sábado, maio 09, 2009

Crêperie

A entrada do prédio estava deserta à meia-noite e meia. Clara saltou do carro do namorado, deu alguns passos e ouviu o ruído que destravou a porta de vidro. Olhou para a guarita do porteiro noturno e agradeceu com um leve movimento de cabeça. Entrou e em três passos alcançou o elevador.

Ao atravessar a porta de casa, no sexto andar, acendeu a luz da sala, largou a bolsa sobre a mesa e caminhou até a varanda.

A noite lá fora era silenciosa; a cidade, adormecida, tinha suas luzes habituais e o ar estava úmido. Sentou numa das poltronas da sala, recostou a cabeça, deslizou largando-se à vontade, fechou os olhos e recordou o recente encontro com o namorado.

Ficara junto dele desde as sete da noite. Passearam de automóvel pela cidade, pensaram onde iriam parar para comer alguma coisa; decidiram por uma creperia numa das quadras finais da Asa Norte.

O lugar era convidativo e as pessoas elegantes. Havia grupo de rapazes e moças, pares de namorados. Em outras mesas, marido e mulher; adiante dois casais estavam acompanhados por crianças pequenas. Os garçons eram jovens e atenciosos; a decoração atraente; os crepes, uma delícia,

Clara apreciou o namorado enquanto ele cortava alguns pedaços. Via-o como pessoa de poucas palavras. Ele a amava, ela tinha certeza, mas não sabia transformar o sentimento em palavras.

Isso, segundo ela, era problema de muitos homens, porque, principalmente, não sabem expressar-se. E o fato não dizia respeito apenas ao amor, acontecia também em relação a outras coisas. Apenas no trabalho eles, muitas vezes, destacavam-se, sobretudo quando lidavam com cálculos ou com idéias que poderiam gerar muito dinheiro.

Numa das últimas mesas, junto à parte externa do pequeno restaurante, reparou uma jovem, não deveria ter mais do que dezesseis anos. Estava largada no ombro do namorado. Enquanto esperavam os pedidos, beijavam-se como se nada mais houvesse no mundo.

Clara pensou na espontaneidade dos jovens. Para eles não importa o que há ao redor, suas existências lhes bastam e nada melhor e maior do que o prazer proporcionado pelos sentidos; não suportariam talvez uma existência que proporcionava a ela muito prazer: estar sozinha.

Por que não trouxera o namorado para casa? Não sabia a resposta. Mas achava que estragaria tudo. Gostava de entrar em casa de madrugada, com o apartamento às escuras, observar a amplidão de um dos lados da cidade, os outros edifícios; gostava de ver os espaços vazios, esquecer que existiam pessoas. Tudo era tão silencioso, que não conseguia imaginar os outros prédios abrigando homens, mulheres e crianças; até mesmo imaginá-los dormindo era difícil.

Foi à cozinha e tomou um copo d’água. Pouco a pouco sentiu necessidade de deitar-se. Desfez-se das roupas por etapa; lavou as mãos; deixou-se escorregar nua na cama. Suas mãos tocaram o ventre; a esquerda deslizou até o seio direito e assim permaneceu enquanto seus olhos puseram-se semicerrados. Mas ainda não dormia.

Lembrou o dia em que o namorado tivera-a nos braços pela primeira vez.

“Calma”, dissera ela, “não somos mais crianças, você não descobrirá por baixo de minhas saias nada do que já não conhece.” E deixou que ele lhe percorresse o corpo, vez ou outra mostrou-se um tanto sôfrego.

Na cama, gostava de namorar a si mesma, sentia prazer com o calor da própria temperatura.

Não traria o namorado para casa. Lógico que ele já estivera ali. Já haviam passado várias noites juntos no apartamento; viram filmes; ouviram música. Mas ela não queria dormir ao lado dele todos os dias, esbarrar-lhe o corpo fora da hora do amor, acordar na manhã seguinte pensando nas obrigações e esquecendo o prazer que tiveram durante a noite.

Era preferível que ele partisse depois do amor. Sempre que alguém parte há a possibilidade de um reencontro. E esse é mais prazeroso do que estar continuamente lado a lado.

Quando se foram da creperia, o casal de adolescentes ainda se mantinha abraçado, os beijos continuavam prolongados. Os dois abrigavam-se sob a discrição das outras pessoas. Teria a menina o desejo de casar com ele? É normal entre os jovens esse desejo, é normal que queiram eternizar o momento. Ainda não viveram, ainda não experimentaram a liberdade, não descobriram outros aspectos inerentes ao amor; só deram conta até ali do corpo a corpo recíproco.

O domingo ia ficando para trás, distanciava-se. O namorado era uma mancha que se desfazia. Só os prédios permaneciam firmes, construções sólidas, duradouras, mas não pareciam ter habitantes. As luzes noturnas não eram suficientes para tornar o céu mais claro; na verdade, acentuavam-lhe a escuridão. As lâmpadas tornavam alguns lugares soturnos, plenos de mistérios. As sombras em uma rua, o movimento lento dos galhos maiores de uma árvore sob um ar mais agitado, a imagem de um automóvel estacionado, tudo dava a impressão de um imenso vazio; não pareciam pertencer ao mundo dos homens.

Clara muitas vezes teve vontade de percorrer de madrugada os lugares desertos, experimentar-lhes a solidão. Como no sonho em que ia envolta numa capa larga, uma capa que lhe roçava o corpo, uma capa úmida das gotículas de sereno. Teve vontade de esgueirar-se junto a uma árvore, pendurá-la num dos galhos baixos e ainda andar alguns minutos ante as portas cerradas do setor comercial, sob o brilho frágil de uma lâmpada de mercúrio, o corpo a refletir o brilho baço da noite, a pele a não lhe negar o calor, reagindo ao ligeiro frescor do fim de primavera. Um amante a despedir-se.

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