O bar era em Pinheiros, pequeno mas chique. No interior, muitos copos e taças de cristal; bebidas diversas; revestimento todo em madeira; mesas pequenas, cada uma com um abajur; o balcão comprido com vários bancos ou cadeiras, todos altos e, do lado de dentro, um discreto e atencioso barman. Era para este local a que eu me dirigia todas as tardes, a partir das quatro horas. De lá era possível observar a rua através dos pequenos quadrados de vidro emoldurados pela porta de madeira. Quem passava lá fora via o contorno das poucas luzes sobre a decoração impecável. Sempre eu encontrava duas mulheres, que já estavam bebendo, de preferência uísque; cumprimentavam-me com cordialidade, mas jamais me convidaram para sentar junto a elas. O funcionário, jovem e bonito, compenetrado em seu trabalho, sempre me sorria e não se demorava a trazer-me a bebida que eu pedira nos dois primeiros dias, conhaque diluído em menta.
Um senhor de mais de 70 anos estreou no ambiente numa tarde de quarta-feira. Trajava um terno impecável. Seus cabelos eram brancos e tinha o rosto rosado. Chegou-se ao balcão e pediu uma dose dupla de uísque. Bebeu-a de uma vez. Em seguida, pediu outra. Levantou de novo o belo copo, como se talvez bebesse água, e fez o líquido dourado desaparecer suave em meio a seus lábios. Só então, tranqüilo, pousou o copo e disse algumas palavras. Todas dirigidas ao barman. Este o ouvia impávido, silencioso, para logo depois expressar ligeiro sorriso, voltando a seguir à fisionomia inicial. O senhor, já com a terceira dose nas mãos, lançou os olhos através do bar e descobriu, um tanto surpreso, as três mulheres que compunham a clientela até aquele momento. Sorriu para todas e recebeu em retribuição expressões semelhantes. As duas que sentavam à mesma mesa ainda se demoraram em seus sorrisos convidativos. Aguçando o ouvido era possível escutar, já que o bar era silencioso, a história que o senhor começara contar ao empregado.
Inicialmente perguntou: “o senhor é barman aqui há muito tempo?” esperou alguns instantes para o homem responder através de um movimento de cabeça. “Conhece então todos os clientes?” “Os habituais”, foi a resposta que obteve. “Procuro uma mulher, há alguns dias a vi sair daqui”. Explicou com poucas palavras como era a mulher. O funcionário entortou um tanto a cabeça enquanto passava álcool em alguns copos. “Não sei, talvez seja alguém que tenha vindo aqui uma única vez”. O senhor terminou de beber e colocou o copo sobre o balcão. “Pena, procuro-a há muitos anos; fui seu amigo, era uma mulher esplêndida”. Abriu a carteira e colocou sobre o balcão uma nota de valor elevado. Antes que o barman a apanhasse, pediu mais uma dose dupla. Foi atendido com presteza. Bebeu-a quase de um gole só; não quis troco.
No dia seguinte, a cena se repetiu. Apenas eu me acomodava na mesinha de costume, o senhor entrou de novo. Vinha trajado ainda impecável, de gravata borboleta preta. Sentou-se no mesmo banco de véspera. O barman lhe sorriu e despejou no copo a mesma bebida. “Como o senhor é atencioso! Nem precisei me manifestar! Como adivinhou que eu pediria uísque?” “As pessoas dificilmente mudam; os pedidos quase sempre são os mesmos”. Depois de alguns minutos indagou: “Gostaria de saber se a senhora sobre quem lhe falei ontem apareceu por aqui”. “Não, infelizmente”. “O senhor como é um barman deve ouvir muitas histórias. Vou contar-lhe em particular mais uma. Essa mulher representou muito para mim, gostei muito dela; tudo aconteceu vinte anos atrás...”
Eu entreouvia a conversa. Às vezes o tilintar dos copos das duas mulheres, ou algum ruído que o barman deixava escapar na sua furiosa ação de dar brilho às taças que lhe estavam pela frente, ou mesmo algum vestígio do som da cidade fervilhando lá fora não permitiam que a voz do homem chegasse a mim. Em síntese: tratava-se de uma mulher que, no passado, traía o marido todas as tardes; ela achava que casos extraconjugais ajudavam a manter o casamento; e o marido era verdadeiro em seu amor por ela. Apenas uma pessoa soubera de seus passos furtivos; o senhor que, agora, conversava com o barman. Este funcionava como uma espécie de psicanalista de boêmios ou alcoólicos; estava acostumado a histórias diversas e ainda pôde demonstrar surpresa pelo que ouvia, pela figura excêntrica de alguém que se portara, ao menos em aparência, de forma tão pudica e, mesmo ao se expor a ações tão transgressoras, conseguira se sair incólume. “Vou revelar uma coisa ao senhor. Já que confiou em mim e que está a se tornar um cliente habitual, vá ao Hotel Degar, ela reside ali. Procure-a pelo mesmo nome que o senhor me deu”. Já havia tomado duas doses duplas. Pediu ainda uma terceira e deixou sobre o balcão, sem esperar troco, outra nota de valor maior.
Na tarde do dia seguinte, eu ia com interesse ao mesmo bar. Queria saber a continuidade da história. Mas uma amiga me deteve nas imediações do Centro. Tivera um problema e pediu que a ajudasse. Interei-me do assunto; e o que ela queria eu tinha de reserva na bolsa. Agradeceu-me e se foi, pois precisava terminar de preparar-se caso não quisesse perder o dia. A aventura anterior, aliás, um verdadeiro despropósito, praticada sem os cuidados inerentes à profissão, quase a deixara em apuros. Desci do metrô, andei duas quadras e entrei um tanto perplexa e esbaforida no bar. O empregado sorriu quando me viu e trouxe a bebida de sempre. Nessa tarde, não vi nem as mulheres nem o senhor de terno.
Só na segunda-feira as encontrei mais uma vez; e, no balcão, o senhor impecavelmente vestido. Quando entrei, todos me olharam em sinal de cumprimento e aprovação. Creio que, como já fazia parte da clientela vespertina, sentiam a minha falta. Ele continuava a contar sua história ao barman. Creio que já bebera duas doses duplas e uma terceira jazia ante seus olhos. Ouvi-o, enquanto eu acendia um cigarro, “Consegui marcar um jantar a dois, eu e ela; ocorreu no sábado, no restaurante de um desses hotéis para turistas estrangeiros. Quis um reservado. Mas ouça-me, a coisa não se deu tão bem como eu esperava. Hoje ela é outra mulher, ou seja, uma mulher arrependida. E ainda se martiriza com uma dúvida”. O barman o olhava sério, sempre estava a fazer algo, como lustrar algum copo, ou arranjar o lugar apropriado a uma garrafa deslocada. “Dúvida?”, ainda repetiu, “mas não era tão atirada?”. “Isso, boa essa palavras, é das antigas: atirada. Ela era tão atirada! Sempre voltava antes do marido para casa, mas era atirada. Eis a dúvida: acha que o marido ao morrer sabia de suas artimanhas. Ela desconfia de que um amigo revelou a ele o segredo. E sabe de quem? De mim. Diz que eu era o único que sabia de sua história e que era amigo de ambos. Ora, veja... Mais um duplo, por favor!”
Pus-me a admirar aquele homem. Embora velho e solitário, encontrava sentido para a sua vida. Naquela tarde, antes de ele se retirar, ainda uma vez ouvi sua voz. “Disse então a ela: ‘veja estou velho, sou alcoólatra, mas mantenho a alegria de viver’. Ela levantou-se, derrubou a taça de vinho, algum talher e se retirou. Mas como ainda é bela!”.
Um senhor de mais de 70 anos estreou no ambiente numa tarde de quarta-feira. Trajava um terno impecável. Seus cabelos eram brancos e tinha o rosto rosado. Chegou-se ao balcão e pediu uma dose dupla de uísque. Bebeu-a de uma vez. Em seguida, pediu outra. Levantou de novo o belo copo, como se talvez bebesse água, e fez o líquido dourado desaparecer suave em meio a seus lábios. Só então, tranqüilo, pousou o copo e disse algumas palavras. Todas dirigidas ao barman. Este o ouvia impávido, silencioso, para logo depois expressar ligeiro sorriso, voltando a seguir à fisionomia inicial. O senhor, já com a terceira dose nas mãos, lançou os olhos através do bar e descobriu, um tanto surpreso, as três mulheres que compunham a clientela até aquele momento. Sorriu para todas e recebeu em retribuição expressões semelhantes. As duas que sentavam à mesma mesa ainda se demoraram em seus sorrisos convidativos. Aguçando o ouvido era possível escutar, já que o bar era silencioso, a história que o senhor começara contar ao empregado.
Inicialmente perguntou: “o senhor é barman aqui há muito tempo?” esperou alguns instantes para o homem responder através de um movimento de cabeça. “Conhece então todos os clientes?” “Os habituais”, foi a resposta que obteve. “Procuro uma mulher, há alguns dias a vi sair daqui”. Explicou com poucas palavras como era a mulher. O funcionário entortou um tanto a cabeça enquanto passava álcool em alguns copos. “Não sei, talvez seja alguém que tenha vindo aqui uma única vez”. O senhor terminou de beber e colocou o copo sobre o balcão. “Pena, procuro-a há muitos anos; fui seu amigo, era uma mulher esplêndida”. Abriu a carteira e colocou sobre o balcão uma nota de valor elevado. Antes que o barman a apanhasse, pediu mais uma dose dupla. Foi atendido com presteza. Bebeu-a quase de um gole só; não quis troco.
No dia seguinte, a cena se repetiu. Apenas eu me acomodava na mesinha de costume, o senhor entrou de novo. Vinha trajado ainda impecável, de gravata borboleta preta. Sentou-se no mesmo banco de véspera. O barman lhe sorriu e despejou no copo a mesma bebida. “Como o senhor é atencioso! Nem precisei me manifestar! Como adivinhou que eu pediria uísque?” “As pessoas dificilmente mudam; os pedidos quase sempre são os mesmos”. Depois de alguns minutos indagou: “Gostaria de saber se a senhora sobre quem lhe falei ontem apareceu por aqui”. “Não, infelizmente”. “O senhor como é um barman deve ouvir muitas histórias. Vou contar-lhe em particular mais uma. Essa mulher representou muito para mim, gostei muito dela; tudo aconteceu vinte anos atrás...”
Eu entreouvia a conversa. Às vezes o tilintar dos copos das duas mulheres, ou algum ruído que o barman deixava escapar na sua furiosa ação de dar brilho às taças que lhe estavam pela frente, ou mesmo algum vestígio do som da cidade fervilhando lá fora não permitiam que a voz do homem chegasse a mim. Em síntese: tratava-se de uma mulher que, no passado, traía o marido todas as tardes; ela achava que casos extraconjugais ajudavam a manter o casamento; e o marido era verdadeiro em seu amor por ela. Apenas uma pessoa soubera de seus passos furtivos; o senhor que, agora, conversava com o barman. Este funcionava como uma espécie de psicanalista de boêmios ou alcoólicos; estava acostumado a histórias diversas e ainda pôde demonstrar surpresa pelo que ouvia, pela figura excêntrica de alguém que se portara, ao menos em aparência, de forma tão pudica e, mesmo ao se expor a ações tão transgressoras, conseguira se sair incólume. “Vou revelar uma coisa ao senhor. Já que confiou em mim e que está a se tornar um cliente habitual, vá ao Hotel Degar, ela reside ali. Procure-a pelo mesmo nome que o senhor me deu”. Já havia tomado duas doses duplas. Pediu ainda uma terceira e deixou sobre o balcão, sem esperar troco, outra nota de valor maior.
Na tarde do dia seguinte, eu ia com interesse ao mesmo bar. Queria saber a continuidade da história. Mas uma amiga me deteve nas imediações do Centro. Tivera um problema e pediu que a ajudasse. Interei-me do assunto; e o que ela queria eu tinha de reserva na bolsa. Agradeceu-me e se foi, pois precisava terminar de preparar-se caso não quisesse perder o dia. A aventura anterior, aliás, um verdadeiro despropósito, praticada sem os cuidados inerentes à profissão, quase a deixara em apuros. Desci do metrô, andei duas quadras e entrei um tanto perplexa e esbaforida no bar. O empregado sorriu quando me viu e trouxe a bebida de sempre. Nessa tarde, não vi nem as mulheres nem o senhor de terno.
Só na segunda-feira as encontrei mais uma vez; e, no balcão, o senhor impecavelmente vestido. Quando entrei, todos me olharam em sinal de cumprimento e aprovação. Creio que, como já fazia parte da clientela vespertina, sentiam a minha falta. Ele continuava a contar sua história ao barman. Creio que já bebera duas doses duplas e uma terceira jazia ante seus olhos. Ouvi-o, enquanto eu acendia um cigarro, “Consegui marcar um jantar a dois, eu e ela; ocorreu no sábado, no restaurante de um desses hotéis para turistas estrangeiros. Quis um reservado. Mas ouça-me, a coisa não se deu tão bem como eu esperava. Hoje ela é outra mulher, ou seja, uma mulher arrependida. E ainda se martiriza com uma dúvida”. O barman o olhava sério, sempre estava a fazer algo, como lustrar algum copo, ou arranjar o lugar apropriado a uma garrafa deslocada. “Dúvida?”, ainda repetiu, “mas não era tão atirada?”. “Isso, boa essa palavras, é das antigas: atirada. Ela era tão atirada! Sempre voltava antes do marido para casa, mas era atirada. Eis a dúvida: acha que o marido ao morrer sabia de suas artimanhas. Ela desconfia de que um amigo revelou a ele o segredo. E sabe de quem? De mim. Diz que eu era o único que sabia de sua história e que era amigo de ambos. Ora, veja... Mais um duplo, por favor!”
Pus-me a admirar aquele homem. Embora velho e solitário, encontrava sentido para a sua vida. Naquela tarde, antes de ele se retirar, ainda uma vez ouvi sua voz. “Disse então a ela: ‘veja estou velho, sou alcoólatra, mas mantenho a alegria de viver’. Ela levantou-se, derrubou a taça de vinho, algum talher e se retirou. Mas como ainda é bela!”.