sábado, abril 25, 2009

De olhos vendados: capítulo 7

Enquanto Roberto esteve em Brasília, Maria Zilda saiu com um velho amigo, no Rio. Ele trabalhava como analista de judiciário, uma função importante nesse ramo do poder. Ela o conhecia de longa data, desde antes de tornar-se juíza. Marcaram encontro no bar do Sofitel.
Na noite de quinta-feira, não há show ao vivo no local. Aproveitaram para conversar e beber uísque. Poucas pessoas freqüentavam o bar; a música de fundo era baixa.
Maria Zilda vestia-se de modo elegante, um tailleur de cor clara. João Carlos, seu amigo, trajava terno, como de costume. Ele tinha a aparência de alguém em constante estado de angústia, mas quando sorria mostrava uma face jovial. A bebida fez logo que ele se soltasse. Tinha uma forte queda pelas mulheres, porém nunca tentara nada em relação à Zilda, temia perder sua amizade.
“Quer dizer que agora você tem passeado com um escritor?”
“Tenho, mas ele ainda é jovem, parece que vai lançar o terceiro livro.”
“Você já leu alguma coisa dele?”
“Sim, o primeiro livro dele é muito bom, fez sucesso entre a crítica.”
“Crítica?”, perguntou o amigo em tom de deboche.
“Isso. Os principais jornais falaram bem.”
João Carlos estava por volta dos quarenta e cinco anos, tinha a vida estabilizada financeiramente.
“E quantos anos ele tem?”, quis saber.
“Acho que trinta ou trinta e poucos, não tenho certeza.”
“E já faz tanto sucesso?”
“De certa forma, sim.”
“A imprensa quer rostos jovens e bonitos, celebridades, não está interessada no que eles escrevem.”
“Mas pelo que sei, não falaram do rosto dele, falaram do livro.”
“E não apareceu a foto no jornal?”
“Sim”, confirmou Zilda.
“Então?”
Maria Zilda olhou para o amigo, piscou os olhos, sorriu e levou à boca mais um gole de uísque.
O amigo foi quem falou:
“Sabe, já tentei ser escritor. Tenho até umas coisas escritas. Mas acabei desistindo. Acho que a minha vida organizada fez que eu perdesse o interesse pela literatura. Veja, fiz concurso, consegui um bom emprego público, ganho bem, nada me falta. Vou escrever sobre o quê? Hoje, bebo; é isso que sei fazer melhor.”
Levou o copo também aos lábios, sorveu um longo gole enquanto a amiga olhava para ele e não deixava de estampar um bonito sorriso.
João Carlos olhou para fora, pôde apreciar toda a orla marítima. Como era noite, não podia ver o mar até o horizonte. Mas a paisagem, possível de ser admirada da varanda do bar, permitia que se visse o céu escuro, a arrebentação com suas espumas claras e a iluminação noturna que ia até a beira d’água. Mais próximo de onde estavam, exibiam-se a avenida e os automóveis que transitavam àquela hora.
“Não sabia que você escrevia. Nunca tentou publicar?”
“Não, não tive ímpeto para isso; talvez nunca tenha acreditado no que escrevia. Certa vez, ganhei um concurso de contos. Mas isso já faz vinte anos.”
“Que pena; não se deve desistir dessas coisas.”
“E você? Fale-me um pouco sobre o que anda fazendo ultimamente.”
“O que uma juíza de uma vara trabalhista pode andar fazendo ultimamente?”
“Ah, não sei. Há coisas interessantes. E fora o trabalho?”
Maria Zilda olhou firme para ele, disse com convicção:
“Sou uma atriz.”
“Atriz?”, repetiu em forma de pergunta o homem e acabou por deixar escapar uma ligeira gargalhada.
“Por que as atrizes não merecem respeito?”
“Desculpe-me, claro que merecem”, tentou consertar. “Então explique. Você trabalha em que peça de teatro?”
“No momento, não atua em peça alguma. Mas sou um outro tipo de atriz.”
“Como? Então me explique.”
“Quer saber, mesmo?”
“Represento quando tenho vontade."
Ela tinha a intenção de lhe contar a verdade. Esperou que ele fizesse outra pergunta. Mas ele permaneceu durante longo tempo em silêncio.
Quando voltou a falar, foi para perguntar se ela se desejava comer alguma coisa. Zilda meneou a cabeça em negativa. Mas mesmo assim ele chamou o garçom e pediu um pequeno couvert. Queria acompanhamento para a bebida.
“Escritores, atrizes, poucos tem coragem para isso. Preferimos a bebida. Por frustração tornamo-nos alcoólicos.”
“Talvez”, não titubeou Zilda. “Mas mesmo assim a vida tem seus atrativos.”
“Oh, claro, o fato de estarmos aqui, de termos dinheiro para freqüentar um lugar requintado como esse, de podermos viajar nas férias, conhecer outros países, ver monumentos, museus e tudo mais são grande atrativos. Porém, ao ver um escritor, ao constatar que faz sucesso, ao me deparar com um deles, que geralmente são mais novos do que eu, sinto uma intensa frustração, ou mesmo inveja. Não sei ao certo a definição.”
“Eu não sinto inveja das atrizes. Represento melhor. E, quando represento, ninguém percebe que está no teatro. Falo sério, viu? E só estou contando isso a você.”
“E o seu amigo escritor gosta de você?”
“Claro que gosta, mas é meio burro. Não percebeu ainda o meu teatro. Quando falei com ele sobre isso, não entendeu e quase entrou em crise.”
“Os jovens são imaturos”, afirmou João, “mesmo que escritores. Já vi gente que criou personagens fabulosos; mas quando conheci o criador, nunca pensei que tanta mediocridade pudesse levar a personagens tão geniais.”
“Mas isso não é característica só dos jovens, muitos escritores de idade avançada também aparentam ser pessoas medíocres.”
“Acho que quando se é jovem, tanto pior.”
“Esse meu amigo alterna momentos de lucidez com momentos de extrema ingenuidade.”

Por que a vida vivida no dia-a-dia não satisfaz as pessoas? Por quê, para muitas delas, são necessárias ações extremas, que poderiam colocá-las em perigo?
Certa vez conversava com uma jovem que a procurara para uma questão judicial. Viera por intermédio de uma outra juíza que anos antes trabalhara com Maria Zilda. Conversaram sobre amenidades antes de entrar na questão que era o motivo da visita. A jovem tocou num assunto referente a um relacionamento conturbado que ainda vivia. De repente, falou:
“Conheci o rapaz numa boate, mas não saímos naquele dia.”
Então foi a vez de Zilda:
“Você sai com um rapaz no mesmo dia em que o conhece?”
“Saio apenas para conversar, mas tenho amigas que saem no mesmo ida, vão direto para o hotel, ou para algum lugar onde seja possível transar.”
“É mesmo?”
“Sim; tenho amigas que não pensam duas vezes.”
“E elas não têm medo?”
“Não sei”, continuou a moça, “acho que não. Eu tenho medo. Se não conheço o homem, não vou pra cama com ele logo na primeira vez. Às vezes demoro muito a aceitar a relação sexual. Então eles vão embora à procura de outra.”
“Mas você parece que conheceu alguém, se relacionou, e depois saiu muito prejudicada, certo?”
“Certo.”
“Então? Você não achava que o conhecia?”
“Conhecia-o, sim. Fui prejudicada, mas não trepei com ele na primeira noite em que o vi. Creio que caso o tivesse feito, não aconteceria nada demais. Mas não é sobre isso que falo. Acho que há homens que são malucos; são capazes de machucar, ou mesmo matar. Por isso, é melhor sair para fins sexuais com alguém já conhecido no nosso círculo de amizades; assim é mais seguro. Mas quanto a esse relacionamento que me causou e ainda me causa problemas, as razões são outras...”
“E já houve problemas com algumas de suas amigas que vão para cama com alguém logo no dia que o conhece?.”
“Acho que não, nunca perguntei. Certa vez ouvi falar de uma que foi agredida, ou coisa semelhante, mas não tenho certeza.”

Naquela mesma noite, Zilda enquanto caminhava pela Avenida Chile na direção da Rio Branco, avistou o homem que, tempos atrás, a seguira de dentro de um Citröen. Dentro do mesmo carro, ele dirigia procurando acompanhá-la. Vez ou outra algum motorista de outro automóvel tinha de reduzir a velocidade por causa dele; então buzinava, ultrapassava e escapava em velocidade, demonstrando todo descontentamento por ter sido atrapalhado. Maria Zilda continuou andando como se nada tivesse percebido. Mas o homem a seguiu. Quando ela se encontrava na cafeteria que costumava ir, lá estava ele, numa outra mesa, olhando para ela. O homem tinha nos olhos alguma alegria.
Ela lembrou da conversa que tivera com a jovem, sobre sair com alguém que se conhece no mesmo dia. A possibilidade de enfrentar aquele homem, proporcionou-lhe um certo frio na barriga. Quem sabe se o encontrasse numa outra situação, ela sendo outra pessoa?

A Barra da Tijuca havia muito não constava nos planos da juíza. Tanto mais à noite. Mas marcara com o homem. Conseguira fazer chegar a ele um pequeno bilhete, após sair da cafeteria. Agora, estava na varanda de um restaurante, na avenida Sernambetiba. A construção ficava longe do mar. Era possível ver a arrebentação, mas para ouvi-la, era necessário apurar os ouvidos. Zilda viera como ela mesma. Não tivera coragem de construir outra personagem. Sabia o risco que corria. O homem provavelmente a conhecia, sabia de seu cargo, tinha sua vida esquadrinhada. Ela achou que se arriscava. Mas já fizera o mesmo outras vezes. Já saíra com alguém no mesmo dia em que travara conhecimento? Bem, era melhor não levantar a questão no momento...
Ela chegou antes da hora. Gostava de se antecipar. Ele chegou na hora marcada. Olhava para os lados e não se surpreendeu ao vê-la.
Sorriu, estendeu a mão. Ela levantou-se e ofereceu o rosto.
O que poderia conversar com um homem daquele?
De inicio, a conversa foi travada. Muitas mesuras e considerações. Mas, depois, ele começou a falar mais abertamente.
“Pensei em procurá-la no seu gabinete, mas não tive coragem. Achei que seria uma afronta.”
Sorriu. Ia dizer que não achava nada demais, porém apenas mexeu com os olhos e procurou o copo sobre a mesa.
Ela quis saber se não se aborrecera durante o tempo todo em que esteve tentando encontrá-la.
“Algumas vezes pensei em desistir. No outro dia, logo achava que não perderia nada em fazer mais uma tentativa.”
“E a tentativa foi essa última, na cafeteria?”
“Não, saí muitas vezes no seu encalço. Mas não tive sucesso.”
Via-se que era um homem formal. Não tinha conversa. Procurara-a apenas por atração física, ou mesmo porque poderia ser interessante se relacionar com uma mulher importante.
“Você gosta de livros?”, perguntou a ele.
“Oh, gosto.”
“O que está lendo ultimamente?”
Demorou tanto para citar alguma coisa, que logo percebeu que ele não lia; ou lia apenas jornal. Pois citou um livro que despertou uma polêmica entre alguns críticos de literatura, cuja discussão aparecera no último sábado, num jornal diário.
Quis saber como funcionava a justiça.
Maria Zilda, para encurtar a conversa e não trazer os aborrecimentos do dia-a-dia para aquela hora, foi ao ponto certo quando disse:
“Simplesmente não funciona.”
Ao acabarem de jantar, Zilda embarcou no automóvel dele.
“Você sabe, um homem e uma mulher juntos, não pode haver apenas isso...”
“Isso, o quê?”, perguntou Zilda.
“Um jantar.”
Ela não quis perguntar o que poderia haver a mais. Sabia a resposta. Apenas falou baixo:
“Não nos apressemos; temos todo o tempo do mundo.”
Ele não perdeu a oportunidade:
“Será?”
A juíza disse que morava em Copacabana. Mas seu recente enamorado insistiu em permanecer um pouco mais ao lado dela. Maria Zilda jamais contou a alguém o que aconteceu naquele intervalo de três horas, desde a saída do restaurante até pisar o passeio da principal avenida do bairro onde dizia morar.
Deixou-a na entrada de um prédio bonito, na avenida Atlântica. Zilda deu adeus e ele se foi. Entrou a seguir num táxi e rumou para o Leblon.

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