Glenda atravessa a Rui Barbosa, vem vestida como uma
executiva que volta do trabalho num final de expediente. Ao atingir o passeio,
dá mais alguns passos e para diante de uma vitrina de decoração. Olha alguns
móveis, todos em estilo despojado, predominam móveis de sala, cadeiras,
mesas, poltronas e luminárias. Ao voltar-se para continuar o caminho, seus
olhos encontram os de um homem que vem na direção contrária. Os olhares se
cruzam e permanecem fixos um no outro durante menos de um segundo, mas o tempo
é suficiente para que o encontro não se torne uma lembrança fugidia. Glenda não
vai parar, como não parou, nem irá atrás do homem. Como uma mulher de modos
recatados, nunca tomou tal atitude, e não a cometerá agora. Mas ele... , ele já
vem conquistando várias mulheres, e aquela não lhe parece difícil.
Corre atrás dela. Não que Glenda não saiba que está sendo
seguida. Sabe e está gostando, mas, como todas, representa. Ele aproxima-se
bastante – já vão adiantados duas quadras – e entrega-lhe um cartão. Não o faz,
no entanto, sem elegância. Quer chamar-lhe pelo nome, mas como não sabe, diz em
voz baixa:
Moça, moça, caiu alguma coisa de sua bolsa.
Glenda para e vira-se para ele. O homem, então, entrega-lhe o
cartão de visitas. Lógico que é um ardil, ou um convite, onde está escrito o
nome e o telefone dele. Dali em diante, a iniciativa deverá ser da mulher.
Duas semanas depois, Glenda disca o número. Ele atende.
Oi, quero agradecer o cartão.
Cartão?, ele surpreso.
O cartão que você me entregou naquele dia, na Rui Barbosa.
Ah, sim, lembro, que bom você ter telefonado.
Venha até aqui, quero falar com você.
Onde?
Estou no Ilha Linda sul, diz Glenda, tem de ser agora.
Vou, sim, me dê quinze minutinhos.
Não demora e ele já está lá.
Ah, disse Glenda, vi quando você passou com o carro antes de
estacionar, é tão bonito, qual a marca?
Ele responde um nome que a mulher não compreende mas finge conhecer.
Estou doidinha que você me leve pra passear.
Levo, claro, mas gostaria de saber por que você demorou
tanto a ligar, já não contava com seu telefonema.
Perdi o seu número, encontrei apenas hoje, que bom, não é
mesmo?
Ah, ainda bem, diz o rapaz. Mas sabe o que é, continuou,
estou aqui porque dei uma fugida, ainda é o horário de trabalho, preciso
voltar, que tal encontrar comigo à noite?
Ok, fala Glenda, mas fique ainda um pouquinho.
Tudo bem, vou tomar um chope.
Ele pede a bebida, e olha nos olhos da mulher. Ela sorri.
Não pensei encontrá-la de novo, achei você uma mulher de aparência muito
séria.
Jura?
Juro. Fico muito feliz por estar aqui.
Ele toma o chope, depois paga toda a despesa, beija-a e se
vai, promete pegá-la à noite, às oito horas. Glenda fala que tem seu número
bem guardado, e que já não o perderá. Ele anota o número dela.
Quando parte, acha tudo aquilo muito estranho, mas como as
mulheres são sempre um mistério, quer acreditar que tudo vai muito normal.
À noite volta para encontrá-la. Ela está no café do Hotel Mercure, na orla.
Oi, pensei que você não viesse.
Eu?, Jamais seria capaz de deixar você esperando.
Ela sorri e lhe dá um beijo.
O que vamos fazer?, ele pergunta.
Você veio com seu automóvel?.
Sim, e também tenho uma moto.
Quero passear um pouco. Você me leva a Rio das Ostras?
Claro.
Vamos, então.
Ele mais uma vez paga a conta e os dois partem.
Pelo caminho, ela puxa conversa.
Soube que você escreve livros.
Soube? Como descobriu?
Hoje em dia, com o Google, todos nos tornamos verdadeiros
detetives.
O Google? Ah, sim, o Google, ele repete.
Quero lhe pedir uma coisa.
Pois peça.
Você me coloca em uma de suas histórias?
Ele olha para Glenda, mostra uma fisionomia de satisfação.
Do lado de fora, a noite avança, o céu está claro. Na direção contrária os
faróis dos veículos dão uma tonalidade azulada à aventura noturna.
Coloco, claro, mas você sabe, escrevo livros de viagens, não
se trata de ficção.
Ah, gosto muito de ler, e sei que todo escritor inventa
alguma coisa.
Isso é verdade, ele concorda.
Eu dito para você a história em que desejo aparecer.
Então, foi por isso que me procurou. Quando soube que sou
escritor, resolveu telefonar.
Não, já falei que perdi o seu número.
Ah, sim, acredito.
Em Rio das Ostras resolvem ficar na Praia do Cemitério, um
local bastante agradável onde há realmente um cemitério, mas os mortos não
perturbam a fileira de barzinhos que se estende à beira da praia. Sentam em
uma mesa lateral e continuam a conversa.
Quer dizer que você vai me ditar a parte da história com
suas aventuras, ele diz.
Aventuras, não; na história, sou dona de um bar à beira-mar
como este aqui, e recebo sempre muitos amigos. Assim vou poder mostrar para
todos que sou personagem de uma história.
Você ama os livros e as histórias, não?
Amo também os automóveis.
E as motos, não?, quer saber ele.
Também as motos, Glenda ergue a bela taça de xerez e brinda
ao copo de chope do homem.
À literatura, diz ele.
À literatura, diz ele.
À literatura e aos automóveis, exclama Glenda.
Ela dá mais detalhes de como deseja aparecer na história.
Diz como é a decoração do bar, quem o frequenta e até mesmo o que veste. Ainda se refere a um segredo que vai revelar mais tarde, quer que faça parte do final da história.
Posso colocar o seu bar e você no livro, quanto a isso não
há problema algum, diz ele, mas quanto ao segredo não sei, acho que vou ter
problemas, porque se trata de um livro de viagens.
Quem sabe você diz que, conforme uma lenda local, a
mulher etc. e tal e assim conta o segredo.
Sei, entendo o que você quer, só não compreendo o porquê
disso tudo.
Não faz mal que não compreenda, depois você vai
entender.
Conversam sobre outras coisas, bebem e comem. Lá pelas dez
e meia saem do restaurante. Glenda pede para ir até a beira da praia. Ele
concorda e os dois caminham adiante.
Que bom não haver ninguém por perto, diz e despe o vestido
de uma só vez deixando-o nas mãos do homem, depois entra na água.
Na volta, após secar o corpo ao ar livre, senta nua no banco
do carona e não se veste enquanto voltam à cidade de origem.
O rapaz toca-lhe o corpo quando para num bairro da zona
norte da cidade. Ela o abraça e os dois fazem sexo dentro do carro. Os vidros escuros
deixam-nos despercebidos.
Dias depois, o escritor coloca a mulher numa de suas
histórias de viagens. Ele está na América Central, numa praia do
Panamá. Cria um bar como aquele de Rio das Ostras. A mulher é a anfitriã
perfeita para qualquer tipo de viajante. No final, diz que há uma lenda na
localidade sobre Glenda, a dona do bar, mas ele descobre por conta própria, ninguém
no lugarejo sabe que a dona do bar e a personagem da história são a mesma
pessoa. Agora, resta esperar por Glenda para que ele descubra o segredo que ela
deseja no relato.
Três dias se passam e ele recebe um e-mail de Glenda. Ela o
cumprimenta com um beijo. Na mensagem, há um arquivo anexado. Ele abre. É um
relato, um miniconto chamado “Aparição”, trata-se de uma história em que uma
mulher aparece nua num lugarejo à beira da estrada às quatro horas da manhã.
Ela pede ajuda a um homem, que se surpreende ao vê-la em pelo. Há uma foto também anexada: é Glenda a mulher nua
na madrugada. Um dia depois ele recebe outra mensagem. Novamente um miniconto.
Agora chamado “Rita”, é a história de uma mulher que está nua dentro d’água, numa
praia de Rio das Ostras. Ela está sozinha e também aparece um homem. Ela conta-lhe,
então, seu périplo pelas praias da região com o namorado, que há pouco partiu.
Mas esse ouvinte só repara que ela está nua no final do relato, e é ela mesma
que revela. A mulher também não tem preocupação alguma de como vai fazer para
sair dali nua. Está prestes a anoitecer, ela abraça o homem e diz que o
importante é gozar.
No final de semana, encontra-se com Glenda no restaurante Ilha
Linda Sul.
O que significam aquelas histórias que você me enviou?,
está curioso.
Ela sorri, tem um cigarro entre os dedos, mas ele permanece
apagado; seu cabelo liso escorre pelo lado direito, do lado esquerdo está preso
numa espécie de penteado assimétrico. Enfim, responde:
É o segredo.
Segredo?
Isso. Não disse a você que havia um segredo e que você
deveria colocá-lo na história da dona do bar, no seu livro de viagens?
Ah, sim, agora entendo. Mas você precisa me explicar melhor.
Explico, sim. Temos um grupo, só de mulheres, uma espécie de
sociedade secreta. Vivemos experiências extremas e depois nos reunimos para
contá-las umas às outras. Às vezes, escrevemos as histórias com nomes fictícios.
Estou contando a você para que faça parte do livro. E o livro não vai ser
lançado aqui, não é mesmo?
Vocês se reúnem para experiências extremas com alucinógenos
e uso de drogas pesadas?
Não, nada disso, já passamos dessa fase, hoje somos até
mesmo vegetarianas, bebemos vez ou outra algum drink, a maioria toma suco.
Nossa experiência é com sexo.
Agora começo a entender.
Aproveitamos a noite, o fato de a cidade não ser grande
permite que andemos nuas. Corremos o risco de ser surpreendidas ou mesmo
estupradas, mas é isso que nos arrepia. Agimos individualmente, traçamos antes
um roteiro, mas antes do amanhecer temos de estar sãs e salvas. Você pode
pensar que trepamos com qualquer um, mas não é bem assim. Precisamos sentir alguma
atração.
Nunca deu errado?, ele quer saber.
Até agora, não. E acreditamos que ninguém na cidade saiba sobre nossa sociedade.
Mas em “Aparição” a mulher contata um homem, pelo menos ele
fica sabendo.
Às vezes há esse contato, mas depois desaparecemos. Então
quem passou pela experiência nada mais sabe sobre nós, o máximo que pode
acontecer é surgir uma conversa de botequim, que, no fundo, não tem
credibilidade. Também não há como nos reconhecer, usamos sempre algum disfarce.
Vou escrever sobre isso, então.
Ok, escreva e fique atento.
Ela para de falar e vai até o passeio para acender o
cigarro. As ondas do mar estouram com regularidade e é possível assistir às
espumas que sobem e descem as areias da praia.
Na madrugada da sexta seguinte ele recebe um telefonema, são três da
manhã. Glenda pede para que ele a apanhe dois quilômetros após o Hotel Blue
Tree, próximo à lagoa, acrescenta que tem de ser dentro de vinte minutos. Desliga o telefone sem deixá-lo responder. Quando o homem chega, Glenda, nua, o espera
sentada numa pedra. Toma-o por uma das mãos e dá a direção que precisam seguir.
Ele a obedece. Às quatro em ponto ela desce do carro, ainda nua, na Praia da
Joana.
Vá agora, você não pode ficar aqui, nem pode me espionar.
Ele dá a partida. Um quilômetro adiante para o carro e salta,
volta pela vegetação até o local onde deixou a mulher. Repara que ela permanece
ali e está fumando mais um cigarro. Pouco a pouco um barulho de motor cresce
dentro da noite. Surge uma moto. Uma mulher guia. Glenda sobe na garupa e se vai.
Dois dias depois encontra Glenda de novo na orla da praia de
Cavaleiros. Conversam bastante, mas toda vez que ele tenta tocar no acontecimento recente ela muda de assunto. É como se a noite de Glenda nua não tivesse existido.
Eles trepam num motel próximo. Ele pergunta se pode levá-la
nua no carro. Glenda aceita. No final diz que vai deixá-la na ponta da praia de
Cavaleiros, quer ver como vai fazer para se safar. Mas a mulher, a princípio, nega
sair do carro, diz que as coisas precisam ser programadas.
Quando você telefona para algum homem resgatá-la de
madrugada, parece não haver programação, ele diz.
Parece, apenas.
Então, hoje, vamos ao acaso, ele parece nervoso.
Calma, sou eu que estou nua, ela sorri após a última
palavra.
Você não quer a história?, ele insiste, a história da dona
do bar? É preciso uma dose de imprevisibilidade.
Você acha?, ela finge começar a pensar no assunto.
Para que as histórias sejam verdadeiras, a gente precisa
respeitar o acaso.
Ok, então, vamos ao acaso, Glenda concorda.
Ela desce do carro, abre a porta devagar, sai e a fecha
novamente. Está de pé, do lado de fora, diante da janela do carona.
Nada de documentos nem de telefone, ele acrescenta e dá a
partida.
A mulher fica nua e sozinha. Ele dirige por toda a orla, faz o
retorno no final da praia e volta ao local onde a deixou. Mas ela não está. Ele
a procura nos arredores, desce a areia, entra pelo Pecado. Mas não a encontra. Nem ali, nem em lugar algum.
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