quarta-feira, outubro 30, 2013

Sushiman

Para contar essa história, preciso ir devagar, como quem não quer nada. E você para me ouvir, precisa ter toda a paciência do mundo. Vamos a ela.

Tudo começa no Sushi Ipanema. Sabe onde fica? Numa daquelas ruas transversais à Visconde de Pirajá, não sei se a Garcia ou a Aníbal. O restaurante é requintado, parece feito todo de madeira. Há a parte externa, com um pequeno tablado e algumas mesas sobre ele. Depois, o vidro, e o ambiente continua do lado de dentro, com ar-condicionado, mais garçonetes e o balcão do sushiman.

Fui com o meu namorado. Ainda não falei sobre ele, mas com o passar da história você vai conhecendo-o pouco a pouco. Chegamos por volta das dez da noite, uma quinta-feira, um bom dia para namorar. Havíamos, numa outra vez, ficado sobre o tablado, naquela espécie de varanda. Mas, nesta, meu namorado quis entrar. A garçonete desliza a porta e sorri para nós. Não é função das garçonetes observar as roupas das clientes, mas aposto que depois ficam conversando entre si sobre cada uma que frequenta o restaurante, e tenho certeza de que esta irá comentar com suas amigas sobre o comprimento da minha saia. Pois é, visto uma saia curtíssima. Destas que estão na moda. As pessoas olham e pensam que estamos de short, mas na verdade se trata de uma saia. O tecido parece volumoso em algumas partes, o corte não é totalmente regular, estreita-se e sobe um pouco na lateral externa das pernas. É lógico que para sentar com tal roupa é preciso cruzar logo as pernas, pois quanto mais curtas as extremidades tanto mais aparecem nossas coxas. Alguém há de dizer: “que escândalo”, mas é assim que nos vestimos, é assim que nós, mulheres, saímos à noite em Ipanema. A blusa branca de algodão tem alguns detalhes bordados, mas esses detalhes também brancos, em relevo, forçam o olhar das pessoas na minha direção. Ainda digo que essa minha blusa de algodão é muito fina, o branco é quase uma transparência. Assim fico mais em foco, os homens desejam certificar-se se uso ou não sutiã. Para dar mais elegância à minha estatura, venho sobre saltos bem altos, comprados numa loja da Garcia D’Ávila, onde há as melhores marcas. O sapato é revestido de veludo, mas as tiras são de um couro reluzente. Logo que sentamos um funcionário vem em nossa direção. Entrega-nos dois cardápios gigantescos; primeiro a mim, depois ao meu namorado. Olhamos minuciosamente o que vem escrito. Há entradas, pequenas delícias como tira-gostos, depois vem os pratos, uma série deles e, enfim, as sobremesas. As bebidas são oferecidas numa carta à parte. Após percorremos várias páginas do cardápio, optamos pelo sashimi. Tão delicado, o sashimi chega a ser uma refeição sensual. Imagine, estou quase nua, a saia curtíssima e a blusa transparente, o sutiã indefinido sob a roupa, imagine, eu vestida assim a segurar aqueles dois palitos que os japoneses chamam de hashi, a seguir mordiscando o sashimi. Talvez pouca coisa seja tão sensual, ou mesmo sexual, como isso. Aproveito para enfeitiçar ainda mais o homem que está comigo. Não demoram a vir as bebidas. Meu namorado não é muito de bebidas destiladas, prefere cerveja, e nesses lugares elas são das melhores marcas. Não gosto de cerveja, ou melhor, nenhuma mulher deveria gostar de cerveja. É uma bebida deselegante. Além de logo tornar a pessoa aflita para ir ao toalete, não custa para engordar. Uma mulher charmosa, conquistadora, deve beber algo curto e estimulante. Talvez alguma bebida colorida, pouco álcool, apenas para deixá-la um tantinho mais alegre, mais sorridente. Quero uma pequena dose de saquê. Não me esqueço de alertar o garçom para pedir ao barman que borde as extremidades do recipiente com bastante sal, e que suavize a bebida com algumas gotas de limão. Conversamos, eu e o namorado, enquanto esperamos os pedidos. Discreta, observo as pessoas. Há outras mulheres nuas, além de mim. Todas se esforçam para serem muito sensuais, sexy, como se costuma dizer. Uma veio pintada de modo exagerado. Mas a pintura até que lhe cai bem, dá-lhe aparência de personagem em peça expressionista. Outra quase mostra os seios, a blusa cavada, um pouco acima do umbigo, nada de top nem sutiã. De repente, meu namorado faz uma observação.

Você já reparou? As mulheres vestem pouca roupa apenas quando saem de casa tarde da noite, e correm para voltar enquanto dura a madrugada, tentam segurar as últimas sombras, não querem que a claridade do dia as surpreenda.

Isso mesmo, às vezes saímos quase nuas à noite mas temos de voltar antes do nascer do sol. Já pensou, nua ao amanhecer? É a mesma coisa que um homem abrir a porta do nosso quarto enquanto trocamos de roupa.

Já reparou?, volta a falar meu namorado, quando uma mulher sai de casa quase nua pensamos que se trata de um travesti.

É verdade, digo, as travestis gostam de andar mais nuas do que as mulheres.

Nuas ou nus?

Nuas. Porque há travestis muito femininas; conheço uma que ninguém diz que nasceu com pênis.

Tenho um amigo que gosta de sair com travestis. Ele diz para as mulheres mais íntimas que, caso conheçam algum, apresente a ele.

Você sabe que já perdi um namorado assim? Nunca pensei que isso podia acontecer comigo, mas ele acabou indo com a travesti. E ela até aquele dia era minha amiga. Tempos depois me encontrou e pediu desculpas. Mas na verdade ela não teve culpa. Meu namorado era muito bonito e também um exímio conquistador.

Essa história deve ser interessante, diz meu namorado enquanto a garçonete lhe completa o copo de cerveja.

Ela era, e ainda é, verdadeiramente linda. Até a voz é de mulher. E se veste de tal forma, que os homens ficam encantados. Trata-se de uma pessoa de talento, ela é arquiteta. Quando se fala em travesti, logo se imagina alguém extravagante, que vive de prostituição. Ela, ao contrário, tem uma firma, faz desenhos de casas lindíssimas e de interiores, ganha uma fortuna com esse trabalho.

Como você a conheceu?

Num coquetel, e através de uma amiga que a contratou para uma reforma e ampliação da casa.

Ah, interessante.

Todos os homens na tal festa ficaram à sua volta, quase não se conseguia falar com ela.

E como vocês se tornaram amigas?

Depois, no final, a dona da casa me chamou para acompanhá-la na conversa com Suzane, a arquiteta. Então ficamos a sós. Identificamo-nos tanto uma com a outra que marcamos de nos encontrar num dos dias que se seguiram.

E ela, com tanta atribulação, compareceu?

Sim, com atraso de uma hora, mas compareceu. Continuamos saindo. Foi então que um dia tive a infeliz ideia de levar o meu namorado.

Ele gostou dela?

Se gostou? Amou. Logo notei, e na primeira vez. Ainda fiz a asneira de chamá-lo para mais um encontro com ela.

Como é a conversa de um travesti?

Nada de mais. Como a conversa de uma mulher. Primeiro falou sobre o trabalho. Muito depois, reclamou de algum dos homens que teve. Como também ela era extravagante, disse que eles ficam excitadíssimo com o fato de ela usar roupas muito curtas. Falou também que ter um pênis inflama muito o relacionamento.

Dizem que se operam, perdem a graça, observa meu namorado.

É, parece que sim. Contou também sobre homens que se tornam tão excitados, que lhes roubam a calcinha para virem como elas farão para esconder o pênis solto sob a saia.

É mesmo?, meu namorado ri, surpreso.

Verdade. Disse que é preciso saber com quem se está saindo. Caso contrário, há muitos que fazem maldade, espancam a travesti e a deixam nua por aí.

Ela já passou por isso?

Não sei. Se já, não chegou a contar claramente, apenas falou do namorado que lhe roubava a calcinha.

Mas há homens que roubam também a calcinha das mulheres, meu namorado me sorri de novo.

Claro que há,  e um deles está à minha frente. E quer sua namorada apenas de casaco, sem nada por baixo, ou nua por inteiro no banco do automóvel... O que mais mesmo? Mas ouça, fazer isso com uma travesti é deixá-la numa situação constrangedora. Com uma minissaia, assim como esta, onde vai esconder o pinto?, aponto à minha saia.

Eles dão um jeito.

Dão? Então você sabe mais do que eu e ela.

Meu namorado disfarça. Chega o garçom com um pequeno barco pleno de sashimis. Peço mais uma dose de saquê.

Amor, comprei pra você uma lingerie linda, é uma meia inteiriça, do tipo arrastão. Depois quero que você vista, fala ele.

Quer que eu vista aqui, no restaurante?

No restaurante, não. No toalete. As pessoas que já repararam você vão ficar louquinhas, não vão entender nada, ele morde delicadamente um pedacinho de peixe cru.

Amor, já que estamos num jantar tão sensual, quero lhe perguntar uma coisa, falo decidida.

Pois, pergunte.

Não notou nada de extravagante em mim, além da roupa?

Notei, mas não quis falar. Você veio sem, de novo, não?

Isso mesmo.

Você é corajosa...

Além de corajosa, sou muito feminina, você não acha?

Claro, como não achar?

Mordemos os dois, juntinhos, os pedacinhos de peixe cru. Ele empunha o seu hashi, e eu também seguro o meu, minha mão sempre hábil. Sobretudo quando se trata de dois pauzinhos!

quarta-feira, outubro 23, 2013

Estrangeira

Gosto mesmo é de namorar homens estrangeiros. Uma amiga me perguntou a razão.

Não sei, respondi, sinto um tipo especial de atração por eles; na verdade, parecem mais determinados.

E como você faz para arranjar um namorado estrangeiro?, curiosa, ela.

Tenho de frequentar os mesmos locais que eles.

Expliquei então sobre os hotéis e restaurantes onde a gente pode admirar esse tipo de homem. Enquanto eu falava, minha amiga ficou a me olhar. Quando foi embora, desconfiei que passaria a agir como eu. Ah, nenhum problema, falei comigo, há estrangeiros para todas.

Costumo ir à confeitaria Colombo, aquela do forte de Copacabana. Pessoas requintadas sabem dessa tradicional casa, onde se pode tomar café da manha, almoçar, ou saborear um chá à tarde. Prefiro ir em torno do por do sol. Além de o serviço ser ótimo, há uma vista maravilhosa. É possível apreciar toda a praia de Copacabana, o mar, e a extensão de terra que fica do outro lado da baía, as praias de Niterói. Uma mulher bem vestida faz sucesso neste restaurante. Ali há estrangeiros, e quando veem uma mulher sozinha e bonita não perdem tempo, logo se aproximam. Espero para perceber que idioma falam. De início, fico caladinha. Qual cantada vão lançar? Muitos sorriem, tentam ser agradáveis. Surpreendem-se quando reparam que pago a minha parte e não lhes peço coisa alguma.

Pensaste que sou prostituta?, tenho vontade de perguntar, mas apenas sorrio, mexo a cabeça, deixo meus cabelos enfeitiçarem o homem.

Ele se movimenta como se me quisesse convidar para continuar o passeio em outro lugar, mas lhe faltam palavras. Ajudo. Digo que a cidade é bonita, que a temperatura está amena, que tal continuarmos o passeio no calçadão? E lá vamos nós. Calo-me, de novo. Espero pela iniciativa dele.

Fala em inglês, pois lhe esgotaram as palavras que conhece no idioma local. Faço de conta que tenho dificuldade para compreendê-lo, ainda não sabe que domino a língua estrangeira.

Andamos por toda a praia. Convida-me ao seu hotel.

É cedo, reparo, aqui fora está tão agradável.

Fujo dele naquela noite. Sei que dificilmente voltará. São tantas as mulheres, tantas as ofertas. Quero-me casar com um estrangeiro, disse à minha terapeuta. Estrangeiro?, ela repetiu, fingiu não entender. Mudei a conversa.

Mas no dia seguinte, ele procura-me. Surpresa, atendo ao telefone. Quer encontrar comigo de novo. São tantas as ofertas, penso mais uma vez. Logo descubro o motivo de ele me ter procurado. Paguei a minha parte na conta, tanto na Colombo como depois no outro restaurante. Comemos salada e tomamos vinho. Está o homem acostumado a mulheres que o exploram, jamais teve uma namorada brasileira que não lhe tenha tentado esvaziar os bolsos. Disse que admira as mulheres independentes.

Quero casar, digo a ele no encontro seguinte.

Casar?, faz que não entende. Casar, falo e aponto ao dedo, faço de conta que enfio a aliança.

Ele ri. Conversamos sobre casamento, em inglês.

Continua rindo. Veio ao Brasil com uma bolsa de pós-graduação. Ele é da Sérvia, faz uma especialização em cirurgia plástica. No seu país precisam de cirurgiões plásticos.

Você volta?, pergunto.

Sim, pretendo, fala em português, o sotaque pesado.

Pena, lamento.

Quer ir comigo?

À Sérvia? Impossível. Trabalho aqui, sou também da área de saúde.

Em que trabalha?

Sou dentista.

Não quer trabalhar na Sérvia?, pergunta e me espera.

Penso na minha analista. Ela acha que o que lhe digo significa o contrário. Insinua que não quero casar, e que a estrangeira sou eu. Será?

Sérvia é um bom lugar, tem oportunidade para dentista, diz ele com certa lentidão de pronúncia.

Passo a namorá-lo com mais constância e rolo na grande cama do seu quarto de hotel. Algumas vezes o levo ao meu apartamento.

Você usa roupas discretas, diz, as brasileiras usam roupas mais curtas, mais sensuais.

Você está reclamando das minhas roupas?

Não. Só reparo que é elegante.

Ah, sim, entendo.

Tento fazer que o homem decida ficar no Brasil, no Rio de Janeiro especificamente.

Não posso, tenho de voltar, Sérvia me espera, recebi uma bolsa. Ficar é desertar, tenta explicar.

Ah, sim, estrangeiros não desertam. Lembro que pode ser eu a estrangeira.

Você me quer sensual?, pergunto nua em seus braços, na cama de seu hotel.

Sensual, repete e beija meus lábios.

Do jeito das outras brasileiras. Quer a mim como prostituta?, pergunto em meio ao amor.

Prostituta, como assim?, o homem não entende.

Levanto, faço de conta que visto um vestido curtinho, frente única, nada embaixo.

Quer passear comigo? Eu, prostituta, falo e aponto a porta.

Ele olha o relógio, são duas da manhã. Eu nuinha, o vestido invisível. Parece gostar da ideia.

Vamos, diz.

Abre a porta, saímos. Quem sabe? Quero casar. Pode ser que assim ele fique. Estrangeira, eu, e pelada...

terça-feira, outubro 15, 2013

A equilibrista

Ele não sabia aquele meu segredo nem eu estava disposta a o revelar quando começamos o namoro. Falara-lhe apenas, Não saio com homem algum faz um ano. Sorriu, de forma maliciosa, e colocou o braço direito sobre o meu ombro. Mas não era verdade. Quando estou sem namorado, saio sozinha à noite, caminho pela cidade, a esmo. Nada de locais perigosos, nem facilidades para aqueles que me admiram. Ando entre as pessoas, sempre em lugares movimentados. Um desses lugares é o baixo Botafogo, onde há os cinemas. Muita gente se aglomera após as sessões, nos bares da Voluntário. É certo que praticamente não há mulher sozinha, e uma que senta num dos banquinhos e pede uma bebida causa surpresa. Para manter a discrição, prefiro bares onde existem bancos junto ao balcão. Olho os homens, sei que muitos têm seus compromissos, mas não faço perguntas. A princípio não deixo que descubram que os aprecio. Tenho um jeito especial de fazer as coisas. Caso alguém me flagre com o doce na boca, isto é, com os olhos nos seus, tenho de me virar. Terei problemas caso não me agrade; mas, se é bonito, tenho a solução. Ele se aproxima, tenta algumas palavras, quase um contraponto. Sorrio com o canto da boca. Recusar um homem sempre é um problema. Para o caçador, é fácil descobrir a fragilidade da caça. Então, voltando à pergunta do namorado que arranjei faz poucos dias, Não, não saio com ninguém faz um ano. Mentira lavada. Eu tomava um drink, vamos dizer, assim, uma bebida quase branca, meio transparente, bonita. O homem olhou para mm, descobriu que eu ainda segurava o bilhete usado do cinema.

Tinha três dias que eu vivera uma aventura e tanto, como tantas outras que acontecem uma vez na semana. É claro que para isso preciso me deslocar pela cidade, mudar de bairro e de ares. Na semana anterior foi a nota de um chá num café de shopping, Moça, moça, caiu da sua bolsa, veio-me um homem entregar o pedaço de papel. Dali correu o sorriso, o assunto e um apartamento na Marquês de Abrantes. Preciso de uma aspirina, falei assim que me devolveu o papel, Me lateja a cabeça. Tenho remédio melhor, e lá fomos os dois, tudo ardil de minha parte. Faço o jogo, mas o quero a meu favor. Nessas andanças semanais por lugares diversos, amantes inesperados e apartamentos alheios, acontecem muitas surpresas. Então descubro que na maioria das vezes namoro melhor com o perigo. Há aqueles que querem transar apenas, pessoas normais, desejam a mulher nua e sobem sobre ela. Mas também aparecem os que querem sensações maiores. O do papelzinho atirado ao chão queria minhas roupas nas mãos dele. Em troca me deu uma camiseta curta, justíssima, para vestir. A seguir começou a me namorar. Mas não vamos confundir as coisas, falo do homem anterior a esse do cinema, para deixar claro. Vesti a camiseta, apertadinha e um palmo acima do joelho. Quando pensei que o tal namorado começaria a subir as mãos por baixo do pano, ele me convidou para dar umas voltas pela cidade. Sair agora, tão tarde?, falei. Tarde nada, não chegava a dez da noite. Mas aceitei. Entramos num automóvel que estava na garagem do prédio e fomos nós cidade adentro. Você tira a camiseta?, propôs. Vou ter de passear nua?, ainda retruquei. Nunca andaste nua pelas ruas de uma cidade?, ele. Bem, faz algum tempo, pra falar a verdade já saí nua de casa, já voltei nua, mas pensava que esses costumes estavam em desuso. Tirei a tal camiseta que ele não demorou a fazer desaparecer. Lembrei então que o homem poderia me mandar saltar. Me vi nua, em via pública. Pensei nos garotos que fazem filosofia no Largo de São Francisco. Há um tempo que trabalho como substituta naquela faculdade. Eles gostaram de mim logo de primeira. Me convidam para beber, para passear. As noitadas só terminam ao amanhecer. E a preocupação de todos é apenas trepar comigo, aproveitar o meu corpo. Toda semana. Eu sempre sem par fixo. O revezamento se dá com alegria. Mas lá ia eu no banco do carona, nua. O homem teve imenso prazer nisso. Você tem o corpo perfeito, afirmou. Você acha?, eu, ingênua. Trepamos quase ao amanhecer. Numa rua do Jardim Botânico. E do lado de fora do carro.

Mas volto ao homem que conheci no bar, na saída do cinema. O bilhete na mão e o nome do filme revelando a minha identidade. Pronto, caso um homem saiba o filme que vi, é o mesmo que me surpreender nua. Roubando-me o bilhete, já sabe tudo sobre mim. Só que com ele não foi trepada de uma noite. Rolou um namoro. Sabia que aquele homem voltaria outras vezes. Por que não vamos juntos ao cinema?, chegou a perguntar um dia. Acho melhor termos segredos próprios, respondi. E fiz a tal revelação, Não namoro ninguém faz um ano. Ele acreditou. Passamos a nos encontrar duas vezes na semana. Mas não desisti das quartas, o dia dos garotos da filosofia. E esse meu novo namorado? Ah, costumes estranhos, sempre um tipo de tara. Mas, cá entre nós, as mulheres gostam de um pouco de tara, gozam melhor com o risco, não é mesmo? Eis o que ele me ensinou que me arrepiou tanto. Na verdade arrepiou a mim e arrepia a ele. Ensinou a me equilibrar nua. Isso mesmo, me equilibrar. Uma nua equilibrista. No sentido denotativo. Me leva à sua casa, estica um cordão bem na sala, me ajuda a subir, uma escada de três degraus, segura as minhas mãos e... lá vou eu, nua, em pele e pelo sobre um cordão. No começo, achei aquilo muito estranho. Mas depois, quando passei a me virar sozinha na tal corda, senti uma sensação e tanto. Imagino que no circo as pessoas adorariam ver nua a equilibrista. Ali, na casa dele, ia eu, com público único, ele, a gozar ao me vir atravessar a sala sobre a corda. Eu, sempre segurando uma vara para me ajudar a manter o equilíbrio. Quando desço do fio fino, meu coração está a palpitar, meu corpo quente. Ele então me toma nos braços e me deita no chão, ali mesmo debaixo da corda, e lá vou eu sobre ele, ou ele sobre mim, outro tipo de equilíbrio. Ah, os garotos da filosofia, será que gostariam de saber que sou equilibrista, ou querem apenas o meu corpo? Ou querem apenas o tênue fio que sustenta as abstrações, a metafísica? Sim, os garotos da filosofia ainda são muito jovens. Outro dia, quando descia do cordão e me atirava nos braços de tal homem, lembrei aquele que me levou nua no banco do carona. Deixei escapar ao recente namorado. Na praia, entre os postes da rede de vôlei, dá pra esticar o cordão. Ele me olhou, me beijou, Você sobe nua na corda? Eu, sentada, de pernas cruzadas, pétrea. Sim.

quarta-feira, outubro 02, 2013

Esperei então por ele

Seu Afonso, o senhor está me oferecendo duzentos reais. Aceito, mas promete não me pedir nada em troca? Trabalho para o senhor, tenho o meu salário, não é justo que me ofereça dinheiro a mais. Pessoas como eu sempre são necessitadas. Não tenho como negar. Se o senhor me oferece, aceito; mas, por favor, não me peça nada em troca.

Seu Afonso me olhou, sorriu e se retirou. Foi para o escritório terminar o que estava fazendo. Voltei à cozinha, pois faltava limpar o fogão.

De uns tempos para cá o patrão começou a me oferecer dinheiro. Contei a uma amiga, que me disse: “todos os homens são iguais, não demora e você vai ter de dar pra ele”.

Quando me ofereceu dinheiro pela primeira vez, dinheiro além do pagamento mensal, eu, surpresa, recusei.

Não preciso, seu Afonso, tenho o meu salário.

Passou uma semana e lá fui eu a ele:

Seu Afonso, já que o senhor ofereceu... Ouça bem, foi o senhor que ofereceu, ainda ressaltei.

Peguei as notas e guardei na bolsa.

No final do mês, quando me pagou o salário, tirei duas cédulas de cem e tentei lhe devolver. Ele deu as costas e se retirou. Fiquei com as mãos abanando. Que eu ficasse com as notas, falou, era um presentinho.

No mês que se seguiu, seu Afonso me deu um embrulho bem pequeno envolto em papel colorido. Abri. Era uma caixinha com um cordão de ouro dentro, a corrente fininha, muito bonita.

Seu Afonso, não é meu aniversário, não é justo que o senhor me dê um presente, isso deve ter sido caro. Não, seu Afonso, não faço desfeita, é que não é justo, o senhor já me paga o salário.

Eu tentava explicar. Mas ele, de novo, deu as costas e se foi.

Duas semanas depois, fui a ele. Estava sem dinheiro nenhum, precisava de um adiantamento.

Seu, Afonso, por favor, o senhor pode me emprestar cinquenta reais? Emprestado, viu?

Ele foi ao quarto, pegou o dinheiro e voltou com a nota de cinquenta.

No final do mês, assim que me pagou, deixei o dinheiro sobre a mesa da sala. Escrevi um bilhete. Agradecia e devolvia os cinquenta reais.

Mas no dia seguinte, logo que entrei, vi a mesma nota sobre a bancada da cozinha. Estava escrito: você esqueceu ontem sobre a mesa.

Tentei falar com ele, mas ele não quis conversa sobre isso.

E assim passaram-se os meses. O patrão sempre me pagando a mais, sempre a me presentear. Uma blusa, um colar, um brinquedo para o meu filho, um dinheiro para inteirar no aluguel.

Você precisa de um aumento, falou no mês passado. Vou aumentar o seu salário.

E passou a me dar vinte por cento a mais.

Mas, seu Afonso, o senhor paga o maior salário de empregada doméstica.

Ele apenas sorriu.

Um mês depois ganhei dois presentes. Um perfume e uma joia; desta vez, uma pulseira.

Seu Afonso, por favor, isso deve ter custado muito.

Ele deu de ombros.

Já não conto sobre os presentes a amiga alguma. Elas colocam olho grande. E dizem que pediriam mais, que se aproveitariam. Mas seu Afonso é legal, me dá tudo isso e não pede nada em troca.

Seu Afonso, falei hoje, o senhor nunca me pediu nada em troca, sorri. O senhor é uma pessoa legal, tem caráter. Se fosse outro...

Não aguentei, fui chegando perto dele. Estava caindo de madura.

Posso beijar o senhor? Ninguém jamais fez tanto por mim.

Ele deixou que eu o beijasse.

Seu Afonso, continuei depois que afastei meus lábios do seu rosto, o senhor espera um instantinho? Quero lhe fazer uma surpresa.

Ele arregalou os olhos, acho que entendeu.

Fui ao quarto de serviço e tirei toda a roupa. Voltei nua. Nua e silenciosa. Caminhei até a sala. Parei a meio metro de onde estava sentado. Mas continuei em pé, as pernas juntas, as mãos cruzadas um pouco abaixo do umbigo. Sorri, um sorriso meio de vergonha e meio de mulher sem-vergonha.

Seu Afonso, suspirei.

Ele olhou o meu corpo.  Sorriu, um sorriso de satisfação.

Esperei então por ele.