domingo, fevereiro 23, 2014

Bastante boa nisso

Eu caminhava a passos rápidos pelo calçadão, em Copacabana. Eram quatro horas da tarde de sábado. A maioria das mulheres que pratica este tipo de esporte veste bermuda ou short de lycra e camiseta. Eu, não, vou sempre de biquíni. Não é preciso ressaltar que se trata de um biquíni bem pequeno. O único outro apetrecho que me irmana a elas é o tênis. Além dele, levo uma pequena capanga, que prendo à cintura ou a um dos braços. É a maneira mais confortável que encontro para praticar o meu exercício diário. Marcho do Posto Seis ao Leme, ida e volta. Sei que muitos homens torcem o pescoço para olhar a minha bunda depois que cruzo com eles. Mas não me incomodo. Para falar a verdade, gosto, e muito. O importante, além de manter a beleza e a forma, é ser admirada. Ontem, no entanto, quando estava prestes a completar os oito quilômetros que percorro diariamente, encontrei um amigo. Gritou o meu nome. Pedi que aguardasse. Fiz a volta no final da praia e fui até ele.

“Oi, Célia, quanto tempo!, que bom encontrar você”, falou e me beijou.

“Quem bom, também estou adorando.”

“Bonita como sempre.”

“Você acha?”, estendi os braços e cruzei as mãos na altura do biquíni, fingia uma ponta de vexo.

“Está ótima e linda”, insistiu.

Passamos a andar lado a lado durante alguns metros.

“Você não pratica esporte algum?”, perguntei.

“Às vezes, mas estou muito ocupado.”

“É mesmo? O que você anda fazendo?”

“Escrevendo um livro”, sorriu e esperou a minha reação.

“Que legal, um livro, vou à noite de autógrafos.”

“Calma, Célia, ainda estou na metade, e por falar nisso, queria conversar sobre ele com você.”

“Eu? Como posso ajudar alguém tão inteligente como você?”

Paramos diante de um quiosque. Perguntou se eu aceitava beber água de coco. Fiz que sim com a cabeça. Continuou.

“Você é escritora. Sua opinião me vai ser muito importante.”

“Será? Meus livros são brincadeiras perto do que você estuda. O que você está escrevendo? Deve ser alguma tese ou algum tratado, não?”

O rapaz nos serviu dois cocos. Arranjamos lugar numa das mesas do quiosque.

“Você fala assim porque sabe que sou professor de universidade federal. Mas não tem nada a ver. Adoro o que escreve, você é bastante boa nisso.”

“Ah, obrigada. Adorei o bastante boa nisso.”

“É verdade. Ninguém pode negar.”

“Sobre o que é o seu livro, então?”, bebi alguns goles do meu coco, e reparei ao fundo quatro pessoas que jogavam vôlei junto a uma rede.

Ele pousou o enorme coco sobre a mesa e disse:

“A evolução da terminologia historiográfica na abordagem da escravidão no Brasil – dos primeiros navios negreiros à abolição.”

“Puxa”, exclamei, “deve ser uma história muito difícil.”

Ele sorriu, “não se trata de história, é realmente uma tese de pós-doutorado.”

“E qual será o meu papel num trabalho como esse?”

“Você pode ler para mim, é muito hábil nisso, escreve muito bem."

“Mas minha escrita é sem compromisso. Ou, se há compromisso, é com o prazer, a diversão.”

“Nada a ver. Quem escreve, sabe.”

Não queria aceitar, sobretudo porque às vezes, apesar de ver estas pesquisas como necessárias, acho sua leitura extremamente chata.

“Já sei, você está ocupada com um novo livro”, acrescentou.

Quase falei que sim, mas acabei cedendo.

“Nada disso. Você sabe que escrevo como se estivesse brincando. A literatura para mim é um grande prazer. Leio para você sua tese, sim. Mas não me comprometo a pensar nas ideias nem no vocabulário. Vejo apenas a ortografia das palavras usuais e a concordância.”

“Ótimo, Célia, é isso mesmo que eu desejo. Vou ficar muito agradecido.”

“E como podemos fazer?”

“Vamos até meu apartamento. Deixo com você a primeira parte. Prefiro que você corrija em papel.”

“Ok”, respondi, “mas vamos agora?”

“Podemos ir. Quanto mais cedo melhor.”

Quis dizer a ele que estava de biquíni, e que ele morava um pouco afastado da praia. Mas seu entusiasmo era tanto, que nada falei. Atravessamos a Atlântica, percorremos alguns metros numa rua transversal e chegamos onde ele estacionara o carro. Entramos. Deu a partida e continuou o seu assunto, o livro. Nada mencionou sobre eu estar apenas de biquíni nem demonstrou espanto. Saímos de Copacabana, cruzamos Botafogo e chegamos ao Flamengo. A praça São Salvador era o nosso destino. Depois de estacionar numa vaga de rua, saímos do automóvel e seguimos para o prédio onde ele mora. Várias pessoas olharam-me surpresas. Não esperavam encontrar uma mulher nua naquelas bandas. Na entrada do prédio, uma senhora franziu o cenho e moveu a cabeça em desaprovação ao me vir subir as escadas.

Dentro do apartamento, meu amigo continuou não dando mostras de que reparara a minha nudez. Pegou um calhamaço de papel e se pôs a falar sobre seu futuro livro. Sentei numa poltrona, cruzei as pernas e fiquei ouvindo. Depois de me explicar o assunto com muito zelo, entregou-me as folhas.

“Você tem um mês para fazer a revisão.”

“Um mês?”, minha pergunta saiu automática. Eu estava surpresa devido ao seu fanatismo pelo trabalho.

“É pouco?, então que tal um mês e quinze dias?”

“Está bom, fechado.”

“Não é um trabalho gratuito, vou pagar a você.”

“Jura?”

“Claro, é da parte da editora. Eles estão sem revisores, reclamam por causa da dificuldade do assunto.”

“Já que vão pagar, cobro bastante caro, viu?”

“Não faz mal, o tanto que pedir aceito.”

“Olha lá”, brinquei, “sua editora vai à falência.”

Ele apenas riu. E foi à cozinha fazer um café.

Ficamos conversando sobre vários assuntos até mais ou menos nove da noite. Só então ele se deu conta de que eu tinha de voltar para casa.

“Você se incomoda se eu pagar o táxi pra você?, pra mim vai ser um pouco complicado levá-la agora em Copacabana.”

“Ok, vou de táxi. E já que arranjou trabalho para mim, não precisa pagar.”

“Não, não”, insistiu, “vou pagar sim, e chamo o táxi.”

“Quero pedir um favor a você. Um segredinho, sabe?”, sussurrei.

“Segredinho, adoro segredos.”

Continuei então bem baixinho, falando apenas com o ar:

“Você deve me empresta algo, sabe?”, minha intenção era que ele reparasse que eu estava nua e me emprestasse uma camiseta. “Adivinha?”, continuei. Enfim, apontei para o meu corpo. Em uma das mãos eu segurava as folhas do livro dele.

“Meu Deus, nem reparei, você precisa de uma pasta para levar as folhas!”, sua voz soou em tom de surpresa, como se uma chama saísse repentina dos seus lábios.

Logo as folhas ficaram protegidas dentro de uma pasta verde, de plástico.

Já que ele não entendeu, não vou pedir camisa alguma, pensei com minha pele. Havia feito tanto sucesso na vinda, agora pagava pra ver o que iria acontecer, quem sabe eu até me tornaria uma celebridade.

Dei-lhe dei um beijinho nos lábios, em sinal de despedida. Ele tirou da carteira o dinheiro do táxi e me entregou. Agradeceu mais uma vez. Depois que fechou a porta, mergulhei na noite que se anunciava. Uma noite quente e plena de frisson.

Lá embaixo, um jovem, quase ainda garoto, perguntou-me:

"Moça, você vai ao samba de raiz que tem aqui na praça? Já está até fantasiada."

"Vou, sim". olhei pra ele e sorri.

Ele, então, me entregou uma máscara, dessas que tapam apenas os olhos, enfeitada de lantejoulas prateadas.

Vista, vai ficar legal!

Tirei os óculos escuros e o pendurei no cordão do top, entre os seios. Coloquei a máscara.

"Posso ir com você?", perguntou.

"Claro. Vambora!", tomei-o num meio abraço e seguimos ao ritmo de festa.

Nenhum comentário: