segunda-feira, junho 18, 2018

Leitor de literatura

Tive um namorado que adorava fantasias, isto é, inventava várias situações para representarmos. Certa vez, na casa de praia, pediu-me para sair de biquíni e esperar durante algum tempo do lado de fora; depois, para bater e aguardar que ele abrisse a porta. Eu tinha de fazer de conta que era uma pessoa desconhecida, que estava ali em busca de um favor. Na verdade, eu podia inventar a situação que bem entendesse, mas no fundo deveria estar mesmo paquerando-o, porque já o tinha visto antes na praia. Em outro momento, na própria praia, eu passava junto a ele vestindo um biquíni bem saliente. Ele deveria tentar conquistar-me. No final, tudo acabava num amor quente, eu nua nos seus braços. Lógico que dentro de casa.

O tempo passou e nos separamos. Não sei o motivo. Na vida, é assim, tudo é efêmero, tudo um dia acaba. Mas há um mês recebi uma mensagem dele, dizia que ficaria muito feliz em me encontrar. Respondi perguntando como ele estava passando e o que desejava.

“Tenho um presente pra você”, falou.

“Um presente?”, que bom.

Disse que era surpresa, não podia me dizer. Marcamos, então o encontro.

Ele veio à minha cidade, chegou numa terça-feira pela manhã. Como eu continuava morando no mesmo lugar, não foi difícil encontrar-me.

Logo ao chegar, abriu os braços e me abraçou demorado. Beijou-me. Enfim, entregou-me o presente. Era uma linda canga, toda colorida, bordada em alguns pontos.

Enquanto eu abria o presente, ele começou a contar alguns casos engraçados, acontecidos com ele nos últimos anos. Quando ficou em silêncio, ainda com um ligeiro sorriso no rosto, agradeci o presente e o beijei mais uma vez.

“O que trás você aqui, afinal?, eu estava curiosa.

“Saudades”, respondeu de pronto.

“Nem lembro por que terminamos”, deixei escapar.

“Nem eu.”

“Tenho uma história engraçada pra contar”, eu disse.

Ele, como sempre gostou de ouvir minhas histórias, pediu que eu continuasse.

“Tenho ido muito à praia, você sabe como gosto, e fica logo aqui em frente. E tenho ido nua!”

Ele fez cara de espanto.

“Lógico que não totalmente nua, mas com um biquíni bem pequeno, você me conhece. Outro dia, veio um vendedor de cangas oferecendo-me uma. Acho que ele me vê sempre atravessando a rua de biquíni, resolveu oferecer-me. E ficou naquele papo de vendedor, olha que linda essa, faço baratinho pra senhora, e olha mais essa. Vez ou outra olhava minha nudez, mas queria mesmo era vender a canga. Eu disse que iria pensar, que no dia seguinte talvez comprasse. Ao encontrar-me dias depois, insistiu de novo. Acabei comprando duas cangas, muito bonitas por sinal. E pra completar a história. Tenho um namorado, sabe, ele adora me ver enrolada numa canga, e pede pra que eu não use nada por baixo. Lógico que tudo isso acontece dentro de casa. Eu ainda digo a ele é melhor eu ficar nua pra você! Mas ele prefere que eu surja enrolada numa canga, depois desamarra, e vem a hora do prazer.”

Meu amigo não mudou sua fisionomia, apesar da história do namorado.

“Agora você tem mais uma canga pra representar a fantasia de seu namorado, e muito mais bonita”, acrescentou.

Sentamos e conversamos. Após meia-hora ele propôs darmos uma volta. Saímos pra beira da praia. Como queria agradá-lo, enrolei no meu corpo a canga que me deu de presente.

“Hoje não tem quase ninguém na praia”, observou.

“Terça-feira é assim mesmo. Aqui só tem gente de sexta em diante.”

Andamos a orla toda, um quiosque estava aberto. Meu amigo comprou uma cerveja.

“Você não bebe?”, perguntou. Aceitei um suco.

“Você vai embora hoje?”, perguntei depois de um tempo.

“Acho que sim, vim ver você, posso ficar mais algumas horas.”

Lembramos os velhos tempos, mas ele não tentou me reconquistar, não falou nenhuma palavra que levasse a esta interpretação. Nem tentou tocar-me o corpo.

Num determinado momento, sugeriu:

“Você, com essa beleza toda, deve arranjar muitos namorados.”

“É, até que não é difícil, mas sabe como são as pessoas daqui, não são muitos fiéis.”

“E você é fiel?”

“Tento ser, mas às vezes, até que dá uma vontade de brincar com outro.”

Ri muito depois das minhas próprias palavras.

Continuamos nosso passeio. Ele então me convidou.

“Posso ficar o dia inteiro, você aceita almoçar, daqui a pouco?”

“Claro que aceito”, virei pra ele e fiz uma careta.

O sol estava brando, o vento suave, as ondas explodiam ao longe. Meu amigo olhou tudo aquilo e, tenho certeza, lembrou o tempo quando vivia ao meu lado.

Ainda enquanto andávamos pela beira da praia, perguntou:

“Como vão os livros?, tem lido muito?”

“Nem tanto”, respondi torcendo o sorriso, “preciso ir à biblioteca. Sabia que aqui há uma boa biblioteca?, já não vou lá faz tempo.”

“Trouxe um livro pra você. Pelo menos por enquanto não vai precisar da biblioteca. Quando voltarmos à sua casa, entrego, está na mochila.”

“É sobre o quê?”

“Um romance, uma história que começa em M. e acaba no Rio de Janeiro. Uma espécie de livro de amor misturado com trama policial. Uma mulher ama um rapaz mais jovem do que ela. Ele desaparece e ela vai atrás, quer saber o que aconteceu. Durante este percurso, ela descobre outros fatos. É interessante chama-se Se houvesse sol.”

“Deve ser interessante”, chamei a atenção, “um livro ambientado em M., jamais soube de qualquer livro que se passa em M. Há grupo de poetas que se reúnem uma vez ou outra naquela cidade, alguma antologia de uma poesia muito convencional, mas livro ambientado em M., nunca soube.”

“Existe sim, talvez porque a autora não seja muito conhecida. Ela, inclusive, tem outro livro ambientado em M. e em Rio das Ostras.”

Chegávamos próximos à praça da Baleia. Meu amigo tirou o telefone do bolso e olhou as horas, quase meio dia.

“Você acha cedo para almoçar?”, perguntou.

“Não, está bom agora.”

Entramos num dos restaurantes que bordeiam a praça. Na porta havia uma tabuleta com os pratos do dia. Paramos durante alguns instantes e lemos as informações.

“Hum, vamos pedir um robalo em postas.”

Sentamos, o garçom não demorou a aparecer. Meu amigo fez os pedidos e continuou falando sobre literatura.

“Há algumas pessoas pedindo que eu escreva sobre seus livros. Aceito, consigo publicar, mas quero mesmo é publicar dois romances que tenho guardado.”

“Por que não publica?”

“Não é tão fácil assim. Na internet, há alguns sites que ajudam na elaboração de e-books, autopublicações etc., mas quero mesmo publicar por uma editora que faça a distribuição.”

“Lembra?, quando morei em M. era uma dificuldade formar um leitor de literatura. Por mais que eu tentasse no meu trabalho de bibliotecária, eram poucos os resultados.”

“Houve algum resultado?”, perguntou enquanto tomava um gole de suco de laranja, que o garçom acabava de trazer, “se você conseguiu formar um leitor, já está ótimo o resultado.”

Sorri, enquanto abria um tablete de manteiga para passar numa torrada. Esperávamos que nos trouxessem o prato principal.

“Qual a função da leitura no mundo de hoje?”, fiz a pergunta de surpresa.

“Não sei”, respondeu, “acho que a palavra função não é boa, parece algo do mundo industrial; a leitura é um prazer, um meio de conhecer o mundo, de usufruir da imaginação alheia. Dependendo do livro, também é um meio de elaborar questões. Mas fiquemos no prazer, no divertimento. É tão bom ler um livro interessante.”

“Hoje vejo gente olhando o celular o tempo todo, vendo fotos, vídeos que os amigos enviam, até estou começando achar a leitura impossível, pelo menos pra algumas pessoas.”

“Há muita coisa concorrendo com a leitura, mas ela é importante. O livro que eu trouxe pra você apresenta essa questão, a concorrência da leitura com outros meios de transmissão de histórias.”

O garçom chegou com o peixe assado. Era enorme, rodeado de batatas cozidas e alguns pedaços de tomate. Colocou-o no centro da mesa e começou a nos servir. Primeiro a mim, depois ao meu amigo. O empregado parecia satisfeito em distribuir aquele prato a nós dois. Antes de afastar-se, disse que o chamássemos caso precisássemos de mais alguma coisa.

O almoço transcorreu na mais pura satisfação. Até mesmo parecia o tempo em que vivemos juntos. Saboreamos o peixe, mantendo-nos em silêncio enquanto comíamos. Somente quando acabávamos é que voltamos a falar sobre um ou outro assunto banal. Meu amigo sabia gozar as coisas boas da vida, e aquele almoço era uma dessas coisas.

“Você continua o mesmo”, cheguei a falar.

“O mesmo?”, perguntou ainda mastigando.

“Você gosta do silêncio na hora da comida.”

“Como os gregos da antiguidade, eles também amavam saborear as refeições, nãos gostavam de conversar nem de música no momento em que comiam.”

“Ah, você sempre com seus exemplos, quero sabe se as mulheres sentavam à mesa ao lado deles.”

“Quem sabe, fala-se muita bobagem atualmente.”

“Que tal saborear um sorvete?”, sugeri ao olhar ao lado uma mulher que comia um com calda de caramelo.

“Ótima ideia, vamos completar toda essa gostosura.”

Meu amigo pediu um sorvete de coco; eu, um de morango. Ambos com calda de caramelo. Demoramos, esperamos os pedaços de frutas dissolverem-se dentro de nossas bocas, junto com o creme que, pouco a pouco, tornava-se uma espécie de líquido. Depois que terminamos, ele pagou a conta, agradecemos e saímos. Continuamos nossa caminhada pela beira da praia.

“Que tal irmos à praia, vamos pedir um guarda-sol e duas cadeiras na Tocolândia”, sugeriu.

“Será que aguento?”, perguntei já demonstrando o efeito do almoço, o sono sempre me capturava naqueles momentos.

“Durma debaixo do guarda-sol, recoste a cadeira enquanto aprecio o mar.”

“Quando você morou por aqui, não apreciava tanto a paisagem.”

“É a velha história, a gente sente depois que perde.”

Sorri, aceitei seu convite. Caminhamos à Tocolândia.

Conseguimos o guarda-sol e duas cadeiras de praia. Descemos a areia até ficarmos a mais ou menos vinte metros da linha d’água. Abrimos a cadeira e eu me coloquei sob a sombra. Fechei os olhos ligeiramente, como se cochilasse. Meu amigo sentou e permaneceu silencioso. Acho que passaram quase quinze minutos sem que nos dirigíssemos um ao outro. Fui eu que retomei o diálogo.

“Você sabe que houve um crime, aqui na região?”

“Não, não ouvi falar.”

“Uma mulher foi assassinada.”

“Sério?”

“Você acha que eu ia brincar com essas coisas?”

“Encontraram o criminoso?”

“Vou falar primeiro sobre o que aconteceu”, eu queria mostrar o motivo do crime.

“Ok.”

“Ela morava sozinha, trabalhava em M., aparentemente era alguém independente. Apareceu morta dentro de casa. Há rumores de que ela recebia alguns homens, mas há muita fofoca por aqui.”

“E a polícia?”

“Você sabe como é a polícia, ela não investiga.”

“Vocês vão deixar por isso mesmo? O fato põe em perigo todas as mulheres.”

“Claro, mas a quem vamos recorrer?, estamos numa cidade muito masculina, as vítimas são consideradas culpadas. Caso uma mulher queira viver livre, trepando com que deseja, ela é a culpada.”

“Você não sente medo?”

“Não, não sinto”, falei resoluta. “Mas, aqui, para ter segurança, é preciso de um homem. É um absurdo, não?”

Ele olhava o mar, parecia contente a apreciar a paisagem.

“Agora vamos pra um assunto mais leve,” falei.

Ele me olhou, sorriu.

“Ainda bem que há coisas boas em você.”

“Sabe que um rapaz, deve ter vinte e poucos anos, vive me paquerando.”

“E o que tem isso?”

“Sou quase vinte anos mais velha que ele, é muito tempo.”

“Nada disso, não há idade para o amor”, afirmou alegre.

“Você acha que alguém de vinte e poucos anos sabe o que é o amor? Se a gente, de mais de quarenta, ainda não sabe...”

“Conta como foi a aventura.”

“Não houve aventura. Quando venho à praia, ele sempre aparece, fica me olhando. Pediu um cigarro uma vez; de outra, pediu pra ler um caderno do jornal que eu trouxera pra praia. Emprestei. No final perguntou se eu não entrava n’água. Muito engraçado.”

“E o que você falou?”

“Que sim!”

“Então a coisa foi boa.”

“Só uma vez. Disse a ele para não se achar o tal.”

“É o seu namoradinho?”

“Não!”

“Entendi.”

“Tenho uma amiga que diz: ‘a fila anda!’, muito engraçada ela.”

Meu amigo decidiu mergulhar. Disse que sentia muito calor. Tirou a roupa, ficou apenas de sunga e entrou n’água. Voltou-se pra mim, jogava água pra cima, como se me convidasse a entrar. Soltei a canga, deixei-a sobre a cadeira e corri na direção dele.

Nenhum comentário: