sexta-feira, junho 07, 2013

Se houvesse sol - 3

No manhã seguinte desci à praia em torno das  nove e finquei o guarda-sol na altura do Country. O mar era de poucas ondas, a praia estava num estado de calmaria. Após cinco ou dez minutos, já na cadeira, tendo passado o protetor solar, vi o rapaz que conhecera no dia anterior. Como era mesmo o nome dele? Ah, Daniel. Depois de tantos encontros e desencontros, quase não lembrava o seu nome. Reparei suas passadas. Será que me havia esperado aparecer para dar o ar de sua graça, mesmo fingindo que não me avistou? Ele se foi. Fiquei na esperança de que voltaria. Acendi um cigarro, dei um longo trago e soltei a fumaça olhando para o céu. Não havia sequer uma nuvem. Que manhã bonita! Desejei que as manhãs fossem sempre assim, e me sentia feliz porque podia desfrutar tamanho prazer.

Peguei a sacola e comecei a olhar uma revista de moda. Mulheres bem vestidas, estilo primavera, vestidos floridos, curtos, ou mesmo descendo até os joelhos. Numa das páginas centrais, várias modelos em fotos à beira-mar apresentavam uma nova coleção de biquínis. A moda para a próxima estação parecia optar por biquínis não muito curtos. E gosto deles tão mínimos. As modelos não sorriam nas fotos. Mostravam uma ponta de alegria, mas não um sorriso aberto. Quando ia bastante distraída com aquelas imagens, escutei uma voz masculina me chamar:

“Célia, como vai? Quanto tempo.”

Levantei os olhos, era um amigo de outros tempos. Já havia saído com ele para jantar e conversar. Sabia que sempre tivera desejo de me levar para cama, mas nunca conseguiu. Não foi porque eu não quisesse. Poderia até ter feito amor com ele, mas acho que as circunstâncias foram desfavoráveis.

“Tomando sol, apenas?”

“Tomando sol e olhando a paisagem.”

“Quem bom encontrar você bonita como sempre, e num clima tranquilo assim...”

“Obrigada, você me acha mesmo bonita?”

“Acho linda.”

“É muita gentileza da sua parte, já não estou tão em forma”

“Quando vejo você, sinto uma terrível vontade de convidá-la para sair.”

“Nada marcamos e nos encontramos aqui, não está ótimo assim?”

“Está, mas do jeito que você é bonita seria melhor tê-la sem outras pessoas em volta.”

“Já sei, você quer me sequestrar, não é mesmo?”

“No bom sentido, e não devolver por resgate algum.”

“Aí vai acontecer como com qualquer outra, vira casamento.”

Ele riu. Não sei se pensando na própria situação – a mulher dele era bonita, eu a conhecia –, ou se porque eu desfazia, mesmo sem querer, sua cantada.

“Você não quer ir a Rio das Ostras? Lá há praias mais reservadas,” falou.

“Hoje prefiro ficar aqui, talvez num outro dia eu vá com você. Não posso ficar na praia muito tempo, logo tenho de voltar para casa.”

“Ok, tenho seu telefone, dou uma ligada para marcar.”

“Isso mesmo, liga que a gente combina.”

Percebeu que eu preferia ficar sozinha. Após mais alguns minutos, foi embora.

Caso o momento fosse outro, eu o acompanharia. Mas queria esperar pelo jovem que eu paquerava havia pouco. Ele demorou a voltar. Quando o vi, não resisti, chamei-o.

“Oi, Daniel, como vai?”

“Bem”, ele não era de muitas palavras, como pude notar desde o primeiro dia.

“Vai ficar na praia por muito tempo?”, perguntei.

“Não sei ainda.”

“Você tem algum compromisso para hoje, durante as próximas horas?”

“Compromisso, não. Mas tenho algumas pequenas coisas para resolver.”

“Fique então aqui ao meu lado, vamos aproveitar um pouco o sol.”

Ele sentou sobre a própria areia, tomou nas mãos a revista que eu deixara de lado e olhou algumas páginas. Depois a colocou no mesmo lugar e se voltou para o mar.

“Você não tem o que fazer?”, perguntou.

“Mais ou menos”

“Você não tem nenhum compromisso?”

“Não, sou solteira” apressei-me em dizer.

“Desculpe, mas não foi isso que perguntei. Queria saber se você não precisa ir ao centro da cidade.”

“Às vezes preciso, mas não gosto de lá. Se eu puder, prefiro ficar aqui na praia.”

“Mas você fica na praia o dia inteiro?”

“Não, sempre vou embora em torno do meio dia.”

Nada mais disse. Olhou mais uma vez para a revista, mas não a segurou. Depois reparei que apreciou de soslaio as minhas pernas.

“Você quer entrar na água?”, eu tentava evitar que partisse.

“Posso entrar. Você não vai sozinha?”

“Às vezes vou, mas prefiro ir acompanhada.”

Peguei-o pela mão e caminhamos em direção ao mar.

“Você nada bem?”, ele quis saber.

“Nado.”

“Vamos então para trás da arrebentação?”

Soltei sua mão e mergulhei. Nadei até vencer a primeira onda. Olhei e o vi a alguns metros. Sinalizou que deveríamos avançar mais, pois vinham mais duas ondas. Mergulhamos juntos, cortamos a primeira, vencemos a segunda e permanecemos num pedaço de mar aparentemente calmo, um pouco distante da faixa de areia.

Quis provocá-lo.

“Tenho uma amiga que gosta de nadar até aqui para ficar nua.”

Ele mordeu a isca:

“Onde ela guarda a roupa?”

“Não sei, acho que tem um método especial. Acho que pede a alguém para levá-la para a areia.”

“Verdade?”

“Ela mesma me contou, do jeito que é maluca não duvido nada. Você gostaria de encontrá-la nua, por aqui?”

“Ela é bonita?”

“Tem mais ou menos o meu corpo.”

Pela expressão de seu rosto, percebi que achara a mulher bonita.

Ficamos flutuando, movimentávamos apenas as pernas ou nos sustentávamos com uma ou outra braçada. Aproximei-me bastante dele e toquei suas costas. Depois, sorri.

“Você me faz um favor?”

“Qual?”

“Você me deixa nua?”

“Aqui?”

“Sim, o que é que tem?”

“Acho que a pessoa sobre quem você falou é você mesma.”

“Quem sabe?”

“Você está falando a verdade? Quer mesmo que eu deixe você nua?

“Quero.”

“Como fazemos, então?”

“Primeiro, quero lhe dar um beijo.”

Abracei-o e dei um beijo nos seus lábios. Um beijo ligeiro, mas cheio de charme.

“Você não acha melhor deixar para tirar a roupa em outro lugar?”, perguntou.

“Você prefere?”

“Acho melhor.”

“Está bem, então vamos nos encontrar à noite.”

“Hoje?”

“Isso, hoje, você pode?”

“Posso.”

“Mas jura que não quer me deixar nua, aqui?”

“Já que você insiste...”

Nadamos, mergulhamos algumas vezes, abracei e o beijei de novo. Ficamos agarrados um ao outro durante longo tempo. Depois vesti o biquíni, que ele guardara dentro da sunga, e voltamos para junto do guarda-sol.

A perspectiva do encontro marcado para mais tarde agradou-o. Mas sua fisionomia tinha um ar diferente da que eu estava acostumada a ver nos homens.

Permaneci na praia depois que ele se foi. Devido à hora já adiantada –  já passava do meio-dia – a freqüência diminuiu. Olhei em direção ao mar e pude perceber que as águas pouco a pouco se tornavam mais agitadas. Pensei no rapaz, pensei aonde poderia chegar aquele relacionamento caso vingasse. Seus olhos até certo ponto tristes me vieram muitas vezes à mente. Ele não demonstrara euforia pelo meu corpo, nem mesmo no momento em que pedi para que me deixasse nua. Seria ele assediado por muitas garotas, por mulheres mais jovens do que eu? Teria outras preocupações, além de arrumar uma namorada, ou de fazer amor com alguém? Ou seria gay? Era natural que na idade dele muitos se preocupassem com a carreira profissional. Ele, no entanto, em momento algum falou sobre trabalho ou sobre o que fazia para ganhar a vida.

À tarde fui ao banco. Enquanto esperava, lia um livro para passar o tempo. Era um desses romances policiais norte-americanos. Tinha um nome peculiar: Edições perigosas. Como sempre fui fã de literatura policial, estava me deliciando com a história. Tratava-se de uma narrativa ambientada em Denver, capital do Colorado. Um policial tentava desvendar um crime: por que morrera um alfarrabista? O assassinato levava a várias pistas, que naturalmente eram falsas. Na verdade, o crime não era investigado por apenas um policial. Este formava dupla com outro, que era inteligente, mas não demonstrava a mesma perspicácia que o primeiro. O interessante é que o romance, como o próprio nome insinuava, tinha como pano de fundo o comércio de livros usados e raros. Era delicioso me perder naquelas páginas em que, além da ação, era citada uma infinidade de obras literárias. Havia três mulheres metidas na história. Uma era a namorada de um gangster. Ele tinha sobre si uma série de acusações, e a mulher sofria nas mãos dele. A polícia, no entanto, nunca encontrava provas para prendê-lo. Naturalmente era um dos suspeitos de ser o assassino do alfarrabista. A segunda personagem feminina era rica e parecia comercializar livros raros apenas por prazer. Pairava alguma suspeita sobre ela. Porém o mais fascinante, era o ambiente requintado em que vivia. Fazia o tipo de mulher fatal, mas primava pela artificialidade. A terceira era uma imigrante escocesa que arranjara emprego na livraria de um homem que era recente no negócio de livros antigos. Mostrava-se esperta e empreendedora, mas não o suficiente para escapar da morte quando a história já ia perto do final. Mais ou menos no meio da narrativa, o policial investigador é acusado de abuso de poder. É obrigado a deixar o caso e, logo depois, a polícia. Mas, no final, é ele quem desvenda os crimes. Sim, crimes, porque num bom romance policial nunca há apenas um cadáver. Neste, consegui contar pelo menos quatro. Esperava a minha vez entretida nessa teia narrativa quando alguém bateu nas minhas costas. Virei-me.

“Ah, logo vi, só podia ser você, compra todos os livros que vê”, era Lurdinha.

“Oi, como vai? Não tenho paciência para esperar sem ler alguma coisa.”

“Está tudo bem com você?”

“Sim.”

“Tem passeado?”

“Algumas vezes.”

“Está sozinha?”

“Sim, estou.”

“Falou com tanta determinação...”, arregalou os olhos.

“Faz tempo que estou sozinha. Prefiro assim.”

Não queria contar nada meu para Lurdinha. Ela era uma boa pessoa, mas sempre achei que dá azar falar sobre relacionamentos com as amigas. Deixo que descubram por si próprias. Além de tudo, ficam todas fingindo muito interesse, mas na maioria das vezes torcem para não dar certo.

“Não conte pra ninguém. Mas estou com um namorado novo.”

“Novo na idade, ou recente?”, perguntei.

“Recente. Conheci o homem outro dia. Mas ele é muito jovial. Vou sair com ele hoje, acho que vamos num dos restaurantes da orla e depois... Bem, depois depende dele.

“Ainda não tiveram nada?”

“Uma vez. E foi tão bom.”

“Que legal!”, tentei estimulá-la, “você ainda é jovem, merece alguém para amar.”

“Isso mesmo, amar. É tão bom amar, não? Vou te contar sobre o que aconteceu ontem. Acho que dá tempo, estão chamando as pessoas muito devagar nessa agência, acho que pelo menos para contar alguma coisa isso é bom. Escute. Houve uma festa na escola em que trabalho. Eu e minha turminha de alunos tomávamos conta de uma barraca e nos divertíamos muito. Foi então que ele chegou. Trabalha no turno da tarde com os alunos maiores, os da oitava série. Mandei-lhe uma mensagem, dessas chamadas de correio do amor. Disse que o desejava próximo. E foi o que aconteceu. Não demorou e ele estava ao meu lado, ficou quase até o final da festa. Quando tudo acabou, eu disse: ‘estou faminta e exausta’. Estava frio naquela hora. Adivinha o que aconteceu?", não esperou que eu respondesse, "acabei nua na casa dele, encolhida e debaixo de uma coberta. Aceitei o convite para lancharmos. Enquanto foi à rua comprar pão e leite, me enfiei sob a coberta no pequeno estofado que há na sala. Quando voltou, esquentou o leite, colocou pão e queijo sobre a mesa. Trouxe o café quente num bule de vidro. Então me chamou: 'Venha! O café está pronto.' Respondi: 'Não posso, acho que não acreditei no seu lanche.' Ele se aproximou. Tomei suas mãos e as enfiei sob meus panos. Ele sentiu minha pele quente. Estiquei-lhe um beijo comprido. 'Vou trazer a xícara pra você', falou. Tomamos o café com leite. Depois, puxei o homem para os meus braços e também para debaixo da coberta. Dali a uma hora e meia lanchamos de novo. Outro café, o leite bem quente, e eu ainda nua. Passei o final da tarde na casa dele. Só posso dizer que foi ótimo.

“Acho que ele também deve ter gostado muito. Essas coisas fascinam os homens. Não é todo dia que aparece uma mulher nua debaixo de uma coberta enquanto se vai à padaria.”

Lurdinha sorriu.

“Você tem razão, tanto para ele como para mim foi uma grande surpresa. Célia, peço que não conte a ninguém, tá bom? É para não dar azar.”

“Pode deixar. Não tenho interesse algum em falar sobre isso a qualquer outra pessoa. Confie em mim. Boa sorte.”

Dei-lhe um beijo e caminhei ao guichê para ser atendida.

Ah, essas mulheres, sempre atrás de namorados. Parece que não têm mais o que fazer na vida. Acabei também rindo de mim mesma. Será que era muito diferente dela? Acho que não. Mas ao menos eu lia um livro, apesar de policial.

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