terça-feira, dezembro 15, 2020

Refúgio

No final de Cavaleiros, quando havia o quebra-mar, certa vez encontrei um refúgio. Ficava a cinquenta metros do que seria o entroncamento com a Praia do Pecado, e dois metros abaixo da calçada. Quem passeava pelo local não dava por sua existência, porque a tendência era olhar na direção da beira da praia. Acho que houve, ali, um quiosque, por isso alguém escavou a parede, talvez com a intenção de guardar garrafas ou outro tipo de mercadoria. Quando o encontrei, estava deserto. Como estou sempre ali, num canto tranquilo da praia, onde tomo sol e posso ler revistas e livros, acabei descobrindo-o. Fui investigar. Quem o utilizou chegou a fazer uma entrada lateral, esculpiu dois degraus na pedra. No total devia ter nove metros quadrados. Havia ainda uma espécie de entrada de luz, na verdade uma fenda na pedra. Caminhantes que olhassem de longe só o descobririam se muito meticulosos. Era preciso aproximar-se, agachar-se, só então se descobriria a entrada.

Algumas amigas perguntam o meu local predileto da praia, se em Cavaleiros ou no Pecado. Evito revelar. Quando muito, digo que tomo banho de mar em frente ao Country. Mas não é verdade. Não quero ninguém a me perturbar. Amo a liberdade, a beleza do mar e o calor do sol, principalmente na meia estação. Por isso, estou sempre sozinha. Às vezes, aparece alguém para conversar, contar um caso, ou destilar suas mágoas. Permaneço, porém, impávida, não falo nada de mim, não conto meus desejos nem o que faço. Lógico que observo se há alguém que me agrade. Quem sabe um homem para apreciar de longe, ou um namorado sem grandes envolvimentos. Tenho conhecidas que falam demais, contam seus problemas e frustrações. Há mesmo quem conte seus casos com os homens, como Nara. Diz que já trepou com não sei quantos, aqui da cidade. Procura manter as aparências, tem cara de quieta, mas age de modo contrário. Seu último namorado era um homem casado. Vinha apanhá-la na praia, levava-a a um hotel e depois a devolvia à mesma praia. Quando o tempo muda e começa a ventar e não é possível mais a praia?, cheguei a perguntar. Aí tenho de me virar. Talvez ela, caso descubra o esconderijo, entre nele com um homem. Para namorar, é claro. Sorrio e volto à minha leitura.

Entrei no refúgio e pude verificar se estava sujo, ou cheio de areia. Havia areia, sim, trazida pelos dias de vento forte, mas, para quem ama a liberdade, era possível esconder-se, guardar algo, ou mesmo trocar de roupa.

Numa quarta-feira cheguei à praia às seis e trinta da manhã, para caminhar e dar um mergulho. Depois de andar de uma ponta a outra, fui ao esconderijo. Queria saber se alguém estivera lá. Qual minha surpresa quando descobri uma bolsa de butique, num dos cantos, dessas que se ganha quando se faz a compra de uma roupa cara. Abri-a com cuidado, temendo qualquer armadilha. Encontrei um vestido, de fazenda fina, acho que da mesma marca escrita na bolsa. Fiquei a imaginar quem o poderia ter deixado ali, correndo o risco de ser encontrado e levado. Mas não o levei. Enfiei-o de volta na bolsa e a coloquei no mesmo lugar. Pensei esconder-me e ficar à espreita da visitante que viria buscá-lo. Mas não pude, e acho que não teria paciência. Mergulhei, na parte da praia onde começa o Pecado. Depois, juntei minhas coisas e parti. Tinha de trabalhar.

Numa quinta-feira, por volta de meia-noite, eu deixava o Ilhote, onde havia encontrado uma amiga. Comemos, bebemos e colocamos nossos assuntos em dia. Ela viera de carro e eu também. Na hora de partir, porém, decidi ir ao tal esconderijo. Seria perigoso? Se fosse, eu não levava em conta o tal perigo. Dirigi até a ponta da praia. Ao parar, permaneci ainda dentro do carro durante um bom tempo, queria me certificar se havia alguém ao redor. Saí do automóvel, todo o cuidado era necessário. A lâmpada de um poste, a cinquenta metros, orientava o caminho, mas, ao mesmo tempo, revelaria minha presença. Caminhei na direção contrária, onde as sombras eram mais densas e me protegiam. Agachei-me quando cheguei junto ao refúgio, olhei mais uma vez em volta e coloquei a cabeça na pequena entrada. Não havia viva alma. Iluminei o celular e entrei. Verifiquei todos os recantos. Vi a bolsa, mas era outra, menor, e a loja estampada no papel era de roupas de banho. Direcionei a luz ao interior da bolsa e descobri o que ela guardava. Um biquíni de praia, duas peças, muito pequenas, manequim talvez 40 ou 42. Caberia no meu corpo, poderia tê-lo tomado para mim, estava ainda envolto naquele papel fino que as vendedoras utilizam para proteger a peça. Mas deixaria suspeita. Alguém teria descoberto o esconderijo. O jogo terminaria. Deixei tudo no local e parti. As conclusões ficariam para o dia seguinte.

Passaram-se duas semanas. Vieram várias frentes frias, o tempo fechou, choveu durante vários dias. No primeiro dia de sol, o calorzinho da manhã convidou-me à praia. Primeiro, a caminhada; depois, o mergulho. Mas não fui ao esconderijo. Sentei e li uma revista. Um homem veio me pedir fogo. A noite de quinta-feira, no entanto, aprontou-me duas surpresas. A primeira: a amiga que marcou encontro comigo no Ilhote não apareceu. Telefonei continuamente, mas o telefone dava caixa postal. Fiquei sozinha no restaurante. Tal atitude despertou interesse numa mesa onde quatro homens jantavam. Um deles, duas dezenas de minutos depois, passou por mim e tentou falar algo em meu ouvido. Como não dei atenção, foi embora. Depois, alguém deixou um pedaço de papel. Não cheguei a abri-lo. Os homens eram barulhentos e gesticulavam muito, tinham aspecto de que trabalhavam nas empresas de petróleo. A cidade, à noite, fica cheia deles, nos bares e restaurantes. Quando foram embora, permaneci mais um pouco, tentei ainda falar com Marília, a tal amiga, mas continuei sem resposta. Tomei ao todo duas taças de vinho tinto e fiquei apenas na entrada, carpáccio de salmão. Quando decidi partir, lembrei-me do refúgio. Como já estivera lá numa noite, resolvi dar outra olhada. Agi da mesma forma como da primeira vez. Estacionei o carro num local escuro, desci à areia pelo lado contrário à iluminação da rua, andei próxima ao muro de proteção à maré alta. Assim, ninguém me veria. Quem vem na calçada tem a tendência de olhar à beira d’água e não para baixo. Ao chegar perto do refúgio, o poste próximo ficou às escuras. Dei a volta, até a pequena fenda de entrada de ar. Escutei, então, gemidos de mulher. Depois, pude distinguir o que ela dizia. Senta, vai ser melhor assim, pedia, deixa que eu vou por cima, cavalgo sobre você, isso, assim, assim, mas, puta merda, você não trouxe a camisinha, isso não pode acontecer, mas vai, tenta não gozar dentro, por favor, isso, ai, está bom assim, que gostoso, olha que vou perder a cabeça, mas você não perde, não, por favor, sem camisinha é um problema, mas vai, vai, se segura. A voz dela era clara, cheia de desejo, o homem nada dizia. Afastei-me trinta metros e deitei-me sobre a areia. Quando saíssem, queria saber de quem se tratava. Mas, dez ou quinze minutos depois, apenas o homem saiu. Escutei-o subir ao calçadão e desaparecer na escuridão. Depois, ao longe, o motor de uma moto mostrava que ele se afastava. A mulher só, lá dentro, deixava-me curiosa. Caminhei de novo e olhei pela fenda. Ela fumava, a claridade do cigarro produzia algumas sombras e dava para ver o seu perfil, ainda estava nua. Em um momento se levantou, deu dois passos e chegou à saída do refúgio. Atirei-me para trás, encolhida. Ela caminhou até a beira e entrou na água. Tinha o cabelo muito curto e pareceu mesmo nadar um pouco. Num ímpeto, entrei no refúgio, olhei o que havia lá dentro. Nada. A mulher ficara sozinha, e sem o que vestir. Voltei-me e escapei. Deitei-me novamente no mesmo lugar onde me escondera assim que chegara. Depois de um quarto de hora, ela voltou ao refúgio. Foi então que decidi partir. Ela vivia uma situação perigosa, e eu não queria me misturar a tudo aquilo. Cheguei a correr dali, atingi o local onde estava o meu carro, ofegante.

Enquanto dirigia de volta, pensei que poderia ter ido a ela e oferecido ajuda. Mas será que ela estava em dificuldades, será que desejava ajuda? Há gente para tudo nesta vida. Decidi esquecer a tal história.

No dia seguinte, Marília me telefonou, pediu mil desculpas por ter faltado ao encontro, disse que depois me contaria o que aconteceu. Uma ou duas semanas mais tarde, encontrei-a ao acaso, no calçadão, estava bonita, sempre de cabelo bem curto, parecia um rapaz. Desculpou-se mais uma vez, mas não tocou no assunto.

Meses depois começaram as obras de remodelação da orla marítima de M. O tal refúgio não demorou a desaparecer.

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