
“Você me traiu”, disse Zilda.
“Como, traí?”
“Me traiu com essa Daniele.”
“Mas você não está dizendo que essa moça era você?”
“Mesmo que fosse, você me traiu, saiu com outra pessoa; sabia que você não abriria mão de uma mulher mais jovem.”
“Mas foi você que instigou, que criou essa situação. Ninguém ficaria imune a uma moça daquele tipo.”
“Você me traiu”, foi a sentença de Zilda.

Ficaram sem se falar dali em diante. Ela não mais telefonou. Roberto passou a enfrentar um terrível dilema. Toda mulher que conhecia, temia que fosse Maria Zilda.
Depois de um ano de análise psicanalítica, porém, passou a não se preocupar mais com isso. Se fosse Zilda, azar o dela. Um dia contratou duas mulheres para fazer amor com ele. Foi assim que resolveu a questão. Se Zilda estivesse ali, seria apenas uma.

Em setembro, lançou seu terceiro livro. Escritor já famoso, festejado, premiado nos dois livros anteriores. A intelectualidade carioca compareceu em peso numa quarta à noite, na livraria Argumento. Atendeu a leitores, a fãs e a jornalistas. Autografou muitos exemplares.
No final, quando se preparava para ir embora, uma anciã entrou na livraria.
“Sei que já passou da hora, mas será que o senhor Roberto ainda se encontra?”
“Alguém apontou para onde ele estava.”
A velha foi até ele.
“Poderia autografar esses dois exemplares?”
“Sim, qual o seu nome?”
“Maria Zilda.”
Roberto a olhou incrédulo. Autografou rápido e entregou os exemplares.
“A juíza que é sua personagem faz parte de algum tribunal inferior?”, quis saber a mulher.
“Tribunal inferior? Que tribunal inferior?”
“Oh, o senhor nunca leu O processo, de Franz Kafka?”
“Oh, Kafka, Kafka...”, repetiu mecanicamente.
A senhora guardou os exemplares na bolsa, agradeceu e se foi. Se alguém caminhasse a seu lado, ainda poderia ter ouvido uma última frase, num tom quase melancólico:
“Oh, esses jovens escritores...”

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