O tempo passou e nos separamos. Não sei o motivo. Na vida, é
assim, tudo é efêmero, tudo um dia acaba. Mas há um mês recebi uma mensagem
dele, dizia que ficaria muito feliz em me encontrar. Respondi perguntando como
ele estava passando e o que desejava.
“Tenho um presente pra você”, falou.
“Um presente?”, que bom.
Disse que era surpresa, não podia me dizer. Marcamos, então
o encontro.
Ele veio à minha cidade, chegou numa terça-feira pela manhã.
Como eu continuava morando no mesmo lugar, não foi difícil encontrar-me.
Logo ao chegar, abriu os braços e me abraçou demorado. Beijou-me.
Enfim, entregou-me o presente. Era uma linda canga, toda colorida, bordada em
alguns pontos.
Enquanto eu abria o presente, ele começou a contar alguns
casos engraçados, acontecidos com ele nos últimos anos. Quando ficou em
silêncio, ainda com um ligeiro sorriso no rosto, agradeci o presente e o beijei
mais uma vez.
“O que trás você aqui, afinal?, eu estava curiosa.
“Saudades”, respondeu de pronto.
“Nem lembro por que terminamos”, deixei escapar.
“Nem eu.”
“Tenho uma história engraçada pra contar”, eu disse.
Ele, como sempre gostou de ouvir minhas histórias, pediu que
eu continuasse.
“Tenho ido muito à praia, você sabe como gosto, e fica logo
aqui em frente. E tenho ido nua!”
Ele fez cara de espanto.
“Lógico que não totalmente nua, mas com um biquíni bem
pequeno, você me conhece. Outro dia, veio um vendedor de cangas oferecendo-me
uma. Acho que ele me vê sempre atravessando a rua de biquíni, resolveu oferecer-me.
E ficou naquele papo de vendedor, olha que linda essa, faço baratinho pra
senhora, e olha mais essa. Vez ou outra olhava minha nudez, mas queria mesmo
era vender a canga. Eu disse que iria pensar, que no dia seguinte talvez
comprasse. Ao encontrar-me dias depois, insistiu de novo. Acabei comprando duas
cangas, muito bonitas por sinal. E pra completar a história. Tenho um namorado,
sabe, ele adora me ver enrolada numa canga, e pede pra que eu não use nada por
baixo. Lógico que tudo isso acontece dentro de casa. Eu ainda digo a ele é
melhor eu ficar nua pra você! Mas ele prefere que eu surja enrolada numa canga,
depois desamarra, e vem a hora do prazer.”
Meu amigo não mudou sua fisionomia, apesar da história do
namorado.
“Agora você tem mais uma canga pra representar a fantasia de
seu namorado, e muito mais bonita”, acrescentou.
Sentamos e conversamos. Após meia-hora ele propôs darmos uma
volta. Saímos pra beira da praia. Como queria agradá-lo, enrolei no meu corpo a
canga que me deu de presente.
“Hoje não tem quase ninguém na praia”, observou.
“Terça-feira é assim mesmo. Aqui só tem gente de sexta em
diante.”
Andamos a orla toda, um quiosque estava aberto. Meu amigo
comprou uma cerveja.
“Você não bebe?”, perguntou. Aceitei um suco.
“Você vai embora hoje?”, perguntei depois de um tempo.
“Acho que sim, vim ver você, posso ficar mais algumas
horas.”
Lembramos os velhos tempos, mas ele não tentou me
reconquistar, não falou nenhuma palavra que levasse a esta interpretação. Nem tentou
tocar-me o corpo.
Num determinado momento, sugeriu:
“Você, com essa beleza toda, deve arranjar muitos
namorados.”
“É, até que não é difícil, mas sabe como são as pessoas
daqui, não são muitos fiéis.”
“E você é fiel?”
“Tento ser, mas às vezes, até que dá uma vontade de brincar
com outro.”
Ri muito depois das minhas próprias palavras.
Continuamos nosso passeio. Ele então me convidou.
“Posso ficar o dia inteiro, você aceita almoçar, daqui a
pouco?”
“Claro que aceito”, virei pra ele e fiz uma careta.
O sol estava brando, o vento suave, as ondas explodiam ao
longe. Meu amigo olhou tudo aquilo e, tenho certeza, lembrou o tempo quando
vivia ao meu lado.
Ainda enquanto andávamos pela beira da praia, perguntou:
“Como vão os livros?, tem lido muito?”
“Nem tanto”, respondi torcendo o sorriso, “preciso ir à
biblioteca. Sabia que aqui há uma boa biblioteca?, já não vou lá faz tempo.”
“Trouxe um livro pra você. Pelo menos por enquanto não vai
precisar da biblioteca. Quando voltarmos à sua casa, entrego, está na mochila.”
“É sobre o quê?”
“Um romance, uma história que começa em M. e acaba no Rio de
Janeiro. Uma espécie de livro de amor misturado com trama policial. Uma mulher
ama um rapaz mais jovem do que ela. Ele desaparece e ela vai atrás, quer saber
o que aconteceu. Durante este percurso, ela descobre outros fatos. É interessante
chama-se Se houvesse sol.”
“Deve ser interessante”, chamei a atenção, “um livro
ambientado em M., jamais soube de qualquer livro que se passa em M. Há grupo de
poetas que se reúnem uma vez ou outra naquela cidade, alguma antologia de uma
poesia muito convencional, mas livro ambientado em M., nunca soube.”
“Existe sim, talvez porque a autora não seja muito
conhecida. Ela, inclusive, tem outro livro ambientado em M. e em Rio das
Ostras.”
Chegávamos próximos à praça da Baleia. Meu amigo tirou o
telefone do bolso e olhou as horas, quase meio dia.
“Você acha cedo para almoçar?”, perguntou.
“Não, está bom agora.”
Entramos num dos restaurantes que bordeiam a praça. Na porta
havia uma tabuleta com os pratos do dia. Paramos durante alguns instantes
e lemos as informações.
“Hum, vamos pedir um robalo em postas.”
Sentamos, o garçom não demorou a aparecer. Meu amigo fez os
pedidos e continuou falando sobre literatura.
“Há algumas pessoas pedindo que eu escreva sobre seus
livros. Aceito, consigo publicar, mas quero mesmo é publicar dois romances que
tenho guardado.”
“Por que não publica?”
“Não é tão fácil assim. Na internet, há alguns sites que
ajudam na elaboração de e-books, autopublicações etc., mas quero mesmo publicar
por uma editora que faça a distribuição.”
“Lembra?, quando morei em M. era uma dificuldade formar um
leitor de literatura. Por mais que eu tentasse no meu trabalho de bibliotecária,
eram poucos os resultados.”
“Houve algum resultado?”, perguntou enquanto tomava um gole
de suco de laranja, que o garçom acabava de trazer, “se você conseguiu formar um
leitor, já está ótimo o resultado.”
Sorri, enquanto abria um tablete de manteiga para passar
numa torrada. Esperávamos que nos trouxessem o prato principal.
“Qual a função da leitura no mundo de hoje?”, fiz a pergunta
de surpresa.
“Não sei”, respondeu, “acho que a palavra função não é boa, parece
algo do mundo industrial; a leitura é um prazer, um meio de conhecer o mundo,
de usufruir da imaginação alheia. Dependendo do livro, também é um meio de
elaborar questões. Mas fiquemos no prazer, no divertimento. É tão bom ler um
livro interessante.”
“Hoje vejo gente olhando o celular o tempo todo, vendo
fotos, vídeos que os amigos enviam, até estou começando achar a leitura
impossível, pelo menos pra algumas pessoas.”
“Há muita coisa concorrendo com a leitura, mas ela é
importante. O livro que eu trouxe pra você apresenta essa questão, a
concorrência da leitura com outros meios de transmissão de histórias.”
O garçom chegou com o peixe assado. Era enorme, rodeado de batatas
cozidas e alguns pedaços de tomate. Colocou-o no centro da mesa e começou a nos
servir. Primeiro a mim, depois ao meu amigo. O empregado parecia satisfeito em
distribuir aquele prato a nós dois. Antes de afastar-se, disse que o
chamássemos caso precisássemos de mais alguma coisa.
O almoço transcorreu na mais pura satisfação. Até mesmo
parecia o tempo em que vivemos juntos. Saboreamos o peixe, mantendo-nos em
silêncio enquanto comíamos. Somente quando acabávamos é que voltamos a falar
sobre um ou outro assunto banal. Meu amigo sabia gozar as coisas boas da vida,
e aquele almoço era uma dessas coisas.
“Você continua o mesmo”, cheguei a falar.
“O mesmo?”, perguntou ainda mastigando.
“Você gosta do silêncio na hora da comida.”
“Como os gregos da antiguidade, eles também amavam saborear
as refeições, nãos gostavam de conversar nem de música no momento em que
comiam.”
“Ah, você sempre com seus exemplos, quero sabe se as
mulheres sentavam à mesa ao lado deles.”
“Quem sabe, fala-se muita bobagem atualmente.”
“Que tal saborear um sorvete?”, sugeri ao olhar ao lado uma
mulher que comia um com calda de caramelo.
“Ótima ideia, vamos completar toda essa gostosura.”
Meu amigo pediu um sorvete de coco; eu, um de morango. Ambos
com calda de caramelo. Demoramos, esperamos os pedaços de frutas dissolverem-se
dentro de nossas bocas, junto com o creme que, pouco a pouco, tornava-se uma
espécie de líquido. Depois que terminamos, ele pagou a conta, agradecemos e
saímos. Continuamos nossa caminhada pela beira da praia.
“Que tal irmos à praia, vamos pedir um guarda-sol e duas
cadeiras na Tocolândia”, sugeriu.
“Será que aguento?”, perguntei já demonstrando o efeito do
almoço, o sono sempre me capturava naqueles momentos.
“Durma debaixo do guarda-sol, recoste a cadeira enquanto
aprecio o mar.”
“Quando você morou por aqui, não apreciava tanto a
paisagem.”
“É a velha história, a gente sente depois que perde.”
Sorri, aceitei seu convite. Caminhamos à Tocolândia.
Conseguimos o guarda-sol e duas cadeiras de praia. Descemos
a areia até ficarmos a mais ou menos vinte metros da linha d’água. Abrimos a
cadeira e eu me coloquei sob a sombra. Fechei os olhos ligeiramente, como se cochilasse.
Meu amigo sentou e permaneceu silencioso. Acho que passaram quase quinze
minutos sem que nos dirigíssemos um ao outro. Fui eu que retomei o diálogo.
“Você sabe que houve um crime, aqui na região?”
“Não, não ouvi falar.”
“Uma mulher foi assassinada.”
“Sério?”
“Você acha que eu ia brincar com essas coisas?”
“Encontraram o criminoso?”
“Vou falar primeiro sobre o que aconteceu”, eu queria mostrar
o motivo do crime.
“Ok.”
“Ela morava sozinha, trabalhava em M., aparentemente era
alguém independente. Apareceu morta dentro de casa. Há rumores de que ela
recebia alguns homens, mas há muita fofoca por aqui.”
“E a polícia?”
“Você sabe como é a polícia, ela não investiga.”
“Vocês vão deixar por isso mesmo? O fato põe em perigo todas
as mulheres.”
“Claro, mas a quem vamos recorrer?, estamos numa cidade
muito masculina, as vítimas são consideradas culpadas. Caso uma mulher queira
viver livre, trepando com que deseja, ela é a culpada.”
“Você não sente medo?”
“Não, não sinto”, falei resoluta. “Mas, aqui, para ter
segurança, é preciso de um homem. É um absurdo, não?”
Ele olhava o mar, parecia contente a apreciar a paisagem.
“Agora vamos pra um assunto mais leve,” falei.
Ele me olhou, sorriu.
“Ainda bem que há coisas boas em você.”
“Sabe que um rapaz, deve ter vinte e poucos anos, vive me paquerando.”
“E o que tem isso?”
“Sou quase vinte anos mais velha que ele, é muito tempo.”
“Nada disso, não há idade para o amor”, afirmou alegre.
“Você acha que alguém de vinte e poucos anos sabe o que é o
amor? Se a gente, de mais de quarenta, ainda não sabe...”
“Conta como foi a aventura.”
“Não houve aventura. Quando venho à praia, ele sempre
aparece, fica me olhando. Pediu um cigarro uma vez; de outra, pediu pra ler um caderno do jornal que eu trouxera pra praia. Emprestei. No final perguntou se
eu não entrava n’água. Muito engraçado.”
“E o que você falou?”
“Que sim!”
“Então a coisa foi boa.”
“Só uma vez. Disse a ele para não se achar o tal.”
“É o seu namoradinho?”
“Não!”
“Entendi.”
“Tenho uma amiga que diz: ‘a fila anda!’, muito engraçada
ela.”
Meu amigo decidiu mergulhar. Disse que sentia muito calor.
Tirou a roupa, ficou apenas de sunga e entrou n’água. Voltou-se pra mim, jogava
água pra cima, como se me convidasse a entrar. Soltei a canga, deixei-a sobre a
cadeira e corri na direção dele.
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