O fim de tarde enevoado e cinzento contrastava com as cores interiores, com o colorido das pessoas, com meus cabelos louros e meu corpo torneado. Eu passeava com um amigo no Brasília Shopping; vestia um short de stretch jeans, bem pequeno e justo ao corpo, uma curta jaqueta aberta de cor neutra, que acentuava a cintura baixa e deixava à mostra a barriguinha elegante; subindo um pouquinho, o top. Quem me surpreendia, voltava rapidamente os olhos para se certificar se tudo que via era mesmo real. Meu amigo talvez se sentisse lisonjeado; despertava inveja aos que escolheram aquela hora para estarem ali. Naturalmente pensavam que ele era um felizardo e eu, uma mulher embrulhada em pouca fita e estreito papel de presente. Faltavam três dias para o Natal. Sentamos numa das mesas e encomendamos nossos lanches. Para mim, um sanduíche do Marieta, daqueles que vem com tomates secos, rúcula e mussarela de búfala; para beber, suco de abacaxi com agrião. Ele pediu uma baguete à moda romana. Eu sorria, e ele demonstrava enorme satisfação por me ter recebido no aeroporto duas horas atrás. Com sua natural elegância, com o ar sempre despretensioso, insistira para que me hospedasse em sua casa, garantira que eu teria toda a liberdade; caso ainda quisesse, poderia acompanhar-me em alguns passeios. Pensei em contar a ele sobre o homem que conhecera na viagem, estava muito entusiasmada, mas por hora me calei; sabia que meu amigo tinha as mesmas preferências que eu, não disfarçava, mas manteria minha postura de mulher refinada. Durante aqueles momentos que corriam enquanto saboreávamos o alimento frugal, momentos prestes a escorrerem e se manterem eternizados apenas na memória, meus olhos verdes iluminavam os dele; seu rosto refletia discreta felicidade.
Ainda estava na sala de embarque quando observei um homem de terno. Ele tinha à mão um notebook, trabalhava ou consultava seus compromissos. Percebi que vez ou outra arremessava um olhar sorrateiro em minha direção. As poltronas serpenteavam pelo salão; alguns homens conversavam despretensiosos; duas adolescentes olhavam revistas e tomavam refrigerantes; uma mulher mantinha um cigarro apagado entre os dedos (talvez procurasse a área de fumantes); outro homem trazia um pequeno copo de café expresso; e eu carregava um livro, sempre trazia um ou dois na pequena bolsa de mão. Havia alguns momentos eu me desprendera da narrativa, observava o local e o aspecto das pessoas, todas prestes a embarcar, todas trazendo na face uma ponta de satisfação ou mesmo de alegria. Quando pensei em voltar ao livro, mais uma vez o homem do notebook não me desprezava. Ao embarcar, dei com ele à minha frente, íamos para o mesmo destino e, dentro do avião, aconteceu o que eu já esperava: apenas o corredor separava nossos assentos. Após guardar sua maleta na parte de cima, voltou-se para mim e, satisfeito – não poderia ser outra sua reação – sorriu. Durante todo o vôo não levantei os olhos, entretive-me na leitura de uma grande revista que comprara ainda na livraria, antes do embarque. Uma reportagem longa a respeito das mulheres da antiga RDA prendeu-me durante boa parte do vôo. Despertou-me o sorriso congelado da comissária; perguntou se eu aceitava um copo de suco.
Após deixarmos o shopping, meu amigo anfitrião levou-me para um passeio, queria mostrar-me a decoração de natal da cidade. Com seu carro deslizando quase em silêncio, conduzia-me pela esplanada dos ministérios. A noite se insinuava e as luzes recentes, ainda tímidas, piscavam em todas as cores e em várias formas. O ar frio do Planalto Central tocava minha pele, carícias de um amante que estava por vir.
Enquanto ainda transitávamos, mas agora pelo eixo rodoviário – nosso destino era uma das últimas quadras da Asa Norte – comentei de modo sucinto sobre o cavalheiro, o mais recente enamorado, o companheiro de vôo. Meu amigo irônico não perdeu a admiração e o humor:
– Você é uma mulher de sorte; se ele lhe deu o cartão, procure-o; nessa época do ano, todas as espécies de valor que habitam a cidade voam para fora; este, se está por aqui e é assim como você me descreve, não é digno de ser desprezado, é todo seu.
Sorri. Tirei o cartão da bolsa para me certifica de que ainda o tinha. Li o nome: Frederico Lucini.
– Oh, talvez alguém do corpo diplomático! Sorte sua, são ótimos os desse tipo.
Quando telefonei no dia seguinte, descobri que não era o que pensáramos, mas sim um professor da universidade. Não perguntei se era solteiro ou se morava na cidade. Não se deve querer saber tais coisas quando se tem alguém que está à inteira disposição. Marcamos um encontro. Perguntou se me podia apanhar em casa. Aceitei sem demonstrar surpresa.
O dia seguinte era sábado, vinte e dois. Os shoppings se mostravam quase intransitáveis. Filas intermináveis de automóveis, cujos motoristas procuravam onde estacionar, misturavam-se num colorido de início de festa; por incrível que parecesse, toda aquela algaravia não redundava em demais complicações, as pessoas estavam em paz consigo e o espírito das festas as tinha tomado de assalto, proporcionando a cada uma delas uma dose a mais de paciência. Muitos se apressavam para comprar os últimos presentes ou o detalhe que faltava e completaria a noite de natal.
Apanhou-me às nove da noite. Ao seu lado – ele vestia uma linda blusa aviator de listras largas azul e branca, calça clara e sapatos esporte de um marrom suave, perfeitos para o conjunto, trouxera um paletó branco, que ocupava uma parte do banco traseiro do automóvel –, eu observava o trânsito espaçado do eixo, enquanto percorríamos aquelas vias largas. Mais adiante, ele deixou o fluxo principal para fazer um grande contorno que me pareceu nos colocar na direção inversa; sem que nada me perguntasse, parou ante a um restaurante muito bonito, saltando e abrindo a porta para que eu saísse; só então demonstrou que me observava o corpo com mais atenção – eu vestia um vestido de seda fina curtíssimo, frente única.
– Será que você não vai sentir frio? – sua voz soou melodiosa.
– Se eu não me engano, há um paletó elegantíssimo no banco de trás.
Entregou as chaves a um manobrista de terno escuro que se encarregou do estacionamento, tomou-me uma das mãos. Entramos.
As mesas eram redondas e as que estavam ocupadas tinham castiçais com velas acesas; pelos cantos, abajures delicados completavam a iluminação, produzindo um efeito sutil; as toalhas e guardanapos eram de uma alvura esplendorosa.
Bebericamos dois dry Martinis, depois uma garrafa de Bordeaux. Enquanto o garçom nos trazia o couvert, composto de frios, pães e algumas pastas, meu amigo, num rosto de continua felicidade, começou a me falar sobre o que fazia e de suas preferências literárias; era especialista em Proust, inclusive tinha estudos e textos publicados sobre o autor francês.
– Você já nadou contra a corrente?
– Não nado muito ultimamente – respondi; levava à boca uma rodela de torrada envolvida em uma pasta verde clara.
– Não falo no sentido de entrar no mar ou num rio propriamente.
– Ah, entendo.
O garçom se aproximou e pôs-se em posição de que aguardava nossos pedidos. Tomei a taça com a mão direita e a levei mais uma vez aos lábios; sorri para o homem que nos aguardava.
Meu recente companheiro pediu-lhe um tempo maior, estendeu o grande cardápio e deixou a mim a escolha do prato principal.
Após eu ter feito o pedido, o garçom se retirou e continuamos a conversa. Foi ele que voltou ao assunto.
– Às vezes todos vão para um lado, mas nós não queremos acompanhá-los, desejamos outro caminho, mesmo que neste envolvam-nos apenas a penumbra da noite, o brilho das estrelas, talvez um ou outro ruído do vento sibilando sobre a vegetação ou o farfalhar de uma ave noturna.
– Ou o prateado de uma lua crescente que surja lá pelas três da madrugada, tendo como cúmplice apenas a brisa tímida e esquiva que nos tateia a pele branca, o corpo por inteiro descoberto...
– Isso, isso, você me compreende – demonstrava entusiasmo.
– Por enquanto – sorri irônica.
– Você fala a mesma língua que eu. Veja, há momentos em que todos parecem estar de acordo com um comportamento, um modo de vestir, ou um modo de se divertir, ou mesmo um modo de ser, mas nós não concordamos, preferimos outros caminhos.
– Isso – assegurei –, preferimos um caminho tão largo que chegam a nos condenar pela escolha; dirigem-se a nós como se estivéssemos tomando atitudes que fariam o mundo desabar sobre nossas cabeças.
Ele riu deliciosamente de minhas últimas palavras; ainda repetiu:
–... atitudes que fariam o mundo desabar sobre nossas cabeças! , essa é ótima, vou anotar...
Com um pequeno garfo, peguei num dos pratos menores uma pequena azeitona e a levei de modo suave à boca. Ele olhava-me com interesse; observava, minucioso, o colorido de meus lábios.
– Você pode dar um exemplo?
– Eu? – fiz-me de dissimulada –, mas são tantos.
Rimos.
– Você também acha que todo ser humano tem um lado... , vamos dizer assim, um lado que poderia ser chamado de escuro? – perguntou-me ao mesmo tempo que percebeu a chegada do garçom com uma enorme bandeja.
– Escuro? Como uma noite em que não há lua nem estrelas, onde só existe o rugir do mar e um vento interminável a nos açoitar?
– Você é ótima, adora poesia, não?
– Oh, adoro, mas isso é má poesia; você falava sobre o lado escuro de cada um, continue, por favor.
Esperou que o homem acabasse de nos servir; colocou mais um pouco do vinho na minha taça, encheu também a sua; quando nos vimos apenas os dois, falou:
– As pessoas condenam determinadas ações, determinados comportamentos; você se sentiria disposta a transgredi-los?
– Já entendi. Você quer saber se eu me sentiria culpada por ir na contramão?
– Isso mesmo, boa palavra, contramão.
– Mas é do que eu gosto mais.
– Uma amiga certa vez me falou – ele continuava –: “há alguns comportamentos que devemos seguir; por exemplo: se estamos num lugar público não será normal eu agarrar você e permanecer grudada à sua boca num beijo demorado enquanto a comida esfria à nossa frente; nem tirarmos a roupa e fazermos amor numa festa diante de outros convidados, ou num salão público, mesmo que a poucas luzes...”
– Sua amiga não sabe o que é viver. Às vezes, o principal é a nudez em público, embora eu confesse que fique um tantinho arrepiada.
Rimos juntos de novo e durante um bom tempo saboreamos a comida em silêncio.
Após uma hora e meia ou duas horas, já estávamos no apartamento dele. Ofereceu-me uma dose de vinho do Porto. A bebida combinou perfeita com o momento. Depois, num longo sofá de cor creme, diante de alguns quadros e estátuas, duas velas sobre dois longos castiçais e a paisagem trêmula, cintilante, que podia ser vista através da varanda, ele me abraçou, deslizou as mãos por minhas costas, aproximou a boca à minha face e me envolveu num longo beijo.
– Sabe o que eu queria mesmo?
– O quê? – esperou-me curioso, com a face franzida, como se eu lhe fosse revelar um grande segredo.
– Eu queria esse beijo entre pratos e talheres, à luz da pequena vela do restaurante de algumas horas atrás.
– Eu também queria uma coisa – disse fingindo intensa frustração –, eu queria que você tivesse vindo nua ao meu encontro...
– Eu sempre estive nua; você não viu o tanto que as pessoas me olhavam? O que elas procuravam? Tentavam enxergar o meu vestido...
Abracei-o, depois o soltei e pedi que fechasse os olhos. Quando voltou a me olhar, terminei a pergunta:
– Veja se elas não tinham razão, você vê alguma roupa sobre meu corpo?
Deixei-o quase louco. Levantou-se, abraçou-me ainda um tanto incrédulo, enquanto eu, também de pé, ia em seus braços somente sobre os sapatos, com a pele suave a roçar-lhe o tecido macio das roupas.
No dia seguinte encontrei-o de novo. Marcamos às onze da noite. Fiz questão que me apanhasse na garagem do prédio onde eu me hospedara. O local era de pouca luz e ao vê-lo parar o carro, escondi-me. Esperei que me procurasse. Bati então na carroceria, no lado do passageiro, surpreendendo-o. Abriu a porta e esticou os olhos sobre meus seios.
– Que roupa linda, você está maravilhosa!
– Só consegue ver o meu vestido quem não tem nenhum pecado.
– Creio que acabo de ser perdoado.
Enquanto sentava e prendia o cinto, perguntei:
– Você ainda traz aquele paletó?
– Está no mesmo lugar.
Olhei entre os bancos, ele jazia sobre o banco traseiro.
– Se esfriar, você me empresta.
Rodamos no silêncio da noite. Ele guiava e às vezes olhava sorrateiro às minhas pernas. Quando paramos, assim que saí do carro, vestiu-me. Um modelo e tanto.
Naquela noite, jantamos num restaurante em que nos serviram pratos plenos de sabores exóticos e taças de champanhe francês, acompanhados de música de piano ao vivo. O ambiente era tão agradável, que não nos demos conta do passar das horas. Vez ou outra eu enlaçava sua cabeça e o beijava na boca; um beijo interminável.
Já na madrugada, quando trafegávamos pelas vias semi-desertas da capital, pedi que namorássemos no frio aconchego de seu automóvel, num dos estacionamentos que ficava diante do prédio de meu anfitrião.
– Acho melhor irmos pra minha casa – disse ele –, lá o conforto é maior e é mais seguro.
– Você não disse que às vezes desejamos nadar contra a corrente, que temos um lado escuro? Então, amor, esse é um dos lados que me põe na contramão!
– Mas isso é perigoso, tanto mais nos dias de hoje...
– Oh, não diga, existe algo mais perigoso do que sair pelada de casa e ficar agarrada ao namorado pelo resto da noite num estacionamento.
– O quê?
– Trepar com um desconhecido logo na primeira ou na segunda saída.
– É; você tem razão.
– E logo com alguém que nem me disse qual é o seu lado escuro...
– Certo, também tenho meu lado escuro, também gosto de, às vezes, ir contra a correnteza.
Logo que estacionamos, pulei sobre ele e falei baixinho:
– Vai, fala, fala qual é o teu lado escuro...
– Tenho uma arma no porta-luvas.
– Uma arma?
– Isso, uma arma!
Pulei para o banco do passageiro, abri o porta-luvas, tomei nas mãos uma pistola, destravei-a e apontei para a cabeça dele.
– Calma, querida, isso pode ser perigoso – sua voz tornou-se quase um balbucio.
– Pra que a arma?, fala! – eu insistia vigorosa.
– Para algumas brincadeiras.
– Que tipo de brincadeiras?
– Não queira saber agora, deixemos para outra hora, e além de tudo já vai amanhecer.
– Que tipo de brincadeira? Vamos, fala! – encostei o cano em uma de suas têmporas.
– A mesma... a mesma que você está fazendo, só que sobre a cabeça de alguma mulher... e também de surpresa... sobretudo se ela ainda estiver vestida...
– Sobretudo? – sorri.
Rápida, coloquei a pistola em suas mãos, saltei sobre seu colo de novo, sôfrega, abri sua calça e deixei que seu pinto, instintivo, me encontrasse. Lânguida, derramei em seu ouvido:
– Vai, fala pra mim o que tu falas pras outras, fala.
– Salta do carro e corre nua!
– Isso, continua, não pare!
– Salta!Salta! Se não, eu atiro!
– Isso, fala, fala; assim me fazes gozar...
– Salta! É sua última chance.
– Goza dentro de mim primeiro, depois atira... – minha voz era um gemido, era quase uma dor; era, enfim, o orgasmo.
– Ah, estou gozando – ele disse. Ao mesmo tempo em que eu sentia seu sêmen quente jorrar dentro de mim, senti o cano frio da arma afastar-se de minha têmpora esquerda. Ouvi em seguida um ligeiro clique; ele travara a pistola.
Desfizemo-nos do abraço e largamo-nos exaustos sobre nossos bancos; exalávamos odores úmidos e nossos corpos pouco a pouco perdiam o calor recente. Em nossas faces, sorrisos pela metade.
Num dos lados do horizonte, um semicírculo de início avermelhado transformava-se numa esfera alaranjada; não demorou a derramar seus primeiros fios d’ouro sobre o recente dia de natal.
Ainda estava na sala de embarque quando observei um homem de terno. Ele tinha à mão um notebook, trabalhava ou consultava seus compromissos. Percebi que vez ou outra arremessava um olhar sorrateiro em minha direção. As poltronas serpenteavam pelo salão; alguns homens conversavam despretensiosos; duas adolescentes olhavam revistas e tomavam refrigerantes; uma mulher mantinha um cigarro apagado entre os dedos (talvez procurasse a área de fumantes); outro homem trazia um pequeno copo de café expresso; e eu carregava um livro, sempre trazia um ou dois na pequena bolsa de mão. Havia alguns momentos eu me desprendera da narrativa, observava o local e o aspecto das pessoas, todas prestes a embarcar, todas trazendo na face uma ponta de satisfação ou mesmo de alegria. Quando pensei em voltar ao livro, mais uma vez o homem do notebook não me desprezava. Ao embarcar, dei com ele à minha frente, íamos para o mesmo destino e, dentro do avião, aconteceu o que eu já esperava: apenas o corredor separava nossos assentos. Após guardar sua maleta na parte de cima, voltou-se para mim e, satisfeito – não poderia ser outra sua reação – sorriu. Durante todo o vôo não levantei os olhos, entretive-me na leitura de uma grande revista que comprara ainda na livraria, antes do embarque. Uma reportagem longa a respeito das mulheres da antiga RDA prendeu-me durante boa parte do vôo. Despertou-me o sorriso congelado da comissária; perguntou se eu aceitava um copo de suco.
Após deixarmos o shopping, meu amigo anfitrião levou-me para um passeio, queria mostrar-me a decoração de natal da cidade. Com seu carro deslizando quase em silêncio, conduzia-me pela esplanada dos ministérios. A noite se insinuava e as luzes recentes, ainda tímidas, piscavam em todas as cores e em várias formas. O ar frio do Planalto Central tocava minha pele, carícias de um amante que estava por vir.
Enquanto ainda transitávamos, mas agora pelo eixo rodoviário – nosso destino era uma das últimas quadras da Asa Norte – comentei de modo sucinto sobre o cavalheiro, o mais recente enamorado, o companheiro de vôo. Meu amigo irônico não perdeu a admiração e o humor:
– Você é uma mulher de sorte; se ele lhe deu o cartão, procure-o; nessa época do ano, todas as espécies de valor que habitam a cidade voam para fora; este, se está por aqui e é assim como você me descreve, não é digno de ser desprezado, é todo seu.
Sorri. Tirei o cartão da bolsa para me certifica de que ainda o tinha. Li o nome: Frederico Lucini.
– Oh, talvez alguém do corpo diplomático! Sorte sua, são ótimos os desse tipo.
Quando telefonei no dia seguinte, descobri que não era o que pensáramos, mas sim um professor da universidade. Não perguntei se era solteiro ou se morava na cidade. Não se deve querer saber tais coisas quando se tem alguém que está à inteira disposição. Marcamos um encontro. Perguntou se me podia apanhar em casa. Aceitei sem demonstrar surpresa.
O dia seguinte era sábado, vinte e dois. Os shoppings se mostravam quase intransitáveis. Filas intermináveis de automóveis, cujos motoristas procuravam onde estacionar, misturavam-se num colorido de início de festa; por incrível que parecesse, toda aquela algaravia não redundava em demais complicações, as pessoas estavam em paz consigo e o espírito das festas as tinha tomado de assalto, proporcionando a cada uma delas uma dose a mais de paciência. Muitos se apressavam para comprar os últimos presentes ou o detalhe que faltava e completaria a noite de natal.
Apanhou-me às nove da noite. Ao seu lado – ele vestia uma linda blusa aviator de listras largas azul e branca, calça clara e sapatos esporte de um marrom suave, perfeitos para o conjunto, trouxera um paletó branco, que ocupava uma parte do banco traseiro do automóvel –, eu observava o trânsito espaçado do eixo, enquanto percorríamos aquelas vias largas. Mais adiante, ele deixou o fluxo principal para fazer um grande contorno que me pareceu nos colocar na direção inversa; sem que nada me perguntasse, parou ante a um restaurante muito bonito, saltando e abrindo a porta para que eu saísse; só então demonstrou que me observava o corpo com mais atenção – eu vestia um vestido de seda fina curtíssimo, frente única.
– Será que você não vai sentir frio? – sua voz soou melodiosa.
– Se eu não me engano, há um paletó elegantíssimo no banco de trás.
Entregou as chaves a um manobrista de terno escuro que se encarregou do estacionamento, tomou-me uma das mãos. Entramos.
As mesas eram redondas e as que estavam ocupadas tinham castiçais com velas acesas; pelos cantos, abajures delicados completavam a iluminação, produzindo um efeito sutil; as toalhas e guardanapos eram de uma alvura esplendorosa.
Bebericamos dois dry Martinis, depois uma garrafa de Bordeaux. Enquanto o garçom nos trazia o couvert, composto de frios, pães e algumas pastas, meu amigo, num rosto de continua felicidade, começou a me falar sobre o que fazia e de suas preferências literárias; era especialista em Proust, inclusive tinha estudos e textos publicados sobre o autor francês.
– Você já nadou contra a corrente?
– Não nado muito ultimamente – respondi; levava à boca uma rodela de torrada envolvida em uma pasta verde clara.
– Não falo no sentido de entrar no mar ou num rio propriamente.
– Ah, entendo.
O garçom se aproximou e pôs-se em posição de que aguardava nossos pedidos. Tomei a taça com a mão direita e a levei mais uma vez aos lábios; sorri para o homem que nos aguardava.
Meu recente companheiro pediu-lhe um tempo maior, estendeu o grande cardápio e deixou a mim a escolha do prato principal.
Após eu ter feito o pedido, o garçom se retirou e continuamos a conversa. Foi ele que voltou ao assunto.
– Às vezes todos vão para um lado, mas nós não queremos acompanhá-los, desejamos outro caminho, mesmo que neste envolvam-nos apenas a penumbra da noite, o brilho das estrelas, talvez um ou outro ruído do vento sibilando sobre a vegetação ou o farfalhar de uma ave noturna.
– Ou o prateado de uma lua crescente que surja lá pelas três da madrugada, tendo como cúmplice apenas a brisa tímida e esquiva que nos tateia a pele branca, o corpo por inteiro descoberto...
– Isso, isso, você me compreende – demonstrava entusiasmo.
– Por enquanto – sorri irônica.
– Você fala a mesma língua que eu. Veja, há momentos em que todos parecem estar de acordo com um comportamento, um modo de vestir, ou um modo de se divertir, ou mesmo um modo de ser, mas nós não concordamos, preferimos outros caminhos.
– Isso – assegurei –, preferimos um caminho tão largo que chegam a nos condenar pela escolha; dirigem-se a nós como se estivéssemos tomando atitudes que fariam o mundo desabar sobre nossas cabeças.
Ele riu deliciosamente de minhas últimas palavras; ainda repetiu:
–... atitudes que fariam o mundo desabar sobre nossas cabeças! , essa é ótima, vou anotar...
Com um pequeno garfo, peguei num dos pratos menores uma pequena azeitona e a levei de modo suave à boca. Ele olhava-me com interesse; observava, minucioso, o colorido de meus lábios.
– Você pode dar um exemplo?
– Eu? – fiz-me de dissimulada –, mas são tantos.
Rimos.
– Você também acha que todo ser humano tem um lado... , vamos dizer assim, um lado que poderia ser chamado de escuro? – perguntou-me ao mesmo tempo que percebeu a chegada do garçom com uma enorme bandeja.
– Escuro? Como uma noite em que não há lua nem estrelas, onde só existe o rugir do mar e um vento interminável a nos açoitar?
– Você é ótima, adora poesia, não?
– Oh, adoro, mas isso é má poesia; você falava sobre o lado escuro de cada um, continue, por favor.
Esperou que o homem acabasse de nos servir; colocou mais um pouco do vinho na minha taça, encheu também a sua; quando nos vimos apenas os dois, falou:
– As pessoas condenam determinadas ações, determinados comportamentos; você se sentiria disposta a transgredi-los?
– Já entendi. Você quer saber se eu me sentiria culpada por ir na contramão?
– Isso mesmo, boa palavra, contramão.
– Mas é do que eu gosto mais.
– Uma amiga certa vez me falou – ele continuava –: “há alguns comportamentos que devemos seguir; por exemplo: se estamos num lugar público não será normal eu agarrar você e permanecer grudada à sua boca num beijo demorado enquanto a comida esfria à nossa frente; nem tirarmos a roupa e fazermos amor numa festa diante de outros convidados, ou num salão público, mesmo que a poucas luzes...”
– Sua amiga não sabe o que é viver. Às vezes, o principal é a nudez em público, embora eu confesse que fique um tantinho arrepiada.
Rimos juntos de novo e durante um bom tempo saboreamos a comida em silêncio.
Após uma hora e meia ou duas horas, já estávamos no apartamento dele. Ofereceu-me uma dose de vinho do Porto. A bebida combinou perfeita com o momento. Depois, num longo sofá de cor creme, diante de alguns quadros e estátuas, duas velas sobre dois longos castiçais e a paisagem trêmula, cintilante, que podia ser vista através da varanda, ele me abraçou, deslizou as mãos por minhas costas, aproximou a boca à minha face e me envolveu num longo beijo.
– Sabe o que eu queria mesmo?
– O quê? – esperou-me curioso, com a face franzida, como se eu lhe fosse revelar um grande segredo.
– Eu queria esse beijo entre pratos e talheres, à luz da pequena vela do restaurante de algumas horas atrás.
– Eu também queria uma coisa – disse fingindo intensa frustração –, eu queria que você tivesse vindo nua ao meu encontro...
– Eu sempre estive nua; você não viu o tanto que as pessoas me olhavam? O que elas procuravam? Tentavam enxergar o meu vestido...
Abracei-o, depois o soltei e pedi que fechasse os olhos. Quando voltou a me olhar, terminei a pergunta:
– Veja se elas não tinham razão, você vê alguma roupa sobre meu corpo?
Deixei-o quase louco. Levantou-se, abraçou-me ainda um tanto incrédulo, enquanto eu, também de pé, ia em seus braços somente sobre os sapatos, com a pele suave a roçar-lhe o tecido macio das roupas.
No dia seguinte encontrei-o de novo. Marcamos às onze da noite. Fiz questão que me apanhasse na garagem do prédio onde eu me hospedara. O local era de pouca luz e ao vê-lo parar o carro, escondi-me. Esperei que me procurasse. Bati então na carroceria, no lado do passageiro, surpreendendo-o. Abriu a porta e esticou os olhos sobre meus seios.
– Que roupa linda, você está maravilhosa!
– Só consegue ver o meu vestido quem não tem nenhum pecado.
– Creio que acabo de ser perdoado.
Enquanto sentava e prendia o cinto, perguntei:
– Você ainda traz aquele paletó?
– Está no mesmo lugar.
Olhei entre os bancos, ele jazia sobre o banco traseiro.
– Se esfriar, você me empresta.
Rodamos no silêncio da noite. Ele guiava e às vezes olhava sorrateiro às minhas pernas. Quando paramos, assim que saí do carro, vestiu-me. Um modelo e tanto.
Naquela noite, jantamos num restaurante em que nos serviram pratos plenos de sabores exóticos e taças de champanhe francês, acompanhados de música de piano ao vivo. O ambiente era tão agradável, que não nos demos conta do passar das horas. Vez ou outra eu enlaçava sua cabeça e o beijava na boca; um beijo interminável.
Já na madrugada, quando trafegávamos pelas vias semi-desertas da capital, pedi que namorássemos no frio aconchego de seu automóvel, num dos estacionamentos que ficava diante do prédio de meu anfitrião.
– Acho melhor irmos pra minha casa – disse ele –, lá o conforto é maior e é mais seguro.
– Você não disse que às vezes desejamos nadar contra a corrente, que temos um lado escuro? Então, amor, esse é um dos lados que me põe na contramão!
– Mas isso é perigoso, tanto mais nos dias de hoje...
– Oh, não diga, existe algo mais perigoso do que sair pelada de casa e ficar agarrada ao namorado pelo resto da noite num estacionamento.
– O quê?
– Trepar com um desconhecido logo na primeira ou na segunda saída.
– É; você tem razão.
– E logo com alguém que nem me disse qual é o seu lado escuro...
– Certo, também tenho meu lado escuro, também gosto de, às vezes, ir contra a correnteza.
Logo que estacionamos, pulei sobre ele e falei baixinho:
– Vai, fala, fala qual é o teu lado escuro...
– Tenho uma arma no porta-luvas.
– Uma arma?
– Isso, uma arma!
Pulei para o banco do passageiro, abri o porta-luvas, tomei nas mãos uma pistola, destravei-a e apontei para a cabeça dele.
– Calma, querida, isso pode ser perigoso – sua voz tornou-se quase um balbucio.
– Pra que a arma?, fala! – eu insistia vigorosa.
– Para algumas brincadeiras.
– Que tipo de brincadeiras?
– Não queira saber agora, deixemos para outra hora, e além de tudo já vai amanhecer.
– Que tipo de brincadeira? Vamos, fala! – encostei o cano em uma de suas têmporas.
– A mesma... a mesma que você está fazendo, só que sobre a cabeça de alguma mulher... e também de surpresa... sobretudo se ela ainda estiver vestida...
– Sobretudo? – sorri.
Rápida, coloquei a pistola em suas mãos, saltei sobre seu colo de novo, sôfrega, abri sua calça e deixei que seu pinto, instintivo, me encontrasse. Lânguida, derramei em seu ouvido:
– Vai, fala pra mim o que tu falas pras outras, fala.
– Salta do carro e corre nua!
– Isso, continua, não pare!
– Salta!Salta! Se não, eu atiro!
– Isso, fala, fala; assim me fazes gozar...
– Salta! É sua última chance.
– Goza dentro de mim primeiro, depois atira... – minha voz era um gemido, era quase uma dor; era, enfim, o orgasmo.
– Ah, estou gozando – ele disse. Ao mesmo tempo em que eu sentia seu sêmen quente jorrar dentro de mim, senti o cano frio da arma afastar-se de minha têmpora esquerda. Ouvi em seguida um ligeiro clique; ele travara a pistola.
Desfizemo-nos do abraço e largamo-nos exaustos sobre nossos bancos; exalávamos odores úmidos e nossos corpos pouco a pouco perdiam o calor recente. Em nossas faces, sorrisos pela metade.
Num dos lados do horizonte, um semicírculo de início avermelhado transformava-se numa esfera alaranjada; não demorou a derramar seus primeiros fios d’ouro sobre o recente dia de natal.
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