Visitei uma amiga que mora num desses prédios imensos, em Copacabana, construção típica do bairro. Ao nos despedirmos, ela falou em voz baixa:
"Quando você dobrar o corredor e passar na frente do apartamento que fica logo à direita, não olhe nem pare, o homem que mora ali é perigoso."
"Como assim?" quis saber.
"Já tentou agarrar várias mulheres."
"Ah, que besteira; segrede-me, será que você não gostaria de ser agarrada?"
"Sim, só que não por ele; é nojento."
Segui em direção ao elevador. Ao passar pela porta proibida, fisgou-me intensa curiosidade. Dizem que nas despedidas não se deve olhar para trás, e que, da mesma forma, deve-se passar ao largo de algo que nos tenta. Mas, como gosto de aventuras, quis mergulhar em mais uma.
Na verdade, o que pude ver em primeiro plano foi um piano. Estaquei junto à porta e admirei o nobre instrumento musical. A seguir, percebi que a casa era arrumada ao extremo: um pequeno sofá, uma mesa, dois quadros na parede de fundo. Pensei não haver ninguém. Quem sabe o perigoso ser masculino saíra e esquecera a porta aberta, ou mesmo armara o alçapão.
"Que deseja a belíssima senhora?"
Apareceu-me o homem. E era belo. Alto, um tanto desgastado na face pelos anos, mas os cabelos eram branquíssimos e limpos. Refiz-me da surpresa.
"Desejo uma música."
"Tenha a bondade", conduziu-me aposento adentro, ofereceu-me cadeira confortável.
"Alguma preferência?", perguntou sério.
"Comecemos pelos clássicos: Chopin!", pronunciei com entusiasmo.
"Comecemos?", repetiu, "então teremos um tipo de concerto".
"És um cavalheiro", completei.
As teclas soaram graves, seus dedos percorreram a parte baixa do instrumento para depois se esmerarem nos sons mais altos. Reparei que as mãos do pianista eram grandes e largas, pareceriam grosseiras se fossem admiradas longe dali. Mas sobre marfim quase níveo, intercalado de bemóis e sustenidos, corria ligeira, hábil, percebia-se que ele fora talhado para tal arte. Ouvi com prazer a primeira peça. Ao terminá-la, sugeri:
"Que tal fecharmos a porta? Assim o concerto se torna mais reservado."
"Oh, queira me desculpar", de pronto levantou-se, fechou a porta e voltou à banqueta. Espraiou as mãos e esperou nova sugestão.
"Beethoven", sussurrei.
"Não seria um tanto trágico?"
"Depende do momento e da peça", sentenciei.
Suas mãos deslizaram de novo, lançando-me à deriva, imersa num mundo de som e cor.
Quando terminou, perguntou:
"Que tal Evans?"
"O Bill?"
"Sim, ele; as big bands eram compostas de pessoas alegres, viviam em estado de contínuo êxtase", fez a observação enquanto investiu com rapidez no teclado.
Executou uma série de peças de jazz; ao terminar, ensaiou uma de Jobin.
Não hesitei em aplaudir aquele homem, que tocava com honestidade.
"Quero oferecer à senhora um café", lembrou-se a tempo: "à senhora que nem mesmo sei o nome..."
"Ah, queira me desculpar, não me apresentei. A seu dispor e ao dispor de sua arte: Margarida."
"Oh, uma flor!"
"E talvez das menos nobres", completei.
Caímos na gargalhada.
"Não diga isso, todas as flores são nobres."
Desapareceu em direção à pequena cozinha. Fiquei a admirar a cortina e a paisagem exterior. Daquele décimo andar via-se uma floresta de edifícios. Pude perceber também os ruídos externos que a música deixara escondidos.
"Cara Margarida", pronunciou com ligeiro sorriso enquanto me entregava uma xícara de porcelana. Acompanhava o café, prato de sobremesa com alguns biscoitos champanha.
"Seu apartamento é muito aconchegante."
"Agradeço a sua boa vontade, sei que as coisas por aqui precisam ser melhoradas, mas, a senhora me entende, vida de aposentado...", e fez um gesto vago com as mãos. Acompanhou-me no café.
Após alguns segundos de silêncio e expectativa, sua voz, como música melodiosa, soou suave:
"A senhora me entende, não leve a mal a maledicência dos vizinhos; talvez algo de negativo a meu respeito já tenha chegado a seus ouvidos", repousou a xícara e por fim sorriu.
"Não se preocupe, também segundo alguns não tenho boa fama."
"Veja", continuou "estou velho; o que me resta? Talvez a música e a companhia de poucos amigos."
"Se tens tudo isso, és um felizardo; a música e amigos. É tudo que muita gente deseja."
"Tenho alguma tristeza, pois pouca gente me dá atenção."
"Pois não acabaste de dizer que tens amigos?"
"Poucos, na verdade, coisa de dois ou três."
"É tudo e, se pensas bem, não precisas de atenção, és um concertista, as pessoas é que perdem por não atentarem em ti."
"Mas vez ou outra sou abatido por intensa melancolia, aí fico sem tocar, às vezes até esqueço algumas peças."
Voltei-me à parede, percebi um bonito diploma emoldurado. Levantei, queria ver seu conteúdo.
"Oh, bons tempos, toquei com a orquestra sinfônica."
"A do teatro?", perguntei.
"Esta; entre outras; mas o diploma é da do teatro."
"Não há razão para sofreres, és músico, és feliz."
"E a respeito das mulheres..."
"Que tem as mulheres?", interrompi.
"São raras e distantes."
"Como as flores...", falei e ri de novo. Ele gostou do argumento.
"Como a senhora me inspira!"
"Não sou eu, tens fonte de inspiração própria."
Demonstrei intenção de partir.
"Oh, não vá, sua presença me causou extremo ânimo e felicidade."
"Podemos nos ver mais vezes; virei visitá-lo."
"Deixe que eu lhe ofereça mais uma música."
"Então eu canto", falei.
"Que surpresa!, também cantas?"
"O que não faço nessa vida?", atalhei, "mas... deixa que eu começo."
Pus-me a cantar Smile, aquela velha canção imortalizada por Sinatra, que tem entre seus autores Charles Chaplin. Iniciei à capela, logo depois seguida pelo correr suave de suas mãos sobres as teclas. Confesso que foi o ponto alto do fim de tarde. Ao terminarmos a canção ele, contagiado, aplaudiu-me.
Ao levantar-me para partir, pronunciou em voz baixa, quase um segredo:
"Não demore a voltar, sofro muito."
"No seu lugar, eu não sofreria. És um artista, tocas de modo maravilhoso, vestes-te bem, podes freqüentar bons lugares."
"Sabe, a presença da senhora me fez pensar em algo novo. De agora em diante, tentarei encarar a vida de modo positivo. Veja o que me aconteceu em pleno sábado à tarde; surge-me, não sei de onde, a senhora, que é tão bonita, que parece demonstrar intensa paixão pela vida, alguém que possui luz interior, e que ainda canta maravilhosa, na verdade uma flor..."
"A vida é boa, é bela, basta que se saiba viver; muitas pessoas perdem essa oportunidade; quando se tem esse espírito, as outras coisas vêm como acréscimo", eu disse e lhe beijei a face. Deixei sobre a pequena mesa o número do meu telefone.
Dali em diante, encontramo-nos várias vezes. Em algumas ocasiões, sob o som do piano; em outras, em restaurantes aconchegantes, na Zona Sul.
Nunca pude comprovar o que minha amiga dissera. Se havia alguma pessoa perigosa nessa história não era ele, mas eu. Um verdadeiro vulcão.
"Quando você dobrar o corredor e passar na frente do apartamento que fica logo à direita, não olhe nem pare, o homem que mora ali é perigoso."
"Como assim?" quis saber.
"Já tentou agarrar várias mulheres."
"Ah, que besteira; segrede-me, será que você não gostaria de ser agarrada?"
"Sim, só que não por ele; é nojento."
Segui em direção ao elevador. Ao passar pela porta proibida, fisgou-me intensa curiosidade. Dizem que nas despedidas não se deve olhar para trás, e que, da mesma forma, deve-se passar ao largo de algo que nos tenta. Mas, como gosto de aventuras, quis mergulhar em mais uma.
Na verdade, o que pude ver em primeiro plano foi um piano. Estaquei junto à porta e admirei o nobre instrumento musical. A seguir, percebi que a casa era arrumada ao extremo: um pequeno sofá, uma mesa, dois quadros na parede de fundo. Pensei não haver ninguém. Quem sabe o perigoso ser masculino saíra e esquecera a porta aberta, ou mesmo armara o alçapão.
"Que deseja a belíssima senhora?"
Apareceu-me o homem. E era belo. Alto, um tanto desgastado na face pelos anos, mas os cabelos eram branquíssimos e limpos. Refiz-me da surpresa.
"Desejo uma música."
"Tenha a bondade", conduziu-me aposento adentro, ofereceu-me cadeira confortável.
"Alguma preferência?", perguntou sério.
"Comecemos pelos clássicos: Chopin!", pronunciei com entusiasmo.
"Comecemos?", repetiu, "então teremos um tipo de concerto".
"És um cavalheiro", completei.
As teclas soaram graves, seus dedos percorreram a parte baixa do instrumento para depois se esmerarem nos sons mais altos. Reparei que as mãos do pianista eram grandes e largas, pareceriam grosseiras se fossem admiradas longe dali. Mas sobre marfim quase níveo, intercalado de bemóis e sustenidos, corria ligeira, hábil, percebia-se que ele fora talhado para tal arte. Ouvi com prazer a primeira peça. Ao terminá-la, sugeri:
"Que tal fecharmos a porta? Assim o concerto se torna mais reservado."
"Oh, queira me desculpar", de pronto levantou-se, fechou a porta e voltou à banqueta. Espraiou as mãos e esperou nova sugestão.
"Beethoven", sussurrei.
"Não seria um tanto trágico?"
"Depende do momento e da peça", sentenciei.
Suas mãos deslizaram de novo, lançando-me à deriva, imersa num mundo de som e cor.
Quando terminou, perguntou:
"Que tal Evans?"
"O Bill?"
"Sim, ele; as big bands eram compostas de pessoas alegres, viviam em estado de contínuo êxtase", fez a observação enquanto investiu com rapidez no teclado.
Executou uma série de peças de jazz; ao terminar, ensaiou uma de Jobin.
Não hesitei em aplaudir aquele homem, que tocava com honestidade.
"Quero oferecer à senhora um café", lembrou-se a tempo: "à senhora que nem mesmo sei o nome..."
"Ah, queira me desculpar, não me apresentei. A seu dispor e ao dispor de sua arte: Margarida."
"Oh, uma flor!"
"E talvez das menos nobres", completei.
Caímos na gargalhada.
"Não diga isso, todas as flores são nobres."
Desapareceu em direção à pequena cozinha. Fiquei a admirar a cortina e a paisagem exterior. Daquele décimo andar via-se uma floresta de edifícios. Pude perceber também os ruídos externos que a música deixara escondidos.
"Cara Margarida", pronunciou com ligeiro sorriso enquanto me entregava uma xícara de porcelana. Acompanhava o café, prato de sobremesa com alguns biscoitos champanha.
"Seu apartamento é muito aconchegante."
"Agradeço a sua boa vontade, sei que as coisas por aqui precisam ser melhoradas, mas, a senhora me entende, vida de aposentado...", e fez um gesto vago com as mãos. Acompanhou-me no café.
Após alguns segundos de silêncio e expectativa, sua voz, como música melodiosa, soou suave:
"A senhora me entende, não leve a mal a maledicência dos vizinhos; talvez algo de negativo a meu respeito já tenha chegado a seus ouvidos", repousou a xícara e por fim sorriu.
"Não se preocupe, também segundo alguns não tenho boa fama."
"Veja", continuou "estou velho; o que me resta? Talvez a música e a companhia de poucos amigos."
"Se tens tudo isso, és um felizardo; a música e amigos. É tudo que muita gente deseja."
"Tenho alguma tristeza, pois pouca gente me dá atenção."
"Pois não acabaste de dizer que tens amigos?"
"Poucos, na verdade, coisa de dois ou três."
"É tudo e, se pensas bem, não precisas de atenção, és um concertista, as pessoas é que perdem por não atentarem em ti."
"Mas vez ou outra sou abatido por intensa melancolia, aí fico sem tocar, às vezes até esqueço algumas peças."
Voltei-me à parede, percebi um bonito diploma emoldurado. Levantei, queria ver seu conteúdo.
"Oh, bons tempos, toquei com a orquestra sinfônica."
"A do teatro?", perguntei.
"Esta; entre outras; mas o diploma é da do teatro."
"Não há razão para sofreres, és músico, és feliz."
"E a respeito das mulheres..."
"Que tem as mulheres?", interrompi.
"São raras e distantes."
"Como as flores...", falei e ri de novo. Ele gostou do argumento.
"Como a senhora me inspira!"
"Não sou eu, tens fonte de inspiração própria."
Demonstrei intenção de partir.
"Oh, não vá, sua presença me causou extremo ânimo e felicidade."
"Podemos nos ver mais vezes; virei visitá-lo."
"Deixe que eu lhe ofereça mais uma música."
"Então eu canto", falei.
"Que surpresa!, também cantas?"
"O que não faço nessa vida?", atalhei, "mas... deixa que eu começo."
Pus-me a cantar Smile, aquela velha canção imortalizada por Sinatra, que tem entre seus autores Charles Chaplin. Iniciei à capela, logo depois seguida pelo correr suave de suas mãos sobres as teclas. Confesso que foi o ponto alto do fim de tarde. Ao terminarmos a canção ele, contagiado, aplaudiu-me.
Ao levantar-me para partir, pronunciou em voz baixa, quase um segredo:
"Não demore a voltar, sofro muito."
"No seu lugar, eu não sofreria. És um artista, tocas de modo maravilhoso, vestes-te bem, podes freqüentar bons lugares."
"Sabe, a presença da senhora me fez pensar em algo novo. De agora em diante, tentarei encarar a vida de modo positivo. Veja o que me aconteceu em pleno sábado à tarde; surge-me, não sei de onde, a senhora, que é tão bonita, que parece demonstrar intensa paixão pela vida, alguém que possui luz interior, e que ainda canta maravilhosa, na verdade uma flor..."
"A vida é boa, é bela, basta que se saiba viver; muitas pessoas perdem essa oportunidade; quando se tem esse espírito, as outras coisas vêm como acréscimo", eu disse e lhe beijei a face. Deixei sobre a pequena mesa o número do meu telefone.
Dali em diante, encontramo-nos várias vezes. Em algumas ocasiões, sob o som do piano; em outras, em restaurantes aconchegantes, na Zona Sul.
Nunca pude comprovar o que minha amiga dissera. Se havia alguma pessoa perigosa nessa história não era ele, mas eu. Um verdadeiro vulcão.
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