sexta-feira, outubro 20, 2006

Margareth

Margareth adorava que os homens encostassem em seu corpo quando viajava em ônibus cheio. Fingia nada sentir, mas se deliciava. Era jovem, dissimulada. Como a maioria das pessoas, trabalhava e freqüentava os coletivos na hora do rush. Enquanto muitos reclamavam da demora e da superlotação, ela se excitava. Usava roupa curta, provocante. Fazia-se assim alvo mais fácil.

Nos finais de semana, não deixava de ir à praia. A Copacabana. Vestia biquíni de lacinhos e camiseta curta. Mal cobria parte do bumbum arrebitado. Estátua viva da beleza pura, convidava a um beliscão, ou mesmo a alfinete macio.

Num domingo, voltava da praia. Já passava das quatro. Calor forte, sol ainda quente. O ônibus vinha mais apinhado do que nunca. Preferia voltar de pé. Nada melhor do que o esfrega-esfrega após um dia quente de verão: o corpo suado, a pele rosada ardendo. A pouca roupa a fazia arder ainda mais. Deixou-se encostar. Cada curva era uma nova oportunidade de se apoiar no corpo do desconhecido. A viagem prosseguiu assim até Bonsucesso. Ela morava em Olaria. Quando o ônibus deixou para trás a praça das Nações, Margareth tinha o espaço livre às suas costas. Alguns assentos até já iam vazios. Não reparara quem lhe viera por trás durante a viagem. De repente, ouviu voz próxima e grave:

– Ei, moça, deixa eu lhe falar uma coisa.

Virou-se e deu com homem corpulento.

Ele continuou:

– Notei que você gosta da brincadeira.

Tentou ser séria, mas lhe escorreu uma ponta de sorriso.

– Então, peço mais uma coisa.

Olhou-o de lado, com ar indagativo.

– Pra completar a brincadeira, queria lhe dar um presente.

Tirou do bolso pequeno objeto. Desenrolou-o. Era uma pulseira de ouro.

Margareth olhou a jóia com interesse.

– É sua – depositou ligeiro em uma das mãos da jovem, acrescentando a seguir – mas com uma condição.

Ela deu ao rosto graciosa feição de curiosidade.

– Vamos fazer uma troca – sugeriu esticando-lhe os olhos na direção do biquíni.

Margareth, sem demonstrar surpresa, curvando a cabeça, continuou a examinar a pulseira.

– Você ainda tem tempo pra decidir – como os bons comerciantes, fingia desinteresse pela transação.

Ela, então, encostou os antebraços no corpo e fez subir parte da camiseta. Exibiu discreta as pontas dos laçarotes que sustentavam o biquíni.

Sem mais palavras, o desconhecido a envolveu num abraço voluptuoso, mas teatral.

Foi então que Margareth ofertou-lhe moeda maior: febre interna tornou mel encantado a fada nua, e três tremores anunciaram a rosa lúbrica.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Paletó azul

O paletó azul me separou da multidão. Felina de fauna estrangeira, arguta e silenciosa, destaquei-me alguns metros. Optava por inexistente praia deserta entre eufóricos sopros de turba levada ao delírio por metais e cordas. Deslizava sob o forro de cetim, os sentidos aguçados, a pele nua submersa transbordando-me. Eu era palavras de povo romano que se equilibravam tênues à beira de abismo povoado de línguas nórdicas, de sons bárbaros mas plenos de volúpia. Meus pés tocaram espumas de águas mornas, leve acariciar sobre planta que se levanta, veludo que se desfibra. Subiu-me contra-senso de vapores violáceos, aromas de outros tempos, tepidez prenhe de pré-gozo. Vigiei ao redor. Tentava ocultar mão invisível que me acarinhava, que me despia, que me separava do mundo físico. A multidão, ainda sussurrei, a multidão... É cega, é cega a prazeres gotejados em outras vias, foi o que ouvi, uma espécie de sussurro em mi menor. E continuaste enquanto me descobrias: oh, as rosas, são flores doutras plagas, e são duas. És poeta?, minha voz era gemido bom, dor de amor, canto de fado longínquo. Quase, disse a mão que me subia o ventre. E fingi escapar. Mas era seta que desejava a corda do arco rompida. Caí enfim sôfrega, sem resistência, arquejando. Entregava-me no intervalo silencioso de farol em mar bravio, sobrevida de navegantes; arfava: ora dor, ora prazer. Alegria de me sentir presa, imóvel, encaixe rígido sob peso redobrado, náufraga sob casco de ferro, navio interminável; embaraçava-me a algas que me serviam de algema e mordaça. Mas tentava o gozo: meus lábios trêmulos denunciavam, minha pele derramava camada de líquido translúcido, salpicado de odores viscerais, atrativo de aves oceânicas. Já era noite, espaço de cem anos de um cometa, quando me abordaste num dos quarteirões da praia; querias as horas. Interstícios estelares, momento de erupções em sóis noturnos de outras lácteas. Salpicavam astros fantasistas sobre a avenida, distavam vinte a vinte. E em silêncio trabalhaste, sulcaste a terra, desbastaste ervas imprestáveis, achaste atalho que te levou às portas de cidade encantada, povoada de silêncios e prazeres. Quando embuçado violaste a cidadela, te equilibraste sobre meus tremores. O paletó, o paletó, não mo leve, não possuo outras fibras. Teceste então renda fina: tens algodão invisível que te oculta a céu, a mar, a clarões abertos a sol a pino ou sob penumbra quase prata. E me deixaste nua, apenas águas de salinas escorrendo, a pele diáfana, os seios a palpitarem, estátua viva. Mas ao partires descobri que me mentias...