domingo, fevereiro 23, 2014

Bastante boa nisso

Eu caminhava a passos rápidos pelo calçadão, em Copacabana. Eram quatro horas da tarde de sábado. A maioria das mulheres que pratica este tipo de esporte veste bermuda ou short de lycra e camiseta. Eu, não, vou sempre de biquíni. Não é preciso ressaltar que se trata de um biquíni bem pequeno. O único outro apetrecho que me irmana a elas é o tênis. Além dele, levo uma pequena capanga, que prendo à cintura ou a um dos braços. É a maneira mais confortável que encontro para praticar o meu exercício diário. Marcho do Posto Seis ao Leme, ida e volta. Sei que muitos homens torcem o pescoço para olhar a minha bunda depois que cruzo com eles. Mas não me incomodo. Para falar a verdade, gosto, e muito. O importante, além de manter a beleza e a forma, é ser admirada. Ontem, no entanto, quando estava prestes a completar os oito quilômetros que percorro diariamente, encontrei um amigo. Gritou o meu nome. Pedi que aguardasse. Fiz a volta no final da praia e fui até ele.

“Oi, Célia, quanto tempo!, que bom encontrar você”, falou e me beijou.

“Quem bom, também estou adorando.”

“Bonita como sempre.”

“Você acha?”, estendi os braços e cruzei as mãos na altura do biquíni, fingia uma ponta de vexo.

“Está ótima e linda”, insistiu.

Passamos a andar lado a lado durante alguns metros.

“Você não pratica esporte algum?”, perguntei.

“Às vezes, mas estou muito ocupado.”

“É mesmo? O que você anda fazendo?”

“Escrevendo um livro”, sorriu e esperou a minha reação.

“Que legal, um livro, vou à noite de autógrafos.”

“Calma, Célia, ainda estou na metade, e por falar nisso, queria conversar sobre ele com você.”

“Eu? Como posso ajudar alguém tão inteligente como você?”

Paramos diante de um quiosque. Perguntou se eu aceitava beber água de coco. Fiz que sim com a cabeça. Continuou.

“Você é escritora. Sua opinião me vai ser muito importante.”

“Será? Meus livros são brincadeiras perto do que você estuda. O que você está escrevendo? Deve ser alguma tese ou algum tratado, não?”

O rapaz nos serviu dois cocos. Arranjamos lugar numa das mesas do quiosque.

“Você fala assim porque sabe que sou professor de universidade federal. Mas não tem nada a ver. Adoro o que escreve, você é bastante boa nisso.”

“Ah, obrigada. Adorei o bastante boa nisso.”

“É verdade. Ninguém pode negar.”

“Sobre o que é o seu livro, então?”, bebi alguns goles do meu coco, e reparei ao fundo quatro pessoas que jogavam vôlei junto a uma rede.

Ele pousou o enorme coco sobre a mesa e disse:

“A evolução da terminologia historiográfica na abordagem da escravidão no Brasil – dos primeiros navios negreiros à abolição.”

“Puxa”, exclamei, “deve ser uma história muito difícil.”

Ele sorriu, “não se trata de história, é realmente uma tese de pós-doutorado.”

“E qual será o meu papel num trabalho como esse?”

“Você pode ler para mim, é muito hábil nisso, escreve muito bem."

“Mas minha escrita é sem compromisso. Ou, se há compromisso, é com o prazer, a diversão.”

“Nada a ver. Quem escreve, sabe.”

Não queria aceitar, sobretudo porque às vezes, apesar de ver estas pesquisas como necessárias, acho sua leitura extremamente chata.

“Já sei, você está ocupada com um novo livro”, acrescentou.

Quase falei que sim, mas acabei cedendo.

“Nada disso. Você sabe que escrevo como se estivesse brincando. A literatura para mim é um grande prazer. Leio para você sua tese, sim. Mas não me comprometo a pensar nas ideias nem no vocabulário. Vejo apenas a ortografia das palavras usuais e a concordância.”

“Ótimo, Célia, é isso mesmo que eu desejo. Vou ficar muito agradecido.”

“E como podemos fazer?”

“Vamos até meu apartamento. Deixo com você a primeira parte. Prefiro que você corrija em papel.”

“Ok”, respondi, “mas vamos agora?”

“Podemos ir. Quanto mais cedo melhor.”

Quis dizer a ele que estava de biquíni, e que ele morava um pouco afastado da praia. Mas seu entusiasmo era tanto, que nada falei. Atravessamos a Atlântica, percorremos alguns metros numa rua transversal e chegamos onde ele estacionara o carro. Entramos. Deu a partida e continuou o seu assunto, o livro. Nada mencionou sobre eu estar apenas de biquíni nem demonstrou espanto. Saímos de Copacabana, cruzamos Botafogo e chegamos ao Flamengo. A praça São Salvador era o nosso destino. Depois de estacionar numa vaga de rua, saímos do automóvel e seguimos para o prédio onde ele mora. Várias pessoas olharam-me surpresas. Não esperavam encontrar uma mulher nua naquelas bandas. Na entrada do prédio, uma senhora franziu o cenho e moveu a cabeça em desaprovação ao me vir subir as escadas.

Dentro do apartamento, meu amigo continuou não dando mostras de que reparara a minha nudez. Pegou um calhamaço de papel e se pôs a falar sobre seu futuro livro. Sentei numa poltrona, cruzei as pernas e fiquei ouvindo. Depois de me explicar o assunto com muito zelo, entregou-me as folhas.

“Você tem um mês para fazer a revisão.”

“Um mês?”, minha pergunta saiu automática. Eu estava surpresa devido ao seu fanatismo pelo trabalho.

“É pouco?, então que tal um mês e quinze dias?”

“Está bom, fechado.”

“Não é um trabalho gratuito, vou pagar a você.”

“Jura?”

“Claro, é da parte da editora. Eles estão sem revisores, reclamam por causa da dificuldade do assunto.”

“Já que vão pagar, cobro bastante caro, viu?”

“Não faz mal, o tanto que pedir aceito.”

“Olha lá”, brinquei, “sua editora vai à falência.”

Ele apenas riu. E foi à cozinha fazer um café.

Ficamos conversando sobre vários assuntos até mais ou menos nove da noite. Só então ele se deu conta de que eu tinha de voltar para casa.

“Você se incomoda se eu pagar o táxi pra você?, pra mim vai ser um pouco complicado levá-la agora em Copacabana.”

“Ok, vou de táxi. E já que arranjou trabalho para mim, não precisa pagar.”

“Não, não”, insistiu, “vou pagar sim, e chamo o táxi.”

“Quero pedir um favor a você. Um segredinho, sabe?”, sussurrei.

“Segredinho, adoro segredos.”

Continuei então bem baixinho, falando apenas com o ar:

“Você deve me empresta algo, sabe?”, minha intenção era que ele reparasse que eu estava nua e me emprestasse uma camiseta. “Adivinha?”, continuei. Enfim, apontei para o meu corpo. Em uma das mãos eu segurava as folhas do livro dele.

“Meu Deus, nem reparei, você precisa de uma pasta para levar as folhas!”, sua voz soou em tom de surpresa, como se uma chama saísse repentina dos seus lábios.

Logo as folhas ficaram protegidas dentro de uma pasta verde, de plástico.

Já que ele não entendeu, não vou pedir camisa alguma, pensei com minha pele. Havia feito tanto sucesso na vinda, agora pagava pra ver o que iria acontecer, quem sabe eu até me tornaria uma celebridade.

Dei-lhe dei um beijinho nos lábios, em sinal de despedida. Ele tirou da carteira o dinheiro do táxi e me entregou. Agradeceu mais uma vez. Depois que fechou a porta, mergulhei na noite que se anunciava. Uma noite quente e plena de frisson.

Lá embaixo, um jovem, quase ainda garoto, perguntou-me:

"Moça, você vai ao samba de raiz que tem aqui na praça? Já está até fantasiada."

"Vou, sim". olhei pra ele e sorri.

Ele, então, me entregou uma máscara, dessas que tapam apenas os olhos, enfeitada de lantejoulas prateadas.

Vista, vai ficar legal!

Tirei os óculos escuros e o pendurei no cordão do top, entre os seios. Coloquei a máscara.

"Posso ir com você?", perguntou.

"Claro. Vambora!", tomei-o num meio abraço e seguimos ao ritmo de festa.

domingo, fevereiro 16, 2014

Dois pedidos

Foi até o balcão e trouxe duas xícaras de café e dois pedaços de bolo. Meus olhos encheram-se de riso.

“Um verdadeiro cavalheiro”, bebemos café e provei o bolo.

Alex é um homem silencioso, muito educado. Costuma ouvir as pessoas. Quanto a mim, deixa-me falar por horas a fio. Sempre parece satisfeito com as histórias que eu lhe conto.

Quando faltavam dez minutos para o filme começar, entramos no cinema. Era um filme inglês. Uma mulher sai à procura do filho que dera à luz nos tempos de adolescência. Engravidara quando interna num convento. Saíra para uma festa e fora seduzida por um jovem de sua idade. As freiras ofereciam para a adoção crianças nascidas de mães solteiras. Durante décadas guardou segredo sobre esse filho, mas quando ele completaria cinquenta anos resolve procurá-lo. Coisas de cinema.

Achei que o filme não é para o momento que vivo com Alex, um momento de forte paixão. Mas ele o escolhera.

Voltamos de táxi ao meu apartamento. Arrumei a mesa com pratos e copos, peguei o que havia na geladeira, inclusive cervejas. Começamos a beber e a beliscar. Decidi, então, lhe contar meu segredo.

“Tenho um problema, sabe.”

“Um problema?", franziu a testa.

“Isso mesmo.”

“Alguma doença?”

“Não sei. Talvez alguns achem que seja doença, sim.”

“Qual?”, sua voz soou baixa e preocupada.

“Acontece quando bebo. Fico com um fogo terrível.”

“Ah, isso não e doença.”, sorriu.

“No meu caso acho que sim, certa vez fui a uma festa, bebi tanto que acordei nua."

“Isso é normal. Mas o que aconteceu depois?”

“Uma amiga me salvou. Ainda houve outro fato. Sei que você é um cavaleiro, todo polido, não sei se vai gostar de mim depois de eu contar essas coisas.”

“Pois conte, escuto você e acho que não vou ligar para esses problemas.”

“Jura? Ouça, então. Houve uma outra vez. Foi nas escadarias de Santa Tereza. Tive um namorado que morava por aquelas bandas. Bebi com ele e saímos para passear. Subimos e descemos aquelas escadarias. Eu só vestia uma camisa sobre a pele, uma camisa dele. Quando voltávamos ao apartamento, ele me deixou nua enquanto descíamos as escadas.”

“E o que aconteceu depois?”

“Depois? Não lembro. Acho que voltamos pra casa dele, eu ainda nua, e namoramos. No dia seguinte, fui embora.”

“Vestida apenas com a camisa?”

“Não. Já tinha recuperado minhas roupas.”

“Que bom!”, chegou a exclamar. "Por que será que as mulheres gostam tanto de andar nuas?"

"Não são todas. Eu gosto. E o motivo é que supera-se a angústia."

"Verdade?", ele fez um ar de que não acreditou na tese.

"Sim, sinto um frisson tão intenso, que lança pra longe qualquer sentimento negativo, como o tédio ou a angústia."

Bebemos três garrafinhas de cerveja. Levantei-me, beijei-o na boca e pedi.

“Você faz um favor pra mim?”

“Claro, basta pedir.”

“Jura?”

“Juro.”

“Empresta a camisa?”

“Esta, a que estou vestindo?”

“Sim, ela mesma.”

“Ok”, falou sério.

Levantou-se. Era uma camisa polo. Despiu-a e entregou-me.

Fui ao quarto, tirei toda a roupa e voltei vestida apenas com a camisa. Pedi mais uma coisa:

“Agora você me leva pra passear?”, sorri e fiz um biquinho, convidando-o para mais um beijo.

domingo, fevereiro 02, 2014

Afinal, para que servem os parques?

Salto na estação Baquedano – venho de Santa Isabel –, subo um andar e tomo o metrô na direção do Palácio do Governo. Um número regular de pessoas sempre visita o centro cultural La Moneda, e neste 23 de dezembro não é diferente. No momento em que chego acontece a troca da guarda, sempre apreciada por um bom número de pessoas, entre elas muitos turistas. Como é o último dia útil antes do natal, o clima de festa predomina por toda região metropolitana. Eu, inclusive, vou ao centro para participar de um almoço, a confraternização de final de ano da empresa onde trabalho. Enquanto caminho na direção da entrada do Centro Cultural La Moneda, avisto um pequeno grupo constituído por dois rapazes e uma moça. Na certa são turistas, pois olham para todos os lados com muito interesse e portam mapas da cidade. Os rapazes são bonitos, a moça veste short azul e camiseta branca. Sorrio para um deles, que retribui o sorriso. Continuo o meu caminho.

O Centro Cívico está todo festivo. Há comemoração de natal nos Correios e na Intendência. Crianças circulam com suas mães, demonstram ansiedade em participar nos festejos.

Subo o prédio onde trabalho sentindo um pouco de saudades pelo que vi na rua. Primeiro, os rapazes bonitos, depois as crianças felizes e fantasiadas de anjo. Desejo continuar compartilhando suas alegrias.

No escritório, a festa está estrepitosa quando entro. Alguns rapazes parecem já se ter excedido na bebida, riem muito. Sofia é a primeira a me desejar boas festas. Ficamos as duas próximas a uma das janelas, de onde se pode apreciar boa parte da cidade. Os garçons servem salgadinhos e pastas com torradas, há também azeviche. Tudo está muito gostoso. Para beber não falta vinho, mas servem também cerveja. Nestas festas, todos se descontraem e muitas vezes falam demais, por isso cuido para, na maior parte do tempo, apenas ouvir e dar uma ou outra opinião. Não quero depois, na volta do ano novo, ser objeto de pilhéria, como sempre acontece a quem passa dos limites nesse tipo de comemoração.

Quando deixo o local, já são três e meia da tarde. Margeio de novo o La Moneda. Olho a escada rolante que leva ao Centro Cultural. Lembro-me dos três jovens e da moça, mas é certo que eles estão longe dali.


No dia 26, um fato interessante faz que eu me sinta muito feliz. Resolvemos eu e Sofia passearmos pelo bairro La Starria, aquele local cheio de barzinhos, que começa a ficar movimentado ao entardecer. Ao passar diante da livraria Ulisses, dou com um homem de uns trinta e cinco anos. Ele olha para mim e sorri. Ainda embalada pelo ar de festas de fim de ano, correspondo ao sorriso. Ele para e fala comigo. Pergunta se eu conheço um bar agradável para se tomar uma cerveja àquela hora. Vê-se que não é chileno. Acho melhor não perguntar de onde vem. Olho para Sofia, que não demora a me devolver o olhar. Permanece calada. Digo então a ele que todos os bares são bons, e qualquer que seja a escolha ele não vai se decepcionar. Mas alerto quanto aos preços. Nós, que vivemos aqui, achamos tudo muito caro. Na maioria das vezes, só frequentamos esses lugares uma vez ao mês. Ele acaba convidando Sofia e eu. Mas, de modo polido, recusamos.

Continuamos o passeio pela La Starria. Bordejamos as barracas de livros usados, paramos em cada uma delas para ver alguns exemplares. Há títulos quase novos, e algumas têm os preços muito atrativos. Fico de, na volta, comprar um exemplar de Ficções, de Jorge Luís Borges. Está custando apenas cinco mil e se encontra em muito bom estado. Atravessamos a rua e paramos num café, de mesinhas na calçada. Pedimos dois expressos. Enquanto esperamos, descubro o pequeno grupo de jovens que vi no dia 23 próximo ao La Moneda. São eles mesmos. A moça dessa vez veste saia curta e está de pernas cruzadas, um dos rapazes usa uma camiseta de mangas com uma grande estampa de um grupo de rock, o outro uma camisa polo listrada, azul e amarela. Fixo o olhar neles para ver se um deles se volta para mim e lembra o encontro fortuito de três dias passados. Mas eles parecem entretidos numa conversa que não os permite desvios. Pelos sons, noto que falam português, mas consigo entender alguma coisa. Conversam sobre os passeios que fizeram. O de camisa listrada diz que a cidade é acolhedora, tem um ar hospitaleiro, o único assédio que sentiu foi dos músicos de rua. O outro ri, carrega uma sacola da Ulisses, deduzo que antes de decidirem pelo café deram uma olhada na livraria. Vêm nossos cafés. Eles tomam cerveja, inclusive a moça. E ela é muito magra. Continuo a prestar atenção na conversa deles. A rua movimentada exibe vários tipos de pessoas, passeiam e conversam animadamente, vê-se que a maioria é turista. Comento com Sofia sobre o grupo. Ela também está a vigiá-lo. Um deles olha para onde estamos e sorri para mim. É o mesmo daquele outro dia? Aquele não era tão jovem assim. Observo melhor, posso constatar que ele pode ter uns trinta anos. Retribuo o sorriso, reparo que fala alguma coisa ao grupo. Não desvio os olhos. Ele também continua a olhar-me. Repete o que disse momentos antes. Desvio um pouco o rosto, passo a contemplar a rua. Ele levanta e caminha até onde eu e Sofia estamos. Chega muito sorridente, cumprimenta-nos cautelosamente. Diz que me conhece de algum lugar, fala uma mistura de português e espanhol. Respondo que fale na sua língua, assim será melhor, acho que vamos nos entender bem. Pergunta se pode sentar-se ao nosso lado. Permito. Pela sua expressão facial, Sofia também acha boa a ideia. Começamos a conversar.

Apresenta-se, seu nome é Pedro.

O seu país é muito acolhedor, é o que posso entender de sua fala inicial.

Você viajou o país todo?, pergunto.

Não, apenas Santiago e mais duas cidades.

Você conheceu todos os bairros de Santiago?

Não, continua ele, segui a linha do metrô, visitei o centro cívico e alguns lugares culturais.

Vejo que comprou um livro.

Sim, um livro recomendado pelo vendedor, Geografia de la lengua, conhece?, ele se mostra interessado.

Já ouvi falar sobre, e também vi num caderno de "La Tercera", mas ainda não li, e para dizer a verdade não sei se vou ler, tenho me dedicado ao trabalho.

Você não gosta de fantasia?, pergunta com o rosto demonstrando preocupação.

Fantasia? Como assim?

Fantasia, ficção... Todo ser humano precisa de ficção. Não é possível ser apenas técnico. Eu sou engenheiro mecânico.

Ah, entendo o que você quer dizer, retruco, realizo minhas fantasias por intermédio do cinema.

Oh, cinema, muito bom. Que tipo de filme mais gosta?

Penso um pouco, lembro o cinema das proximidades, está passando um filme de Woody Allen.

Gosto de Woody Allen, Scorsese, Kubrick.

Muito bom, muito bom, são diretores muito interessantes, fala e fica em silêncio durante quase um minuto, depois muda de assunto.

Vocês não bebem outra coisa além de café expresso?

Bebemos, respondo, mas achamos que ainda é cedo para bebidas alcoólicas.

Mas já são sete e meia da noite;

Eu e Sofia conferimos as horas e começamos a rir.

Seus amigos nos olham da outra mesa, continuam bastante animados, um deles faz sinal para o que está conosco, mas não entendo o significado.

Vocês saem à noite nesta cidade?, reinicia ele a conversa.

Saímos, sim, há vários lugares interessantes em Santiago, mas é preciso saber do que vocês gostam, ou o que querem.

Gostamos de música, de cantar, de dançar, fala e faz de conta que dança. Vocês duas podem nos acompanhar em algum desses lugares, então?

Olho para Sofia. Mas ela está voltada para a entrada da cafeteria. A porta de madeira é bem trabalhada nas extremidades, parece obra de escultura. É para lá que Sofia olha. Um dos garçons passa com a bandeja contendo três cervejas e se curva à mesa que fica além da nossa, coloca as garrafas junto às pessoas, elas agradecem e ele volta para a entrada do café.

Chamo Sofia e falo a ela rapidamente num espanhol que creio não compreendido por nosso visitante. Sofia responde que por ela está tudo bem. Caso eu decida acompanhar o grupo, ela também irá.

Concordamos em ir com eles. Falam sobre um pub em Las Condes, um tanto distante de onde estamos. Alerto que nas proximidades existem bares e pubs muito bons, inclusive com o patamar onde há karaokê, por isso não precisamos ir tão longe. Ele alega que a moça está hospedada num hotel em Las Condes, assim será mais conveniente na hora de partirem. Mas diz que ainda é cedo, antes podemos ficar em La Starria, e até mudar de ideia, não há problema algum. Também acena com a possibilidade de caminharmos até Bela Vista ou Santa Lucia, onde também acontece vida boêmia.

Ainda ficamos juntos no café por mais trinta minutos, depois passamos a acompanhá-los. Acham melhor andarmos mais e aproveitarmos o clima cultural do bairro. Lembro-me do meu Borges, na banca de sebos. Corro até lá. A seguir caminhamos na direção da estação de metrô da Universidade Católica. No caminho paramos mais uma vez diante da livraria Ulisses. São quase nove da noite e ainda está aberta. Pedro mostra que já comprou dois livros ali mais cedo, e que agora tomou coragem para comprar o terceiro. Entra na livraria e volta com o exemplar dentro de uma bolsa plástica.

Os livros são caros aqui no Chile, diz.

Sim, aqui não há isenção de impostos para livros.

No meu país toda a cultura é subsidiada.

O seu país é o paraíso, completo.

No começo de La Starria há um bar simples, um bom espaço para conversar, tomar uma cerveja e observar as pessoas que passam na rua. Mostro a eles. Gostam do ambiente. Entramos e pedimos as bebidas. A moça deseja de novo outra cerveja. Adora o rótulo da pequena garrafa e tenta descolá-lo para levar como lembrança.

Você pode levar a garrafa, sugiro.

Posso mesmo? Que bom!

Ela parece deslumbrada.

Em que vocês trabalham aqui?, pergunta o Pedro, que entre todos é o que se mostra mais extrovertido.

Nós duas trabalhamos com publicidade.

Interessante, ressalta, isso dá muito dinheiro.

Certamente, nossos patrões estão ricos, fala Sofia.

Todos riem.

No meu país há muita publicidade, fala Márcio, o que veste a camisa com a estampa do grupo de rock.

No mundo todo, tudo é publicidade, digo e movo os ombros.

As cervejas estão geladas e gostosas. Eu, que não sou muito de cerveja, tomo uma, mas prefiro a de marca mexicana. A conversa esfria um pouco. Os rapazes olham a rua e observam as pessoas. A moça entretém-se com o celular, parece que conseguiu entrar numa linha aberta, navega pela internet.

Vocês ainda vão querer ir ao pub?, pergunto.

O que você acha? Não fica aberto até mais tarde?, quer saber Pedro.

Sim, respondo, mas então temos de nos apressar. Conheço o lugar. Se vamos agora, podemos ir de metrô. Mais tarde, só de táxi.

E como vocês irão embora?, pergunta Márcio, demonstrando preocupação em não deixar nós duas sozinhas no meio da noite.

Teremos de pegar um táxi.

Isso não vai sair caro para vocês?, insiste.

Nem tanto. Caso queiram ir ao pub, é melhor agora, sentencio.

Eles concordam. Pagamos a despesa e caminhamos a passos rápidos para a estação do metrô Universidade Católica.

Saímos do metrô na estação Tobalaba, andamos duas quadras e encontramos o pub. O local possui dois andares e um terraço. No primeiro, há lugares na rua, sobre o passeio, e na parte interna; no segundo existe um bar com karaokê, que funciona a partir das 21 horas; no terceiro, mais um bar, só que a céu aberto, uma espécie de terraço, apropriado para os dias quentes. Está cheio o pub. A qualquer dos salões a que nos dirigimos, há uma porção de gente. Mas todos demonstram muita animação, tentam conversar e, ao mesmo tempo, aproveitar as canções americanas que tocam seguidamente proporcionando um clima todo especial. Novamente queremos cervejas. Os rapazes aproveitam para pedir também batatas fritas. Como não encontramos lugares disponíveis, ficamos no terraço.

Daqui a pouco vamos para o andar do meio, onde há o karaokê, fala Pedro.

Você sabe cantar?, pergunto.

Mais ou menos. No meu país, canto acompanhando ao violão.

Que bom, digo, vamos aguardar com ansiedade a sua vez.

Sofia sorri.

O pub é todo de madeira, possui uma decoração com quadros de pinturas abstratas, muito coloridas, as luminárias são de intensidade média, e as pessoas bonitas. As mulheres, sobretudo, estão muito bem vestidas. Márcio observa:

As chilenas se vestem muito bem. No meu país não sabemos disso. É o que dá conhecer o país apenas acompanhando jogos de futebol, completa. Parece censurar a si próprio.

Chegam as bebidas e as batatas fritas. Não demora descemos para o segundo piso, o do karaokê. Arranjamos uma mesa de cinco lugares. Pedro inscreve-se para cantar. Antes de chegar a sua vez, três pessoas vão ao microfone. O karaokê parece que privilegia canções de língua inglesa. É só o que se ouve.

Todos cantam bem em inglês por aqui, observa Márcio.

As pessoas de outros países nos acham muito americanizados, diz Sofia.

Verdade?, pergunta Pedro.

Vocês não sabiam?, é a minha vez de perguntar.

Pedro canta. E canta bem. Uma canção americana dos anos 90. As pessoas o aplaudem muito. Depois dele, uma garota canta uma música da Madona, o que causa uma tremenda agitação. Em certo momento, todos dançam, e cada vez pedimos mais cervejas.

Temos de ir embora às três da manhã, porque depois dessa hora o pub não serve mais bebidas alcoólicas. Trata-se de uma determinação legal, um modo as autoridades controlarem a sociedade e evitarem a desordem. Não sei se essas coisas funcionam. Mas acontece assim.

Nos despedimos dos rapazes. Mas eles não nos querem deixar ir sozinhas. Insistem em levar a moça ao hotel próximo e depois nos acompanhar até determinado ponto do caminho.

Acabamos aceitando a carona. Entramos num táxi e falamos nossos destinos.

Pedro parece querer chegar-se a mim, percebo que deseja minha companhia, mas faltam-lhe palavras. Consegue, porém, deixar comigo o número do seu hotel. Sofia apenas sorri, bebeu demais, mas a bebida não lhe causa transtorno algum.

O táxi os deixa primeiro no centro, no hotel onde estão hospedados, depois nos leva à porta de casa. Quando vamos pagar a corrida, o motorista nos informa que os rapazes já pagaram o nosso trajeto.

Na tarde daquele mesmo dia, apareço sozinha no hotel de Pedro, é na Bela Vista.

Ainda bem que você veio, vamos embora amanhã bem cedo, ele diz.

Nada falo, sorrio e ele me beija.

Aonde vamos?, pergunta.

Vamos a um parque.

A um parque? Prefiro um local mais sossegado, onde possamos conversar sem que outras pessoas nos incomodem.

Num parque ninguém vai nos incomodar, afirmo.

Tem certeza? Um parque não é um lugar público?

É público, mas você verá que é muito acolhedor.

Caminhamos lado a lado por várias avenidas, entramos na calle Santa Lucia e seguimos na direção do parque próximo.

Pedro surpreende-se ao ver o grande número de casais que se estendem sobre a grama. Muitos se acariciam sem se incomodar com ninguém.

Aqui vocês tem muita liberdade, fala.

Liberdade?, como assim?, Faço de conta que não entendo suas palavras.

No meu país, as pessoas não ficam assim nos parques, agarradas umas às outras. Às vezes nem mesmo os frequentam.

O seu país têm muitas praias, não?

Sim.

Então, acrescento, as praias fazem o papel dos parques daqui, as pessoas lá aparecem juntas, quase sem roupas.

Mas é diferente, diz, vocês aqui frequentam os parques públicos.

Atravessamos algumas alamedas e encontramos um local desocupado. Sentamos na grama, cruzamos as pernas e continuamos a conversa.

Repare, insisto, Santiago é uma cidade muito fria, não é sempre que se pode ficar deitado sobre a grama, conversando e namorando. Você dá sorte de vir aqui no verão. Venha num inverno, verá o tanto que precisará andar agasalhado.

Vocês aproveitam então todos os dias de verão.

Se possível, sim. E há mais uma coisa, talvez isso faça a diferença do local de onde você veio; aqui, a cidade é acolhedora. Pode-se ficar num parque porque não há perigo.

Não há ladrões aqui?

Ladrões há, explico-lhe, mas o costume de se ficar na praça é maior do que o temor a furtos ou a roubos. E os ladrões daqui são bons em agir de forma furtiva. O maior número de delitos é o de tentar abrir mochilas para furtar o que está lá dentro.

Pedro ri.

Não trago mochila, diz.

Depois se chega bem perto de mim, pega uma mecha dos meus cabelos e a acaricia, aproxima o rosto e tenta um beijo. Permito o beijo, permito a carícia. Ficamos os dois em silêncios durante muito tempo. A seguir, dou a senha:

Não vai me deixar nua, viu.

Ambos rimos. Deixamos então nossos corpos se tocarem. Sabemos que o amor é difícil. Que, pelo menos, o ardor de nossos corpos seja satisfeito. Nenhum problema que isso aconteça num parque. Afinal, para que servem os parques?