sexta-feira, outubro 06, 2006

Paletó azul

O paletó azul me separou da multidão. Felina de fauna estrangeira, arguta e silenciosa, destaquei-me alguns metros. Optava por inexistente praia deserta entre eufóricos sopros de turba levada ao delírio por metais e cordas. Deslizava sob o forro de cetim, os sentidos aguçados, a pele nua submersa transbordando-me. Eu era palavras de povo romano que se equilibravam tênues à beira de abismo povoado de línguas nórdicas, de sons bárbaros mas plenos de volúpia. Meus pés tocaram espumas de águas mornas, leve acariciar sobre planta que se levanta, veludo que se desfibra. Subiu-me contra-senso de vapores violáceos, aromas de outros tempos, tepidez prenhe de pré-gozo. Vigiei ao redor. Tentava ocultar mão invisível que me acarinhava, que me despia, que me separava do mundo físico. A multidão, ainda sussurrei, a multidão... É cega, é cega a prazeres gotejados em outras vias, foi o que ouvi, uma espécie de sussurro em mi menor. E continuaste enquanto me descobrias: oh, as rosas, são flores doutras plagas, e são duas. És poeta?, minha voz era gemido bom, dor de amor, canto de fado longínquo. Quase, disse a mão que me subia o ventre. E fingi escapar. Mas era seta que desejava a corda do arco rompida. Caí enfim sôfrega, sem resistência, arquejando. Entregava-me no intervalo silencioso de farol em mar bravio, sobrevida de navegantes; arfava: ora dor, ora prazer. Alegria de me sentir presa, imóvel, encaixe rígido sob peso redobrado, náufraga sob casco de ferro, navio interminável; embaraçava-me a algas que me serviam de algema e mordaça. Mas tentava o gozo: meus lábios trêmulos denunciavam, minha pele derramava camada de líquido translúcido, salpicado de odores viscerais, atrativo de aves oceânicas. Já era noite, espaço de cem anos de um cometa, quando me abordaste num dos quarteirões da praia; querias as horas. Interstícios estelares, momento de erupções em sóis noturnos de outras lácteas. Salpicavam astros fantasistas sobre a avenida, distavam vinte a vinte. E em silêncio trabalhaste, sulcaste a terra, desbastaste ervas imprestáveis, achaste atalho que te levou às portas de cidade encantada, povoada de silêncios e prazeres. Quando embuçado violaste a cidadela, te equilibraste sobre meus tremores. O paletó, o paletó, não mo leve, não possuo outras fibras. Teceste então renda fina: tens algodão invisível que te oculta a céu, a mar, a clarões abertos a sol a pino ou sob penumbra quase prata. E me deixaste nua, apenas águas de salinas escorrendo, a pele diáfana, os seios a palpitarem, estátua viva. Mas ao partires descobri que me mentias...

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