“Não vai tirar os óculos?”, perguntou.
“Boa tarde”, ofereci-lhe o rosto.
Levantou-se e me beijou. Sentei a seguir, mas ele
ainda permaneceu alguns segundos em pé, numa situação um tanto embaraçosa. Ele preferia não estar ali, preferia não ter o que dizer. Gostava de mim,
apreciava-me o corpo, apesar de havermos estado juntos apenas duas vezes, uma na
praia, outra naquele fim de madrugada.
“Não é preciso que você perca seu tempo”, falei
antes de tirar os óculos.
“Você já sabe, então. Como descobriu?”
“Quase ao acaso.”
“Acaso? Você me contratou para essa investigação.
Perdi três semanas. Conferi todos os lugares onde ele andou, falei com diversas
pessoas com quem esteve, muitas me olharam com desconfiança, cheguei a ser
seguido por dois homens, tenho trajetos, mapas, quartos onde ele morou, o
croqui de um casarão da Monsenhor Félix, rua do centro velho, entrevistei a
proprietária, falei que era repórter de um grande jornal...”
“Peço desculpas se fiz você andar por aí de modo
desnecessário.”
“Desnecessário?”
“Vou pagar a você, não se preocupe, farei tudo conforme combinamos.”
“Dinheiro não é problema. Fiz o trabalho por amor.”
“Amor? Você sabe o que é amor?”
“Acho que você me pediu essa investigação por amor a
alguém. Descobri quando comecei a andar em busca de Daniel. Percebi que você o
amava.”
“Eu nunca o amei.”
“Por quê, então, toda essa busca? Estamos brincando
de detetives?”
“Não é isso”, respondi, “não se trata de uma
brincadeira.” Tirei o jornal da bolsa onde havia a notícia de que um rapaz se
atirara do décimo segundo andar de um prédio do centro do Rio, no dia anterior. Era Daniel.
Mário, com ligeiro movimento de cabeça, concordou.
Permanecemos em silêncio por alguns segundos.
“O que você vai fazer agora?”, ele quis saber.
“Ainda não sei?”
“Sua vida é boa, você tem alternativas, talvez
encontre motivos para escrever mais um bom romance.”
“Não fale besteira”, afirmei severa, “isso não é um
caso comercial.”
“Vamos comer algo, vamos conversar. Você é uma
pessoa experiente, já superou muitos problemas durante a vida”, falava com seriedade duvidosa para alguém tão jovem.
“A morte é impossível de ser superada. Há apenas a
conformação, o esmorecimento da lembrança enquanto outras coisas começam a vir
à flor da pele.”
“Você não quer saber o motivo?”
“E você por acaso o tem?”
“Tenho algumas conjecturas”, falou.
“Daniel era um homem melancólico. Daí é possível
esperar qualquer coisa, não é preciso saber muito.”
“Acho que estava sendo perseguido, alguém o cobrava
alguma coisa. Não sei se dinheiro, não sei se se envolveu com drogas.”
“Sempre a mesma desculpa quando um caso se torna
insolúvel: dinheiro, dívidas, drogas.”
“Minhas investigações apontam nessa direção.”
“Suas investigações apontam, apontam, há muitas
coisas que apontam, você ainda não sabe nada sobre a vida.”
“Então por que me contratou?”
Suspirei, levei uma das mãos ao rosto, uma garçonete alheia
esperava que fizéssemos os pedidos. Mário fez sinal que esperasse.
“Você é um monstro”, afirmou com o dedo em riste
para mim.
“Monstro?”, pus-me a rir. A garçonete já não pôde
mostrar-se tão alheia, chegou a piscar os olhos e virar-se para a direita.
“Diga por que sou um monstro.”
“Não sei, mas acho você muito ardilosa.”
“Houve uma época em que eu fui ingênua, mas
depois...”
“Fala a verdade, você queria motivos para uma boa
história”, afirmou.
“Achas que sou tão insensível?”
“Acho, mas sei que não adianta conversarmos sobre
isso agora. Escute, ele já se foi, o que podemos fazer é reclamar o corpo e enterrá-lo.
Depois resolvemos o que vamos fazer de nossas vidas.” Sua sugestão pareceu-me
sensata.
Coloquei novamente os óculos, virei-me para a
garçonete e pedi um café puro, sem açúcar. Mário quis o seu com um pouco de
leite.
Lá fora a tarde avançava, um fim de dia útil.
Descendo a Maria Quitéria chegava-se à praia.
E sempre havia alguém na praia, sobretudo se houvesse sol.
Ele passou na
faixa de areia entre o mar, que explodia em rendas desfiadas, e a pequena
falésia. Era alto e jovem. Eu lia uma revista e ao mesmo tempo tentava dar
conta do que acontecia à minha volta. Havia pouca gente na praia, um guarda-sol
ou outro, a maioria eram mulheres sozinhas ou acompanhando crianças. Continuou o seu caminho. Não era uma caminhada de esportista ou de alguém interessado em
andar para melhorar a condição física, era alguém que andava por andar, talvez
por achar enfadonho permanecer no mesmo lugar. Parecia absorto. Lembro-me ainda
que voltou o rosto para o mar uma ou duas vezes, depois desapareceu. Momentos
mais tarde, fez o caminho de volta. Suas passadas eram como as da ida. Notou
então que eu o olhava. Mesmo que continuasse acompanhando sua marcha, sei que
jamais viria falar comigo. Era o jeito dele.
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