Como é agradável ir pela avenida Rio Branco, no centro do Rio. No começo do dia há homens e mulheres a passos rápidos; não desejam perder a hora. Vestem ternos da moda, vestidos elegantes, altos os saltos. As calçadas vicejam, os automóveis e coletivos trafegam vagarosos, despejam aqui e ali pessoas sérias, que ainda guardam o sorriso para momento mais adiantado, talvez momento de maior descontração. Ando no trecho entre a rua da Assembléia e Sete de Setembro, faltam quinze para as dez. Resolvo entrar na Koppenhagen. Que casa comercial agradável! Sinto o perfume do chocolate e o aroma forte do café. Um homem sério, de meia-idade, em terno marrom e sapatos de verniz, olha-me com discrição, enquanto repousa a pequena xícara sobre o balcão. Sobre meu corpo, aperta-me os seios vestido vermelho tomara-que-caia, que desce justo até a cintura, para aí se soltar e me cobrir as pernas; nos pés, sapatos brancos finíssimos de meio-salto. Duas mulheres, uma de vestido cinza e outra de tailleur, tomam café. Peço o meu expresso com creme. Através do vidro, vejo uma menina e uma mulher, provavelmente mãe e filha, passam apressadas sobre o passeio; a pequena está de blusa branca e saia curta verde. Viro-me de novo para minha garçonete, ela atende alguns homens, talvez executivos do centro financeiro. Escuto deles algum gracejo, não dirigido a mim, mas ao amigo próximo, sobras de noturna aventura amorosa. Olho as embalagens de cherry brandy, o bombom molhado em licor. Sinto arrepios ao imaginar chocolate e líquido celestiais a percorrerem minha boca e mergulhar-me envolto em mel de amante recente... Madame, ouço-lhe a voz, é o senhor dos sapatos de verniz, reaparece e me oferece um presente. Madame, peço-lhe perdão, mas não pude resistir a impulso que há muito não me abate, aceite, por favor. E deixa-me nas mãos um coração de cherry. Quando penso em agradecer ou talvez recusar, meus olhos instintivos voltam-se para a caixa envolta em fita vermelha. Olho o homem de novo; ele faz ligeira reverência, sorri e sussurra: nunca vi mulher tão bela. Creio que percebi algum sotaque em sua voz. Ele entrega-me um cartão e se retira. Aventuro-me a seguir pelas ruas excitadas do Centro. Mas, neste dia, nada de extravagâncias. Às vezes, ligeiro frisson percorre meu corpo deixando-me trêmula; lembranças de artimanhas de amigas soltas por aquelas ruas, amores casuais: Maria da Glória nua num escritório; conhecera seu sedutor minutos antes, no elevador, durante o percurso de vinte seis andares; Fátima, de vestido justo, agarrada a um homem negro de quase dois metros, no subsolo de um desses velhos edifícios do Castelo, as pernas úmidas. Segundo ela, o garanhão além de lhe proporcionar prazer jamais experimentado, engolira-lhe a calcinha. Mas hoje, Margarida, apenas passeio, passeio e admiração. Entro na Dior; a vendedora já me é velha conhecida. Sorri e me beija as duas faces. Um pouco de conversa, depois me mostra as novidades. Cada peça de roupa exuberante, modelos lindíssimos. Deixo reservados vestidos, saias e um blazer listrado. Voltarei à tarde. Continuo em desfile: Elle e Lui, Office, Maria Zaida, Follic, etc. Visto, provo, me apaixono. Como é boa a vida, como é sábio aproveitá-la! Ao almoço, agora. Num edifício próximo a Maison de France há um restaurante elegante. É preciso subir à cobertura. Homens e mulheres quase todos em trajes de passeio completo assomam-se às mesas, servem-lhes garçons experientes. A vista é deslumbrante. É possível apreciar desde as aeronaves que pousam e decolam do Santos Dumont, a paisagem do outro lado da baía, até o Pão de Açúcar, passando pela enseada de Botafogo e os barcos do Iate Clube. O céu azul e o sol com seus raios amenos completam o quadro. Sento-me sozinha, seduzida. Sou servida conforme ritual tradicional. Tomo um cálice de vinho do Porto; depois, a entrada: carppacio de salmão, salada de palmito, pequenas folhas e molho à moda parisiense. Servem-me o prato principal dois antigos funcionários da casa; trazem-me arroz, champignon e posta de robalo; bebo água mineral. É possível fazer a refeição lentamente, saboreando as iguarias bem preparadas. O chef me vem à mesa, quer minha opinião. Não preciso dar meu parecer, querido, sabes tudo, aprendeste com os melhores de France. Ele sorri e me deixa de presente uma flor. De sobremesa não hesito: um häagen-dazs de macadâmia com bombons de chocolate belga, amoras e licor. Antes de partir, repouso durante quarto de hora no lounge do restaurante, ouço blue. Já à rua, aventuro-me no clima morno pós-uma da tarde. Deslizo por ruas apinhadas do Castelo, lembro-me então de uma exposição no Paço. Custa-me poucos segundos chamar um táxi. Ao descer, talvez três quadras adiante, avisto a construção que abrigou a família real. Viajo no tempo; vejo baronesas, princesas e um magnífico cavaleiro de farda azul sobre indômito potro negro. Ao cruzar o portal da construção, gravura de um filme de Almodóvar me traz de volta ao presente. No pequeno cinema, mulheres andaluzas desfilam. No salão do segundo andar, os quadros em exposição lançam-me em horizontes infinitos e em explosões de cores. Seguindo através de naves envoltas em silêncio quase sepulcral, guardadas por homens de terno negro, deleito-me num abrasivo mundo pictórico, envolta por ar frio que me tempera calor medieval. Talvez a digestão adiantada me faça avançar por espaços onde apenas minha silhueta se delineia. Desejo caverna secreta, gancho de ferro antigo em que possa pendurar a roupa provisória e, em seguida, saltar nua sobre o corpo de cavaleiro mascarado; delírios de mulher só em horas de nenhum pejo. Não sinto o tempo correr, a arte fascina-me. Às quatro horas lembro-me das compras e ponho-me em retirada; antes, tomo o café da tarde no bistrô do Paço. Volto às lojas, recolho os trajes que deixei em reserva. Apresso-me. As pessoas agora já são outras; algumas querem terminar o dia e voltar para casa, enquanto outras aguardam o momento de alegria e combustão, quando encontrarão, nos bares dourados, amigos, amigas ou amantes. Tenta-me ligeiro desejo de permanecer; atendo, no entanto, a chamado maior. Quero estar sozinha em casa, ouvir alguns CDs, ler um pouco, deitar lânguida à meia-luz. Embarco em um táxi. Zona Sul, Lagoa Rodrigo de Freitas. Quando abro a bolsa, encontro o cartão do homem da manhã, o dos sapatos de verniz; leio: serviço diplomático, consulado geral da Dinamarca. Será ele o cônsul em pessoa? Vou fazer charme, não ligo hoje. Amanhã, quem sabe, terei um namorado europeu.
sexta-feira, março 30, 2007
quinta-feira, março 15, 2007
Águas do entardecer
O mar denunciava-me através do seu rugir milenar. Estava sentada sobre a pedra, as costas rijas, os braços como grosso cordão envolvendo as pernas, os joelhos encostados aos seios; tentativa vã e provisória de esconder minha nudez. À direita, algumas crianças corriam sobre as areias num jogo à péla; à esquerda, embarcação sem tripulantes tinha a popa sacudida pelo ir e vir das vagas. Ligeiro arrepio correu-me o corpo: ora o saliente respingar das espumas que explodiam num começo de maré alta, ora a incerteza dos momentos seguintes; brilho de pérola ao luzir do sol, imagem de marinheiro antigo a avistar-me, miragem de ilha perdida, voz plena de sal a desvendar mantos invisíveis. Frio intenso gelou-me o estômago, intenso ardor desceu-me ao baixo ventre, músculos vicejaram em descontrole, escorrer de água mais densa banhou-me. Por momentos desejei submergir e esconder-me sob a capa das águas do entardecer. Mas não tive tempo. Mão vigorosa tocou meu corpo. E num susto repentino, soltei os braços, afastei um pouco os joelhos e deixei meus seios explodirem. Eram duas rosas que desabrochavam, ou duas pequenas montanhas que convidavam à escalada. Tremi. Como um gigante que atemorizava navegantes doutros tempos e doutros mares, tomou-me nos braços e levou-me, incógnita e sob seda que era apenas sua pele curtida pelo sol. Fui colocada na embarcação fria e sacolejante. Ali mesmo, em meio ao cheiro forte de maresia e sobre chão banhado de pequenas línguas d'água que escorrendo de um lado a outro procuravam o caminho de volta ao oceano, abriu minhas pernas e penetrou-me. Meus gemidos, misturados aos estouros cada vez mais vigorosos da preamar, demoraram a se extinguir. Como a luz, que resistia às primeiras sombras da noite.
quinta-feira, março 01, 2007
Carnaval
"Oh, meus seios, sol em que te embriagas, bêbedo de líquido azul, calor da combustão em que te afogo...", e foi assim que começaste naquele sábado. A música levava a turba, os tambores ecoavam nossas trepidações interiores. Após desfilarmos alegria, descemos escondidos uma viela rústica; e foi entre um automóvel antigo e uma mangueira. Despiste-me cedo, bebeste-me rubra.
À noite, fui eu que te fiz vítima; algoz atroz, imperdoável. Enquanto nos levava a orquestra, salão à luz de séculos perdidos, minhas garras afiadas não te perdoaram; listras escarlates traçadas em dorso lívido, unhas de Penélope sôfrega vinte anos. Mas te vingaste a tempo: descoseste meus fios, desataste meus laços e me escondeste entre tuas pernas. Quando eu menos esperava, explodiste; jorraste vapores e lavas, tepidez trágica de amor a deusa olímpica proibida.
Na manhã seguinte, acordamos enquanto a maré baixa lavava nossos corpos, carícias plenas sobre tecido natural, afago perdido de lobo esguio. E caminhamos trôpegos, sob olhares avançados de foliões enfeitiçados pela nudez de havaiana de outros trópicos. Quando me livraste da exposição crua e me envolveste em seda de tear estrangeiro, fantasia roubada a sultana dançarina desatenta, conduziste-me sob afagos a desfile em que eu era estrela primeira.
Muitas vezes me despiste, outras tantas escalei-te; nos levaram blocos e cordões; gozamos intrépidos, mas sempre disfarçados.
Na segunda desapareceste. Foi, então, que te traí a tempo exíguo. Vaqueira. Chapéu e botas que me subiam os tornozelos. Mascarado, saído de filme mexicano, zorro esporádico, laço hábil sobre animal inquieto, minhas mãos por sobre as nádegas atou. Violento, arrancou-me o biquíni negro, amou-me na sombra, sob capa protetora. Às primeiras luzes, libertou-me; como recompensa, apenas as mãos soltas. Disse sobre a nova fantasia: "fada nua encabulada..."
Na terça ressurgiste; nada perguntavas ao me encontrares nua... Beijaste-me rubro, excitado, não mais me precisavas despir. Após explosões estelares, últimos acordes de sinfonia ligeira, de novo te tornaste invisível.
Quando na quarta a festa acabou, as amigas sussurram-me: "estás perdida, nua e abandonada." Mas foi aí que reapareceste e contigo me levaste; me querias mesmo nua, mesmo arranhada de outras unhas, exausta, a exalar suor apaixonado de quatro dias...
À noite, fui eu que te fiz vítima; algoz atroz, imperdoável. Enquanto nos levava a orquestra, salão à luz de séculos perdidos, minhas garras afiadas não te perdoaram; listras escarlates traçadas em dorso lívido, unhas de Penélope sôfrega vinte anos. Mas te vingaste a tempo: descoseste meus fios, desataste meus laços e me escondeste entre tuas pernas. Quando eu menos esperava, explodiste; jorraste vapores e lavas, tepidez trágica de amor a deusa olímpica proibida.
Na manhã seguinte, acordamos enquanto a maré baixa lavava nossos corpos, carícias plenas sobre tecido natural, afago perdido de lobo esguio. E caminhamos trôpegos, sob olhares avançados de foliões enfeitiçados pela nudez de havaiana de outros trópicos. Quando me livraste da exposição crua e me envolveste em seda de tear estrangeiro, fantasia roubada a sultana dançarina desatenta, conduziste-me sob afagos a desfile em que eu era estrela primeira.
Muitas vezes me despiste, outras tantas escalei-te; nos levaram blocos e cordões; gozamos intrépidos, mas sempre disfarçados.
Na segunda desapareceste. Foi, então, que te traí a tempo exíguo. Vaqueira. Chapéu e botas que me subiam os tornozelos. Mascarado, saído de filme mexicano, zorro esporádico, laço hábil sobre animal inquieto, minhas mãos por sobre as nádegas atou. Violento, arrancou-me o biquíni negro, amou-me na sombra, sob capa protetora. Às primeiras luzes, libertou-me; como recompensa, apenas as mãos soltas. Disse sobre a nova fantasia: "fada nua encabulada..."
Na terça ressurgiste; nada perguntavas ao me encontrares nua... Beijaste-me rubro, excitado, não mais me precisavas despir. Após explosões estelares, últimos acordes de sinfonia ligeira, de novo te tornaste invisível.
Quando na quarta a festa acabou, as amigas sussurram-me: "estás perdida, nua e abandonada." Mas foi aí que reapareceste e contigo me levaste; me querias mesmo nua, mesmo arranhada de outras unhas, exausta, a exalar suor apaixonado de quatro dias...
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