segunda-feira, julho 29, 2013

Olha que quando fico bêbada tiro toda a roupa

O shopping sábado, logo após a hora do almoço, é um local agradável para quem está sozinha, sempre há muito para se observar nas vitrines, e as pessoas que transitam pelos corredores refrigerados ainda não incomodam, pois aparecem em pouca quantidade, pode-se até mesmo observar, de forma sorrateira, o que cada uma tem de interessante.

Eu caminhava pelo Iguatemi quando, de fronte a uma vitrine de vestidos, observei pelo espelhar do vidro um homem parado em meio ao corredor. Ele olhava o pulso, talvez se certificasse das horas e, quem sabe, lamentasse o atraso da pessoa que esperava. Dei alguns passos à esquerda e fiz de conta que apreciava o vestido marrom localizado mais ao fundo. O homem continuou no mesmo lugar, mas movimentara-se e se punha agora de costas. Calçava sapato social, vestia calça preta e camisa de mangas de tecido fino, de cor verde, seu cabelo era preto. Devia medir em torno de metro e oitenta. Pouco a pouco ele foi completando uma volta, quase no mesmo lugar, a seguir olhou para a vitrine onde eu hesitava. Da posição em que me encontrava pude observá-lo de frente de modo mais nítido. Ele não percebia que eu o espreitava. Lembrei-me de uma amiga que sempre diz: “o importante é ter bastantes amigos”. O tal homem, naquela tarde, bem que poderia aproximar-se e tentar comigo um início de diálogo, mas ele parecia preocupado. Olhou para um lado, para o outro e ainda uma vez mais se certificou das horas no pequeno relógio de pulso. Olhei-o de novo através do espelho e conclui que de nada adiantaria ficar numa espécie de jogo de gato e rato, ou de gata e rato. Sim, era eu a caçadora. Virei-me. Quando olhei seu rosto ele levantava a face, tentava esquecer o relógio, as horas. Naquele momento nossos olhares cruzaram-se, momentos suficientes para darmos conta da existência de um e de outro; eu, mais interessada, lhe sorri. Ele notou o campo aberto, só não avançaria se não quisesse.

Nos segundos que se passaram, lembrei-me de minha diarista, uma negra magra e nem tão bonita, mas assanhada que só. Outro dia disse que conhecera na condução um fotógrafo espanhol. Deu-lhe o número do telefone e passou a encontrá-lo quase todo o final de dia quando saía da minha casa. Foi-lhe fácil conversar, fazer amizade e quem sabe o que mais. Vai ver ele já até tem a foto dela nua. Segui para a praça de alimentação. O dado estava jogado.Caso ele quisesse arriscar, bastava seguir-me.

Sentei-me no Viena, pedi à garçonete café expresso e bolo de laranja. Olhei ao redor, mas não vi o homem. Que pena, não entendeu meus sinais, foi-se, logo num sábado, dia ideal para uma conversa, um namoro ou mesmo algo mais. As pessoas que estavam em volta comiam e bebiam sem observar umas às outras. Quem estava sozinho (ou sozinha), parecia mergulhado em si mesmo. Quem vinha em companhia mantinha a conversa alegre, de mútuo interesse. Vi um homem caminhando para a mesa ao lado, um adolescente o acompanhava. Talvez pai e filho, desses pais divorciados que saem com o filho aos sábados. Sentaram-se e começaram a tomar cada um sua coca-cola. Lá, além, ao lado de uma bombonier, quem vejo? O homem dos espelhos. Ele mesmo, ainda sozinho, tinha o ar preocupado. Alguém lhe faltara o compromisso? Esperava ainda por companhia? Pensei em chamar sua atenção, em despertar-lhe o interesse, mas eu estava longe, não ficaria bem fazer alvoroço. Tive uma amiga que se declarava aos homens. Mas no final o relacionamento não dava certo. Tudo que é muito fácil não é valorizado. Continuei sorvendo meu café e torcendo para que ele olhasse para onde eu estava. Que viesse para as minhas bandas. “Dona Márcia, por que a senhora não perguntou pelo menos as horas?”, diria minha diarista. “Quando percebo que alguém me interessa, pergunto logo as horas, mesmo que não tenha o relógio no pulso”, continuaria ela. Não percebi quando outro homem passou rente a mim. Ouvi apenas sua voz.

“Moça, posso sentar aqui?”, perguntou e olhou para a cadeira vazia, à minha frente.

“Sim, claro”, falei.

Não tinha a mesma elegância do meu admirador dos espelhos, mas também não era de se jogar fora.

“Está cheio o local”, falou enquanto segurava o garfo. Pôs-se a comer um salgado.

Apenas sorri. Quando acabei, ameacei levantar, ia pedir licença. Aconteceu, no entanto, o inesperado. Vi o namorado original. Sim, ele já era meu namorado, porque namorado vem de “estar em amor”, e era como me sentia naquele momento.

“Ei, venha até aqui”, gritei para ele, “guardei um lugar para você.”

Olhou para mim meio desconcertado. Sorri, e disse: “não está me reconhecendo, venha até aqui.”

O homem que sentara à minha frente, gentil, cedeu o lugar a ele.

“Não, não precisa”, cheguei a dizer. Mesmo assim levantou-se, observou um lugar na mesa ao lado e mudou-se para lá. O outro aproximou-se meio sem jeito: “é que espero uma pessoa, não estou reconhecendo você.”

“Espere por ela aqui, enquanto isso eu esclareço. Você não estudou engenharia na UNB?”

“Não, não sou eu. Estudei no Rio, na Puc.”

“Poxa, a PUC é boa, não? Desculpe se lhe incomodo. Acho que me enganei.”

“Não era você que estava olhando uma vitrine, no segundo andar?”

“Sim, era”, falei alegre, como se ele tivesse descoberto a pólvora.

“Estou reconhecendo.”

“Então, já nos conhecemos de algum lugar”, completei.

Ele deu uma meia risada. Pela primeira vez o vi livre da preocupação que estampava no rosto. Não demoraria para eu descobrir que ele esperava uma mulher.

“Às vezes as coisas não acontecem como a gente quer, não é mesmo?”, falei.

“É, isso mesmo”, fez menção de que iria pedir um café. Acabou decidindo-se por chocolate quente.

“Se atrapalho, me retiro”, fiz cara de que incomodava.

“Não, por favor, fique, não há problema algum. Acho que nada acontece por acaso.”

“Não?”, perguntei maliciosa.

“Acho que não”, ele logo teve a xícara de chocolate nas mãos.


Entramos no cinema. Ele nada mais falou sobre o seu encontro. Vimos o filme sobre o início da carreira de Renato Russo. Ele adorou. Quando o filme acabou, era outro homem.

“Bom, não é mesmo?”, perguntou. “Isso é fibra, alguém que acredita nos seus ideais e persiste”, falou como se o músico houvesse salvado o mundo.

“Gostei muito”, também afirmei, “e ele que era tão frágil.”

Passeamos pelos corredores, quase a esmo. Percebi que não queria ir embora, não desejava despedir-se.

“E agora?”, arrisquei.

“Você tem algum compromisso?”

“Tenho”, arrisquei e fiz uma expressão de que sentia pena.

“Ia convidar você para dar mais uma volta.”

“Ok, vou ver se consigo ficar mais tempo. Preciso fazer uma chamada”, recolhi-me a um canto menos movimentado do shopping e fingi que telefonava. Falei, gesticulei. Tudo representação. Depois voltei a ele. “Resolvido, vamos passear mais um pouco."

“Já ouviu falar de Kierkegaard?”, perguntou de repente.

“O filósofo?”

“Esse.”

“Na época de estudante, tive um professor de filosofia que era apaixonado por esse pensador. Dizia que foi o primeiro a introduzir o sujeito no conceito de ser, se não me engano.”

“Isso mesmo, é um filósofo apaixonante.”

“Por que ele agora?”, eu quis saber.

“Há um livro sobre ele na Cultura, queria comprar...”

“Vamos lá, então.”

Depois de feita a compra, quando saíamos da livraria, uma mulher jovem parou diante dele.

“Você? Agora?”, ele perguntou surpreso.

“O que tem? Por que não me esperou?”

Antes que respondesse, ela mesma continuou:

“Quem é ela?”, apontou para mim e esperou resposta.

Ele não respondeu. Os segundos que se seguiram pareceram eternos. A mulher deu as costas e entrou na livraria. Ele teve o intuito de segui-la. Antes que o fizesse, olhou-me indeciso.

“Não vá, ela telefonará para você amanhã ou depois”, falei. “Se você segui-la, fará isso a vida toda.”

“Como posso ter certeza de que ela me telefonará?”

“Certeza, não sei, mas ela acabará telefonando. Venha”, puxei o homem pelo braço e saímos dali.

Deduzi que era a mulher por quem ele esperava.

Caminhamos para fora do shopping.

“Não tínhamos combinado em continuar nosso passeio?, perguntei.’

“Sim, vamos continuar”, sorriu e seguimos até onde havia estacionado o carro. Entardecia, o céu avermelhava-se, no horizonte acentuava-se aquela sensação de encontro entre o céu e o mar que o por do sol de Brasília sempre sugere, um mar distante e ilusório que a vastidão do planalto central impõe àqueles que vêm do litoral e ainda não se acostumaram à nova paisagem.

Entramos num automóvel cinza metálico, muito luxuoso. Ele deu a partida. Deixamos para trás o shopping, o estacionamento e começamos a seguir em direção ao Lago Norte.

Ficamos em silêncio enquanto ele conduzia o veículo pelas largas vias dos arredores da capital federal. Sugeri que fôssemos ao Iate Clube.

“Iate?”, assustou-se, “o que tem lá?”

“É um clube, além de haver lá um um bonito bar, pode-se apreciar um céu maravilhoso.”

“Você possui um barco?”, arregalou os olhos.

“Não é bem meu, mas da família.”

“Você pilota barcos?”

“Assim como seu Kierkegaard tentava pilotar o eu.”

A única coisa que ele pôde fazer foi sorrir. Saiu da via principal e começou a beirar outra, mas de menor importância. Como não estava frio, vimos muita gente nas imediações do lago e do setor de clubes.

“Onde estacionamos?”

“Dentro do clube, eu mostro.”

Atravessamos a entrada de veículo. Apresentei a minha identificação e expliquei que levava um convidado. O funcionário agradeceu a nossa presença, disse que ficássemos à vontade, mas que havia uma festa em determinado setor onde só se poderia ter acesso através de convite.

Estacionamos e descemos para as proximidades do ancoradouro. Paramos um pouco à beira d’água, depois seguimos ao bar. Propus que, no início, tomássemos alguma coisa, poderia ser café, ou mesmo refrescos, que deixássemos a bebida alcoólica para mais tarde.

“A garota era sua namorada?”, falei sobre o inesperado encontro com a moça, no shopping.

“Mais ou menos.”

“Ela ficou furiosa quando me viu ao seu lado.”

“Você observou?”

“Sim.”

Um garçom veio atender a nossa mesa.

“Quero um café com um pingo de leite”, pedi.

“Pra mim também”, falou ao garçom. “Nós vamos ao seu barco?”

“Sim, mas conversemos antes um pouco.”

“Você tem namorado?”

“Tenho vários.”

“Verdade?”

“Verdade. Mas não significa que tenho de ficar ao lado deles. Eles é que me namoram e não eu a eles.”

“Você é engraçada.”

“Daqui a pouco vai dizer que trabalho no circo,”, revidei.

“Não foi isso que eu quis dizer. Estou achando você uma pessoa muito alegre.”

“As pessoas sempre dizem isso de mim, acho que de agora em diante vou fazer cara de furiosa”, ri.

“Em relação a essa mulher que você conheceu, as coisas não são tão alegres nem pacíficas. Ela é muito radical.”

“As pessoas radicais são fáceis de serem dobradas.”

“Quanto a isso, não posso concordar com você”, disse ele, “ela não é fácil, não. E sobre o que aconteceu hoje, sei que ela não vai mais querer saber de mim.”

“Aí é que você se engana.”

“Verdade?”, mostrou preocupação.

“Tenho certeza. Digo que sempre há uma maneira de se chegar às pessoas.”

“Em relação a ela, não há. Sei que não vou conseguir. Ela não mais pensará em mim.”

“As pessoas sempre têm uma porta aberta, basta descobrir onde tal porta está”, afirmei com a mais absoluta certeza.

“Não acredito que será possível reconquistá-la, não digo isso porque estava com você e ela nos viu, mas o problema é anterior.”

“Você se engana; caso queira, será possível. A primeira estratégia a seguir é acreditar que você vai conseguir. Mas há um ponto: você precisa analisar se esse relacionamento amoroso vale a pena.”

“Eu gosto dela.”

“Você acabará como uma espécie de serviçal dela. Há homens que bajulam o  tempo todo, enchem a mulher de presentes, fazem tudo o que ela pede. Mas não sei se um relacionamento assim é compensador.”

“Você acredita nisso?”, parecia ansioso.

“Acredito. Sou mulher.”

“Não íamos ao barco?”, ele pareceu desinteressar-se pela conversa, demonstrava querer outros ares.

Segui pelo ancoradouro e apontei a embarcação.

“É muito grande”, pareceu surpreender-se.

“Você pensou que fosse um barquinho a remo?”

“Não, mas não imaginava um iate desse porte.”

“Aqui é apenas um lago, você sabe, não se pode ir muito longe.”

“Para conduzir uma embarcação dessa é preciso ter experiência”, olhou para mim desconfiado.

“Não se preocupe, não vamos navegar, tenho duas garrafas de vinho na cabine, e há espaço pelo barco onde podemos ter apenas o céu sobre nossas cabeças. Não tenho mesmo é nada para comer, mas podemos arranjar no bar um pedaço de queijo e alguns pães”, sorri ante o imprevisto.

Já dentro do barco, perguntei:

“Que tal o nosso pique-nique?”

“Não esperava que ia viver isso tudo hoje.”

“Você esperava por sua namorada.”

“Não vamos falar mais nisso.”

“Vamos falar sobre algo mais atemorizante. Não conheço você, quem sabe me vai fazer algum mal?”, falei e caí na gargalhada.

“Isso mesmo. Sou um homem mal, um sequestrador...”

“Acho que fui eu quem sequestrou você. Sou eu quem sei fazer andar essa joça.”

“Você tem razão.”

Brindamos o vinho.

“Brindaremos a quê?”, perguntou.

“Brindemos por nos termos conhecido”, falei e o abracei.

“Você sempre traz os seus namorados aqui?”, perguntou um tanto sem jeito.

“Que indelicadeza. Isso é pergunta que se faça? Convidei você porque o achei especial”, apesar do tom sério no início, minhas palavras não soaram em tom de advertência. Acabei rindo no final.

É difícil terminar uma história, sempre há algo que nos lança adiante. Mas enquanto bebíamos o vinho, tornamo-nos pouco a pouco amantes, Ainda lembro que falei:

“Olha que quando fico bêbada tiro toda a roupa.”

O que ele podia dizer? Riu, apenas. Depois, aproveitamos o resto da noite. Só aquela noite. Porque no dia seguinte, logo cedo, eu tinha certeza, ele procuraria pela namorada.

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