quarta-feira, abril 22, 2009

De olhos vendados: capítulo 5

Errou de modo escandaloso. Foi ela quem ligou. E marcou para saírem numa quarta-feira à noite.
Esperou-a durante quarenta e cinco minutos numa adega no Largo do Machado. O lugar não era mal, mas estava mais para botequim do que para um restaurante em que teria um encontro com uma juíza. Achava que magistrados gostassem apenas de lugares requintados. Ali não havia quase requinte, apesar de lhe terem dito que o chope era digno. Quando já não podia esperar e pensava que ela não apareceria, pediu a soma do pouco que consumira. Ao preparar-se para sair, deu-se com uma mulher jovem; deveria ter uns vinte três anos, ou até menos.
“Moço, o senhor pode me dar um pouco de atenção.”
Olhou-a da cabeça aos pés. Ela usava mini-saia e as pernas eram brancas e compridas. Ele assustou-se. Apesar de ser jovem e de atrair mulheres também jovens, achara a figura feminina um tanto vulgar. Não estava acostumado a conversar com mulheres semelhantes a bonecas de luxo.
“Moço, você não me respondeu.”
“Ah, é que eu esperava uma pessoa e...”
“E ela não veio?... Não faz mal, estou aqui, quero diverti-lo.”
“Divertir-me? Mas como?”
“Existem muitas maneiras”, disse dengosa.
Roberto a olhou de modo penetrante. Tinha a maquiagem forte, estava um pouco borrada e seus cílios eram longos. Não deixou de demonstrar desaprovação pelo estilo da jovem.
“Mas estamos de pé, não vamos nos sentar?”, ela emitiu uma voz fraquinha e de tom agudo.
“É que eu já estava de saída...”
“Mas não vai esperar pela pessoa que você mencionou?”
Roberto levantou um dois braços como se não soubesse o que dizer.
“As mulheres se atrasam, são pessoas diferentes”, sua voz quase de menina pareceu incomodar o escritor.
Ele queria dizer que já esperara demais, que na certa ela não viria.
“Você precisa de dinheiro, ou mesmo quer que eu pague alguma coisa para você comer?”
“Pagar?”, fez cara de choro. “Assim você me ofende; não fale para ninguém, mas sou uma mulher rica.”
“Rica?” Roberto repetiu a palavra, riu de modo debochado e chegou a levantar a cabeça mostrando-se surpreso.
“Surpreso você vai ficar quando souber quem eu sou.”
“Quem você é?”
“Uma acrobata.”

Maria Zilda ficou sem ligar durante duas semanas e também não atendeu telefonema algum. Quando Roberto conseguiu falar-lhe, não se desculpou nem deu satisfação. Agiu como se nada houvesse acontecido.
Saíram mais uma vez. Escolheram um restaurante na orla, em Copacabana. Conversaram.
“Você representa bem”, disse Roberto, “poderia ser uma atriz; ou melhor, é uma atriz.
“Você precisa saber que a representação na verdade pode não ser uma representação, pode ser a verdade.”
“Como assim?”
“O que faz você crer que eu represento?”
“Durante o dia você não representa, você é uma juíza...”
“Quem disse que a função de juíza não é uma representação?, e pode ser tanto maior do que a de uma atriz de verdade. A atriz representa somente no horário da peça. No meu caso, posso representar de modo mais autêntico. Posso estar representando o tempo todo, em nenhum momento eu seria eu, ou melhor, não existiria esse eu exclusivo, mas sim todos ao mesmo tempo, ou se não todos, ao menos um de cada vez.”
“E quem seria você, afinal?”
“Aí é que está a questão. Eu poderia ser todas e, ao mesmo tempo, nenhuma.”
“Mas isso seria enlouquecedor...”
“Não, não seria, pode-se dizer que isso seja a representação total.”
“Mas quem seria você afinal, como eu lhe chamaria?”
“Por que você se desespera tanto com isso? Você precisa de que eu seja uma, a verdadeira? Você precisa de uma certeza, precisa de alguém que o ancore a um terreno seguro?”
“Isso na verdade é ameaçador!”, sua voz mostrava desespero.
“Ouça, é você o romancista. Você poderia pensar sobre essas coisas melhor do que eu. Sou apenas uma mulher que anda por aí, cada dia sendo uma diferente. E pelo fato de eu ter um nome, um cargo ou uma profissão, não significa que essa representação que você diz não ser representação seja mais verdadeira do que as outras.”
“Mas você tem documentos...”
“Oh, documentos...”
“Você tem uma carteira de identidade, um CPF...”
“Oh, um CPF! O CPF e a carteira de identidade nos salvam da esquizofrenia; os documentos que instauram a legalidade são um modo de dar sentido a essa loucura toda! Que escritor é você? O que você escreve nada vale? Também não é documento? Não criam uma outra legalidade, ou mesmo um outro mundo?”
“Eu já pensei nisso e pensei muito. Os documentos além de serem um meio de dar sentido dão poder às autoridades, não permitem a loucura, afastam-na para bem longe, encerram-na em hospícios ou prisões. A loucura é uma forma de desorganização, ou organização da desorganização, mas cada qual organizando-a a seu jeito, logo não seria suportável; seria um meio de fala por metáforas e não é possível falar por metáforas o tempo todo.”
“E a legalidade não é uma metáfora?”
“Talvez, mas sob a toga do poder, tal qual a sua; se você não a veste, está ameaçando a vida social”, disse Roberto com segurança. “Você não pode abandonar um julgamento para sair por aí fantasiada de drag queen!” Ele mostrara certa violência nas palavras, dava por vencida a discussão.
“Sei que tenho limites, mas uma mulher como eu tem prerrogativas.”
“Os magistrados sempre têm prerrogativas.”
“Não falo nesse sentido; sou uma mulher rica, tenho minhas vantagens.”
“A representação estaria mais próxima da riqueza, então?”
“De certa forma, sim. É preciso que exista dinheiro para que a representação seja possível, e que seja levada a sério, tão a sério que soaria como uma verdade.”
“E o talento? Onde entra nessa história?”
“Dinheiro e talento. E, veja, você é um escritor, seria difícil sê-lo caso fosse uma pessoa extremamente pobre.”
Os dois silenciaram por algum tempo. Roberto olhou para as outras pessoas que se espalhavam pela parte da frente do restaurante. O mar estava longe, mas ouvia-se a arrebentação. Depois seus olhos encontraram os de Zilda. Ela sorriu.
“Deixemos essas bobagens”, ela disse e pegou-lhe uma das mãos. “Vamos namorar”, sorriu mais uma vez, “talvez isso faça mais sentido.”
“Hoje vou levar você para minha casa”, disse Roberto. “Quero ver a nudez de uma juíza.”
“Não vai ver nada diferente do que há nas outras mulheres.”
“Nunca namorei uma juíza.”
“Será que é a juíza que você vai namorar?”
Ambos acabaram sorrindo.

Acostumaram-se àquele jogo. Passaram a encontrar-se uma ou mesmo duas vezes na semana. Às vezes voltavam ao assunto da representação. Nada concluíam em definitivo, mas ficava o sabor amargo de não ser possível uma representação que excluísse os papéis sociais que os dois ocupavam; ele, de escritor; ela, de juíza. Às vezes desejavam ir a conseqüências extremas, mas percebiam que os papéis vividos por amabs durante algumas horas do dia eram os fios que os ligavam à realidade e proporcionavam a lucidez de que precisavam para não serem chamados de loucos. Ainda assim encontravam-se e gostavam de representar. Maria Zilda, principalmente, era a mais extravagante. Roberto preferia adotar a representação apenas no mundo romanesco.

Dois sábados depois, quando foi ao encontro de Zilda, deparou-se com uma mulher de meia idade que dizia ser uma turista viciada em jogo e que estava perdida na cidade. Falava português, mas seu sotaque era estranho. Não podia dizer que era Maria Zilda disfarçada, pois a estatura da senhora era menor, um tanto titubeante no andar e tinha olheiras profundas.
Ele tentou saber de onde ela vinha.
“De que isso importa?”, foi a resposta que a mulher deu. Ele demorou para entender.
De repente começou a pensar o porquê de estar ali ao lado de uma estranha, num lugar em que marcara o encontro com aquela de quem gostava. Fora a mulher que lhe fizera sinal, lembrava. Mas, em seguida, começou a pensar que poderia estar sofrendo algum tipo de golpe.
“A senhora me desculpe, mas não posso ficar a seu lado.”
“Não espera alguém?”
“Esperava, mas acho que a pessoa desistiu. Trata-se de uma mulher difícil e intempestiva.”
“O que vem a ser intempestiva?”, a mulher soletrou os fonemas, teve dificuldade em pronunciar a palavra.
“É uma palavra que vem de tempestade.”
“Oh, tempestade?”
“Isso mesmo, fenômenos da natureza, às vezes devastadores.”
“Como um tufão?”, ela arremessou o vocábulo com um som final quase terminado em "om".
“Exato, a senhora entendeu.”
Roberto achou melhor partir. Foi para casa e lá se deitou. Achou que tinha de deixar Zilda. Seria a loucura total permanecer ao lado dela. O telefone tocou, mas ele não atendeu. Sentou-se à mesa, encontrou algumas folhas e pôs-se a escrever. As palavras seguidas organizavam-lhe o pensamento. Não se tratava de nenhuma frase com sentido completo, eram palavras soltas, que começavam com as mesmas letras; primeiro, a mesma consoante e a mesma vogal, depois criava uma série delas que era puxada pela primeira palavra. Quando o encadeamento se dava por esgotado, partia para outra consoante e outra vogal, dali continuava. Enumerou várias colunas que, entre si, levavam apenas a objetos isolados. No final tentou uma série de sons que já não tinham significado algum; pouco a pouco perdeu-se num universo de ecos sem sentido. Adentrava um mundo apenas de sons imaginários; vez ou outra parava e tentava pronunciar fonemas esparsos, até que resolveu escrever uma frase. “Uma mulher nua bate à minha porta”, era uma fantasia, mas não deixava de ter sentido completo. Lembrou que certa vez escrevera um conto em que se dava a cena, ficou a imaginar a história e pensou de novo que ela poderia acontecer-lhe; e caso acontecesse, qual seria sua reação. O telefone tocou. Foi atender. Era Zilda.
Depois de alguns segundos em silêncio, ouviu que ela perguntava quem era. Continuou sem responder. Bateu o telefone. Mais alguns segundos e nova ligação. Era ela de novo. Escutou-lhe a voz, a respiração pesada. Desligou mais uma vez. Foi até o bar, tomou nas mãos uma garrafa de uísque, encheu meio copo, atirou a bebida goela abaixo, entrou no quarto, atirou-se na cama. Tudo estava escuro. Dormiu em poucos minutos.

Nos dias que se seguiram não mais atendeu o telefone. Sabia que ela o procurava, mas tinha medo de encontrá-la; desenvolveu uma intensa resistência a ela. Para esquecê-la, saía a esmo pela cidade, entrava em bibliotecas, pegava livros de filosofia, história, algum romance. Esquecia-a e também esquecia a conversa que tiveram. A questão da representação doeu-lhe fundo; tratava-se de um enigma, e ela queria vivê-lo ao máximo, aquilo para ele não era possível, precisava de lucidez, precisava ter uma identidade. Era um romancista, construía mundos, estabelecia ordens, mas essas ordens não podiam ser mutantes como queria a mulher, tinham que ter alguma estabilidade. Tinha consciência de que a literatura, mesmo que utilizando a metáfora, estabelecia uma ordem, uma ordem tão conservadora como a do mundo em que se vivia, portanto o que Zilda queria extrapolava todos os limites da razão. Certa vez ela o alertara que se a literatura não suportasse tal experimento, não teria capacidade alguma de resistência ou de contra-ataque. A literatura tornava-se, sob esse ponto de vista, mais um instrumento da ideologia, mesmo que se apresentasse como contra-ideológica. Lembrava que era como querer procurar uma nova nota musical, um som inexistente nas escalas da voz e dos instrumentos. O que queria aquela mulher? Queria enlouquecê-lo; era o que ele achava.
Num dos dias seguintes, a campainha soou enquanto lia um romance. Esquecera a mulher já fazia algumas semanas. Interrompeu a leitura e foi até a porta. Estranhou que ninguém ligara da portaria. Como é que a pessoa passara sem identificar-se? Poderia ser então alguém do próprio prédio. Mas não conhecia ninguém ali, nunca emitira mais do que um ligeiro cumprimento. As pessoas nem sabiam o que ele fazia, e muito menos que era um escritor com um futuro promissor. Foi até a porta e olhou no pequeno orifício que apresentava o lado externo. Mas estava escuro, não conseguiu ver coisa alguma. Teria imaginado o som? Quando analisava tal alternativa, escutou dois dedos que lhe batiam à madeira da porta. Olhou mais uma vez.
“Quem é? Diga quem está aí?”, a voz dele soou insegura, tentava alcançar a pessoa lá fora. De repente percebeu um papel que era enfiado por debaixo da porta. Tomou-o nas mãos. Leu as letras trêmulas.”
“Abra, por favor, estou em apuros. Não deixe que me descubram.”
Abriu a porta com as mãos ainda hesitantes.
Era Maria Zilda nua.
Acabou por namorá-la terrivelmente durante boa parte da noite. Ela gemeu de prazer o tempo todo. Mostrou-se quase que insaciável. Quando ele quis saber onde estavam suas roupas e como conseguira subir daquele jeito, ela nada falou.

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