quinta-feira, julho 04, 2013

Se houvesse sol - 14 - final

O salão de chá do Hotel Everest era o mesmo em que havíamos tomado café naquele fim de madrugada. Mário chegou antes de mim e sei que esteve olhando em todas as direções a me procurar. Quando entrei, fazia quinze minutos que chegara. Eram quatro horas da tarde. Eu vestia um vestido reto, de cor negra, meus olhos estavam cobertos por óculos escuros. Avistei o rapaz e fui até ele.

“Não vai tirar os óculos?”, perguntou.

“Boa tarde”, ofereci-lhe o rosto.

Levantou-se e me beijou. Sentei a seguir, mas ele ainda permaneceu alguns segundos em pé, numa situação um tanto embaraçosa. Ele preferia não estar ali, preferia não ter o que dizer. Gostava de mim, apreciava-me o corpo, apesar de havermos estado juntos apenas duas vezes, uma na praia, outra naquele fim de madrugada.

“Não é preciso que você perca seu tempo”, falei antes de tirar os óculos.

“Você já sabe, então. Como descobriu?”

“Quase ao acaso.”

“Acaso? Você me contratou para essa investigação. Perdi três semanas. Conferi todos os lugares onde ele andou, falei com diversas pessoas com quem esteve, muitas me olharam com desconfiança, cheguei a ser seguido por dois homens, tenho trajetos, mapas, quartos onde ele morou, o croqui de um casarão da Monsenhor Félix, rua do centro velho, entrevistei a proprietária, falei que era repórter de um grande jornal...”

“Peço desculpas se fiz você andar por aí de modo desnecessário.”

“Desnecessário?”

“Vou pagar a você, não se preocupe, farei tudo conforme combinamos.”

“Dinheiro não é problema. Fiz o trabalho por amor.”

“Amor? Você sabe o que é amor?”

“Acho que você me pediu essa investigação por amor a alguém. Descobri quando comecei a andar em busca de Daniel. Percebi que você o amava.”

“Eu nunca o amei.”

“Por quê, então, toda essa busca? Estamos brincando de detetives?”

“Não é isso”, respondi, “não se trata de uma brincadeira.” Tirei o jornal da bolsa onde havia a notícia de que um rapaz se atirara do décimo segundo andar de um prédio do centro do Rio, no dia anterior. Era Daniel.

Mário, com ligeiro movimento de cabeça, concordou. Permanecemos em silêncio por alguns segundos.

“O que você vai fazer agora?”, ele quis saber.

“Ainda não sei?”

“Sua vida é boa, você tem alternativas, talvez encontre motivos para escrever mais um bom romance.”

“Não fale besteira”, afirmei severa, “isso não é um caso comercial.”

“Vamos comer algo, vamos conversar. Você é uma pessoa experiente, já superou muitos problemas durante a vida”, falava com seriedade duvidosa para alguém tão jovem.

“A morte é impossível de ser superada. Há apenas a conformação, o esmorecimento da lembrança enquanto outras coisas começam a vir à flor da pele.”

“Você não quer saber o motivo?”

“E você por acaso o tem?”

“Tenho algumas conjecturas”, falou.

“Daniel era um homem melancólico. Daí é possível esperar qualquer coisa, não é preciso saber muito.”

“Acho que estava sendo perseguido, alguém o cobrava alguma coisa. Não sei se dinheiro, não sei se se envolveu com drogas.”

“Sempre a mesma desculpa quando um caso se torna insolúvel: dinheiro, dívidas, drogas.”

“Minhas investigações apontam nessa direção.”

“Suas investigações apontam, apontam, há muitas coisas que apontam, você ainda não sabe nada sobre a vida.”

“Então por que me contratou?”

Suspirei, levei uma das  mãos ao rosto, uma garçonete alheia esperava que fizéssemos os pedidos. Mário fez sinal que esperasse.

“Você é um monstro”, afirmou com o dedo em riste para mim.

“Monstro?”, pus-me a rir. A garçonete já não pôde mostrar-se tão alheia, chegou a piscar os olhos e virar-se para a direita.

“Diga por que sou um monstro.”

“Não sei, mas acho você muito ardilosa.”

“Houve uma época em que eu fui ingênua, mas depois...”

“Fala a verdade, você queria motivos para uma boa história”, afirmou.

“Achas que sou tão insensível?”

“Acho, mas sei que não adianta conversarmos sobre isso agora. Escute, ele já se foi, o que podemos fazer é reclamar o corpo e enterrá-lo. Depois resolvemos o que vamos fazer de nossas vidas.” Sua sugestão pareceu-me sensata.

Coloquei novamente os óculos, virei-me para a garçonete e pedi um café puro, sem açúcar. Mário quis o seu com um pouco de leite.

Lá fora a tarde avançava, um fim de dia útil. Descendo a Maria Quitéria chegava-se à praia.  E sempre havia alguém na praia, sobretudo se houvesse sol.


Ele passou na faixa de areia entre o mar, que explodia em rendas desfiadas, e a pequena falésia. Era alto e jovem. Eu lia uma revista e ao mesmo tempo tentava dar conta do que acontecia à minha volta. Havia pouca gente na praia, um guarda-sol ou outro, a maioria eram mulheres sozinhas ou acompanhando crianças. Continuou o seu caminho. Não era uma caminhada de esportista ou de alguém interessado em andar para melhorar a condição física, era alguém que andava por andar, talvez por achar enfadonho permanecer no mesmo lugar. Parecia absorto. Lembro-me ainda que voltou o rosto para o mar uma ou duas vezes, depois desapareceu. Momentos mais tarde, fez o caminho de volta. Suas passadas eram como as da ida. Notou então que eu o olhava. Mesmo que continuasse acompanhando sua marcha, sei que jamais viria falar comigo. Era o jeito dele.

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