terça-feira, julho 02, 2013

Se houvesse sol - 13

Joel chegou de viagem numa manhã de quinta-feira. Sei que faz tempo não falo nele. Preferi relatar minhas aventuras no Rio de Janeiro, contar sobre as pessoas que conheci e sobre a procura que empreendi para tentar encontrar Daniel. Joel veio da África do Sul. Antes esteve em Singapura. O mundo do petróleo (e de tudo que diz respeito à sua profissão) o fascina. Fui esperá-lo no aeroporto. Ao chegar beijou-me eufórico demostrando toda sua alegria por eu estar em seus braços. Não se preocupou se causaria constrangimento a outras pessoas. Disse que cenas assim são comuns em qualquer aeroporto mundo afora. Sua saudade era sincera. Ficamos abraçados durante muito tempo.

No trajeto de volta a casa, enquanto eu dirigia, não cansou de me acariciar a perna direita, mas sem malícia. Falou palavras amáveis e até recitou um poema. Disse que estava ansioso porque queria me mostrar os presentes que trazia para mim. Ficaria comigo pelo menos um mês inteiro, e que eu escolhesse um lugar para passarmos uma temporada. Estava pronto para satisfazer todos os meus desejos.

Ao entrar em nosso apartamento, mostrou-se ainda mais amável. Admirou-se com os objetos novos que eu comprara durante a sua ausência, olhou demoradamente a paisagem através da janela da sala. Viu o espelho d’água da Lagoa Rodrigo de Freitas e mencionou que não via a hora de caminhar comigo pela orla.

Abraçamo-nos e nos beijamos muitas vezes. Ele, pouco a pouco, despiu-me Depois tirou sua roupa e namoramos quase pela casa toda. Acabamos deitados um sobre o outro, em cima do tapete, na sala.

Suas malas ainda ficaram fechadas por muito tempo. Repousamos ainda abraçados, nossos olhos fechados, experimentávamos o calor de nossos corpos. Vez ou outra nossas mãos trocadas deslizavam sobre a pele do outro, procurando reconhecer cada milímetro de corpo.

Naquela tarde, fomos de poucas palavras, ouvíamos o arfar de nossos pulmões. Eu pensava, como é bom o amor. Outro pensamento que não me abandonava: todos nós somos infinitamente sós, mesmo quando estamos juntos.

À noite, saímos para jantar. Joel queria sentir o ar do Rio após tanto tempo longe. Desejava também passear pela Zona Sul, ao meu lado. Escolhemos o restaurante de um hotel, na Delfim Moreira, de onde se podia apreciar uma das vistas mais bonitas da cidade.

“Como é difícil viver longe deste lugar”, ele disse, “por mais que gostemos da nossa profissão, sempre sentimos falta de alguma coisa. Quando olhamos o Rio e as pessoas que amamos, tudo se completa.”

“Que bom você estar falando assim, espero que agora fique por perto.”

“Esse é o problema, um engenheiro de petróleo nunca é dono de sua vida.”

“Um médico seria?”, não queria alimentar a polêmica, mas acabei dando minha pincelada.

“Um médico pode abrir um consultório aqui na cidade e não precisa deixá-la, não é mesmo?”

“Fingi aceitar o argumento. Enquanto isso, o garçom nos trazia uma garrafa de vinho.”

Brindamos e saboreamos os primeiros goles. Depois Joel aproximou seu rosto e me beijou.

“Estava morrendo de saudade”, falei.

“Jura?”

“Juro. Você sabe que tenho minha vida profissional, que conheço muitas pessoas, mas você é sempre muito especial para mim.”

“Conversei muito com jornalistas na África do Sul, entre eles um escritor americano. Estão alarmados com o aumento da violência em alguns países.”

“A violência existe em qualquer lugar do mundo.”

“Mas os escritores estão preocupados com essa questão”, acrescentou.

Não quis incentivar a continuação daquele assunto. Era nossa primeira noite juntos depois de tanto tempo. Melhor seria comer, beber, namorar, apreciar a bela vista, usufruir a noite de temperatura amena. As ações das companhias de petróleo nas bolsas de valores mundo afora provocam altas e baixas que afetam a vida das pessoas, ora insuflam a riqueza em alguns lugares, ora provocam pobreza e destruição em outros. Portanto, uma observação de Joel exterior ao tecnicismo que normalmente rege o seu pensamento causou-me surpresa, mas mesmo assim eu não quis levar a conversa adiante, Não combinava com o momento.

“Aonde vamos viajar? Dentro do nosso país ou vamos para o exterior?”, perguntei.

“Você escolhe, meu amor.”

“Prefiro aqui mesmo, pertinho, três, quatro, no máximo cinco horas de automóvel. Nada de avião nem aeroportos, você deve estar cansado.”

“Ótimo’, disse ele, “também prefiro por aqui, você adivinhou o meu pensamento.”

“Há estâncias rústicas, ou lugares onde podemos curtir o frio, já que aqui no Rio quase nunca se pode vestir um casaco.”

“Ok, que tal Campos do Jordão?”, sugeriu.

“Isso, vai ser ótimo”, beijei-o depois de depositar o copo de vinho sobre a mesa.

Joel quis saber sobre o meu texto para o New Yorker.

“Acho que você não vai gostar. O texto trata de um tema que sempre me preocupou, mas não quero falar sobre ele. É melhor que você o leia.”

“Você não pode falar sobre o tema, pelo menos?”

“É sobre um episódio que testemunhei quando vivi em M. Você não está acostumado a me ver tratar de temas sociais.”

“Temas sociais?”

“Isso mesmo. Há pobreza, abandono, drogas e até homossexualismo. Mas o que predomina mesmo é a pobreza.”

“Será que eles lá no New Yorker vão publicar um texto assim? Acho que preferem matérias sobre relacionamento”, falou.

“Não sei. Mas eles que decidam. Caso não publiquem, quem sairá perdendo serão eles.”

“Você sempre escreve sobre amor e erotismo. Escreve agora sobre temas sociais e políticos?”

“Todo texto é político, mesmo o texto sobre sexo. O corpo é político”, falei, apesar de saber o lugar comum das expressões .

Som de um saxofone espalhou-se pelo ambiente. Era o começo do show de jazz que o restaurante de hotel costuma oferecer aos frequentadores uma vez na semana. Ao mesmo tempo, o garçom chegava com o prato que eu pedira, na verdade uma entrada. Havia frios, pastas, pães e queijo brie.

A música, sempre de qualidade, foi apreciada por todos os presentes. Havia alguém que tocava um violoncelo, outro mostrava-se hábil no teclado, o mais discreto era o baterista.

Joel aproveitou o momento para dar-me dois beijos. Depois pegou a taça e bebeu mais um gole de vinho.

Mais tarde, ainda no restaurante, começou a contar uma conversa que tivera com dois amigos enquanto estivera no exterior.

“Um deles disse que casamento não vale a pena, acha melhor ter uma amante. Ele acha que no casamento o amor não pode existir em alta temperatura.”

“Alta temperatura?”, fingi não entender.

“Você entende mais de metáforas do que eu. Esse meu amigo se chama Roberto. Já foi casado duas vezes. Agora não quer mais saber de casamento, diz que prefere ser amante de alguma mulher, encontrá-la uma ou duas vezes na semana.”

“Qual a idade dele?”, perguntei.

“Uns quarenta e poucos?”

“Então, ele já decidiu, depois dos quarenta é difícil alguém mudar de ideia.”

“Acho que Roberto sempre foi assim, um paquerador inveterado. Diz que é melhor sair com uma mulher somente nos momentos em que ela consegue enganar o marido. Assim ele não se aborrece, e o amor dura mais.”

“Não sei se isso é bom, não. A pessoa tem que viver em função da outra, esperar que sua amante possa encontrá-lo.”

“Eu disse isso, mas ele respondeu: – quando isso acontece, saio sozinho e arranjo logo outra, ou ao menos uma para aquela noite.”

“E você, o que acha disso?”, provoquei.

“Oh, meu amor, se eu fosse partidário dessa teoria não teria me casado com você.”

“O que ele faz se não consegue ninguém, por exemplo, numa noite?”

“Diz que não liga, bebe uma bebida ou outra, bate papo com algum amigo, ou mesmo com alguém que conheceu naquele momento; depois, quando se sente cansado, vai embora dormir. Ele é muito simpático. Caso saia sozinho, logo arranja companhia. Conhece pessoas em todos os lugares a que vai.”

“Se ele se sente feliz assim, ótimo. Há pessoas que preferem ficar sozinhas. Há outras a quem a solidão atemoriza. Esse seu amigo parece ter essa questão bem resolvida.”

“Há homens que, quando sós, procuram prostitutas.”

“Mas essas mulheres não sabem conversar, não possuem nível cultural elevado”, falei.

“Isso é verdade. Mas quem as procura também não está interessado nessas coisas.”

“Não sei, mas caso eu fosse homem, acho que não me acostumaria com alguém que não tivesse uma boa conversa. Aproveitar o corpo é bom, mas não o suficiente. A não ser que, fora dali, se tenha outra pessoa com quem se possa travar um bom diálogo.”

“Você é uma escritora. Nunca conversei com você sobre essa questão. Mas acho que os escritores criam tantos personagens porque querem ter um mundo à sua volta.”

“Não é bem assim. Muita gente vem conversar comigo sobre isso, principalmente em entrevistas. Mas ninguém pensa que todos os personagens são muito sós e o escritor partilha essa solidão. Na verdade, a solidão de cada personagem é uma extensão da solidão do autor.”

“Jura?”, Joel parecia surpreso.

“Preciso jurar?”

“Nunca pensei que fosse assim.”

“O escritor carrega consigo sua solidão e a solidão de todos os personagens. Por mais que cada personagem diga que não é só, isso não é verdade. Assim como o homem de carne e osso, eles também são profundamente sós.”

“É bom ouvir você falar essas coisas, nunca tinha pensado sobre isso.”

“É bom a gente esquecer um pouco esse assunto, e aproveitar a noite”, falei.

O pequeno grupo voltara ao palco e tocava os primeiros acordes. Joel pegou a garrafa de vinho, colocou um pouco para mim e para si próprio. Aproximei-me de seu rosto e o beijei. Ele retribuiu. Ao redor, as pessoas pareciam gostar da música. Ninguém era só, naquela hora. A solidão sobrava apenas para o escritor. Veio-me à mente Rulfo, o escritor mexicano. A vida inteira sempre a melhorar os dois únicos livros que publicara. Acabaram por se tornar clássicos. Certa vez, numa entrevista, afirmou que escrevia para esquecer a solidão.

No dia seguinte, quinta feira, como Joel disse que precisava comprar roupas, fomos ao Shopping Leblon. Andamos por todos os andares e visitamos várias lojas. Queria a minha ajuda para escolher camisas e calças para ele. Lembrei minha amiga de adolescência que viera de longe para assistir a espetáculos teatrais no Rio. Eu encontrara com ela no mesmo shopping, só que já fazia muito tempo que ela havia partido.

Após as compras, paramos numa cafeteria. Pedimos dois expressos, uma água mineral com gás e um pedaço de bolo de laranja. Pedi à garçonete dois garfos, queria dividir o bolo com Joel. Foi engraçado, eu comia um pedaço e dava outro a ele; comia mais um e colocava outro na boquinha dele. Caímos na gargalhada várias vezes sem nos importar com as pessoas que passavam. Algumas nos olhavam achando aquilo muito divertido; outras não nos davam atenção alguma.

Nos Shoppings, há empregados para tudo. Reparei, enquanto ainda tomávamos café, uma ou duas funcionárias da conservação. Elas portavam um instrumento de limpeza que era seguro por um cabo, semelhante a uma vassoura, mas na extremidade sua ponta era fina e possuía uma espécie de esfregão. Elas olhavam o chão e passavam a tal ponta onde havia riscos ou algum objeto grudado. Uma delas aproximou-se de um homem de terno – tudo levava a crer que ele fosse um dos seguranças do local –, sorriu e começou a conversar com ele. O homem correspondeu ao sorriso e à conversa. Imaginei a relação que os dois teriam, ou poderiam vir a ter.

“Viu a Rosane por aí?”, perguntou a mulher.

“Hoje, ainda não.”

“Preciso falar com ela.”

“Se ela aparecer por aqui, aviso.”

Os dois deram alguns passos na direção da livraria.

“E aquele dia, hein, foi muito bom”, falou a mulher.

“Você gostou mesmo, não?”

“Melhor do que a gente ficar se arriscando por aqui.”

“Não há risco nenhum, mulher, sei onde ficam todas as câmeras. Elas não podem registrar a gente.”

“Fala sério, Arnaldo, foi melhor o lugar pra onde tu me levou, por isso toquei no assunto.”

“Se você gostou, melhor; vamos então sempre lá.”

“Sei que você gosta de me namorar em qualquer lugar. Diz que aqui é mais gostoso porque a gente não perde tempo.”

“Isso é verdade, você sabe. Tem vários lugares pra gente se abraçar. Pode ter certeza que a câmera não pega.”

“Mas, Arnaldo, prefiro numa cama, é mais confortável.”

“Tá certo, mulher, tá certo, vamos passar a ir sempre lá.”

“Vou andando, tenho que trabalhar.”

“Até mais, Isaura.”

Olhei para Joel. Ele estava batucando sobre a mesa com um dos dedos, acho que cantarolava em silêncio.

“Vamos?”, sugeri.

“Espere uma pouco, acho que vem o pianista aí”, apontou para o piano de calda que se localizava numa parte do salão.

“Será que haverá concerto às onze e trinta da manhã?”

“Quem sabe, aqui é Ipanema, ou Leblon, nem sei mais, tudo pode acontecer.”

Ri com ele, espichei o pescoço e dei-lhe um beijo.

Joel continuou a rir. Depois, ainda chamou a garçonete para pedir mais um café.

“Você não sabe como essas coisas de relacionamento amoroso podem ser engraçadas”, falou, “há uma história interessante contada por um amigo quando esteve num desses países asiáticos, não sei se na China, Índia, ou mesmo na Coreia, pode até ter acontecido em Singapura. Mas o que faz rir é o conteúdo da história. É sobre uma mulher que ficou verde.”

“Deve ser mentira, isso não é possível”, atalhei.

“Não discuto a veracidade, mas que é divertido não resta dúvida.”

“Então, conta, vai”, incentivei.

“Aconteceu com uma mulher ocidental. Era uma prostituta. Sabe como são as prostitutas em países asiáticos, não? Você escreve boas histórias sobre esses temas, deve pesquisar bem. Existem máfias que as controlam. E são levadas de países pobres, vivem uma boa vida por lá, mas precisam dar lucros a seus patrões. Essa era assim, fazia tudo direitinho. Até que chegou um homem de Angola. Ele possuía um vício muito delicado. Gostava que a mulher comesse chocolates enquanto trepava com ele.”

“Ela comeu chocolates e aí ficou verde?”, interrompi divertida.

“Não, espere, não foi bem assim, deixa eu contar, também gosto de narrar. Quando estava no país, o tal angolano saía com ela todos os dias. E pagava mais que os outros. Mas pedia para ela comer o chocolate que ele mesmo levava. Para ela não havia problema, acho que chegava a exclamar: – a  que gostosura!, e comia mais e mais. Até que ela começou a engordar. Seus chefes a chamaram e quiseram saber o motivo, pois já começavam a ter prejuízo. Ela não quis complicar a vida do angolano, disse apenas que ela mesma resolvera comer demais ultimamente. Eles, então, começaram a vigiá-la a todo momento. Pagaram para que fizesse exercícios, nutricionista e coisa e tal. Mas a mulher não emagrecia. Resolveram a partir daí investigar todos os homens com quem ela fazia programa. Descobriram, enfim, os chocolates do angolano. Foi então que, para não alterar a rotina, nem os ganhos que eles tinham com a frequência do homem, resolveram dar o chocolate que ele devia levar. Era um chocolate dietético. Daí em diante, a mulher começou a ficar verde.”

“Ela era alérgica ao chocolate dietético”, frisei.

“Isso, alérgica.”

“E como fizeram depois?”

“Acharam melhor mandar o angolano de volta para a África do que perder a mulher. Parece que de início ela sofreu, porque chegou a se apaixonar por ele, ou pelos chocolates, não sei bem, mas depois acostumou e voltou a ser o que era."

“Boa a história”, falei, “dá um bom conto, caso caia nas mãos de alguém com talento.”

“Entrego-a a ti, minha talentosa esposa”, e deu-me mais um beijo. Segurou então a pequena xícara que já o esperava fazia alguns minutos e sorveu o café.

Da nossa viagem, o que tenho a relatar é que vivemos dias maravilhosos. Passeamos por todos os locais turísticos da cidade, jantamos em vários restaurantes, comemos fondue e tomamos diversos vinhos. Escritores e escritoras normalmente não são reconhecidos, poucos são celebridades. Apesar de ver uma mulher com um livro meu nas mãos, hospedada no mesmo hotel em que estávamos, não fui reconhecida por ela. Até chegamos a conversar. Quando a encontrei em outro momento, ela lia aquele conto da mulher que se separa do marido porque ele quer fazer sexo com ela várias vezes por dia. Percebi que a mulher ria muito. Talvez em pensamento dissesse: “ai se fosse o meu marido, que beleza.” Alguns têm demais, outros de menos. Também é difícil encontrar aqueles que dão e que recebem na medida certa.

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