sábado, outubro 06, 2007

Estupefata

– Pra você que é homem é fácil, basta ir até lá em baixo, chamar uma mulher e trazê-la para cá.

– Você pensa que é assim que eu faço? Será que você não acha isso um tanto absurdo?

– Pode ser absurdo e até perigoso, do jeito que as coisas andam hoje em dia...

– Não é isso, não faço amor com qualquer uma, só trago para meu apartamento quem eu gosto.

– E você gosta de mim?

– O que você acha?, por acaso eu a teria convidado caso nada sentisse por você?

Ele olhou-me nos olhos e sorriu. Eu não sabia a causa de tal discussão. De repente, interrompeu meus pensamentos.

– Acho que quando você fala sobre isso é porque tem vontade de estar nessa situação.

– Que situação? - perguntei.

– Essa, de ser alguém que passa pela rua e é abordada por um estranho que acaba conseguindo convencê-la a acompanhá-lo.

– Eu, ora... não é bem assim – tentei disfarçar –, tenho minhas fantasias, mas...

– Peguei você de surpresa, não foi? – falou enquanto me abraçava.

– Como ia dizendo, tenho minhas fantasias, se você quiser até conto uma, mas essa agora me deixou estupefata.

– Estupefata?, gostei; mas continue, conte sua fantasia.

– Ouça, é interessante, pode ser que depois... quer dizer, primeiro ouça. Eu passava sozinha umas férias numa casa de veraneio no litoral norte. E num típico fim de tarde que se segue a um dia quente e ensolarado de verão, resolvi caminhar pela beira da praia. Começava a ventar e algumas nuvens rumavam do oceano em direção ao continente. Em determinado momento, senti um desejo incontrolável de ficar nua. Nesse dia eu vestia um lindo maiô azul-claro, estampado com flores rosas e vermelhas. Não resisti, acabei despindo-me. Fora de meu corpo, aquele céu úmido e florido tornou-se mínimo; escondi-o na reentrância de uma rocha. Durante um bom quarto de hora, percorri as areias brancas da beira-mar com os pés cobertos pelas espumas que se revezavam após a explosão de cada onda. Gozava os primeiros indícios do entardecer imersa em toda aquela paisagem natural, sentia as lufadas de vento fresco sobre o corpo liso. Mas ao voltar ao esconderijo, não encontrei o maiô. Não sei se fora levado por língua d'água mais saliente, ou por admirador que me costeava e em algum momento me assaltaria, desejando apenas deslizar a ponta dos dedos sobre meu corpo níveo. Permaneci imóvel. Após alguns minutos, porém, abateu-me excitação incontrolável. A incerteza quanto ao que se seguiria aqueceu-me as entranhas. Toda mulher tem o desejo latente de andar nua e de correr riscos. Naquele fim de tarde, mergulhei em pele no crepúsculo do litoral norte. O que eu mais temia ou queria não aconteceu. Viva alma não se arriscaria a vento que logo se pôs a me açoitar, obrigando-me a contorções de dançarina exótica sob afiado chicote de areia. Forte estrondo assustou-me, veias azuladas cortaram o céu. Agachei-me e por algum tempo busquei proteção inútil; grossas gotas de chuva despencaram abruptas. Trôpega, corri na noite recente; invisível, atravessei a estrada. À porta de casa fui surpreendida: não por homem erradio ou visitante inoportuno, mas por meu cão; saltou carente e alegre sobre meu corpo molhado; lambeu-me os seios.

– Gostei; linda história, e contada por você tornou-se ainda melhor; mas você disse no começo “pode ser que depois”, o que quis dizer com isso?

– “Pode ser que depois” quer dizer: pode ser que agora eu ponha em execução a outra fantasia.

– Qual?

– Descer até a rua principal para ser abordada por um estranho e, enfim, acompanhá-lo...

– Você teria coragem?

– Já que você tocou no assunto, acho que sim.

– Mas e nosso namoro?

– Não há problema, é só uma brincadeira, depois conto tudo a você; acho que vai ser muito excitante.

Ele abriu o armário e fez um gesto de que retirava alguma coisa.

– Tome, vista isto.

– Isto? Não estou entendendo...

– É um mini-vestido, foi de uma ex-namorada.

– Ela chegou aqui nua?

– Mais ou menos; mas não percamos tempo, vista-se.

– Acompanhei-o na fantasia.

– Vamos, já passa de uma da madrugada – ele disse.

– Estou morrendo de vergonha.

– Não há muita gente a esta hora, apenas aqueles que tem interesse por prostitutas.

Saímos. Ele abraçou-me enquanto percorríamos as duas quadras que nos separavam da rua principal. Então me beijou e desejou boa sorte.

– Esqueci de dizer a você uma coisa – ainda falou uma última vez –, dê umas voltas, mas sou eu que vou abordá-la.

Fiz que concordava, porém escapei.

Não passou muito tempo para que um Honda cinza-metálico parasse. Por trás do vidro que desceu vagaroso, vi um senhor; parecia bastante digno.

Jamais voltei ao meu namorado. Descobri-me atriz. Meu papel favorito era a prostituta. Uma vez na semana, sempre em lugares diferentes e vestida de modo muito elegante, vivia meu teatro. Nunca tive problemas, ou melhor, tive um, e foi na primeira vez; o motivo: o impalpável mini-vestido que ele me oferecera. Enquanto durou a madrugada, ainda tive como capa os sutis vapores das estrelas, mas os primeiros indícios do amanhecer revelaram a Cinderela nua...

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