quinta-feira, abril 10, 2008

A galeria

A galeria Carapebus fica no Centro, como quase todos sabem. É um corredor de passagem entre duas importantes ruas. O local alinha lojas famosas, como diversas butiques de roupas masculinas e femininas, uma cafeteria, uma revistaria, uma loja de CDs e DVDs, uma delicatessem e um caixa eletrônico da Caixa Econômica. A galeria ainda recebe as pessoas que vão ao Tropical Plaza, um pequeno shopping que se situa ao lado e também é local de lojas chiques. Quem olha para o alto quando anda sobre o passeio da rua principal, pode observar dois edifícios que completam o conjunto arquitetônico. Nas salas comerciais, há uma variedade de consultórios, escritórios de advogados e de administradores de imóveis; vez ou outra se sabe de algum atelier de artista famoso ou studio reservado a gente talentosa.

Eu trabalhava havia dois anos em uma loja de roupas femininas. Uma das melhores na cidade. Sempre recebia a visita de jovens e de senhoras da sociedade. Experimentavam os modelos, e algumas aguardavam as novidades que vinham do Rio ou de São Paulo. Vez ou outra, recebíamos visitas de homens; sobretudo os de meia-idade. Vinham comprar presentes para as esposas ou mesmo para as amantes. Essas também frequentavam a loja e, com muita discrição, faziam compras cujas somas eram saldadas pelos respeitosos senhores. Eu conhecia quase a todos; e a proprietária, uma mulher educada, acostumada aos sabores vários das relações interpessoais, confiava a mim o atendimento discreto da variada clientela. Sempre sorrindo, sem demonstrar maior intimidade, eu me aproximava dos clientes e atendia todos com esmero.

A cidade em sua extensão e em seus quase duzentos mil habitantes não era uma cidade pequena; os antigos moradores, porém, não deixavam de se cumprimentar e sempre paravam para falar sobre algum assunto. Vivia-se o delicioso mundo das aparências, em que todos se fazem de sóbrios, mas não abandonam a embriaguês provocada pela possibilidade de um relacionamento novo e excitante. Assim nós vivíamos nossa pequena felicidade, entre beijos, abraços, e uma aproximação maior quando era conveniente.

Certa feita eu tive um namorado. O rapaz passava constantemente diante da vitrine e sorria para mim. Fingia apreciar os manequins expostos e, às vezes, entrava para fazer alguma pergunta sobre as mercadorias. Como a loja não tinha roupas masculinas, via-se embaraçado. Quando eu o indagava para quem era o presente, ele pigarreava e inventava pessoas diversas. Na verdade, nada comprava. No dia seguinte, lá estava ele de novo a olhar através do vidro o mundo multicor das roupas femininas.

Uma vez falou:

– Roupa de mulher é coisa bonita, os homens não têm tantas opções...

– São poucos os que pensam assim, você é uma pessoa de sensibilidade.

Minha frase lhe soou como um elogio, e ele passou a me visitar com mais freqüência. Um dia me convidou para tomar café na cafeteria próxima. Passamos então a conversar mais, enquanto eu sorvia um expresso e comia com delicadeza o pequeno biscoito que acompanhava a bebida. Certa vez lhe pedi um cigarro. Assustou-se. Disse que não fumava e admirou-se que eu me prestava a tal vício. Respondi-lhe que não era um vício, mas prazer. Ele ainda insistiu na proibição de fumar em lugares fechados. Devolvi atenuando-lhe a preocupação:

– É que poderíamos conversar mais um pouquinho dando uma volta pela quadra, até atingirmos a outra entrada da galeria.

Depois daquele dia, além do café, completávamos nosso encontro com o pequeno passeio. Um dia ele me convidou para sair à noite.

Notei que tinha idéias estranhas. Estava à procura de alguém para casar. Percebi que fora criado de modo muito conservador; o que não era raro na periferia da cidade. Tinha uma família numerosa e se pôs a contar toda a sua história enquanto caminhávamos pela orla marítima. Reparei também que ele não costumava fazer aquele passeio; conhecia pouco por ali.

Apesar da pouca idade, eu já tivera outros relacionamentos; com jovens e com homens mais velhos. Ele quase não me tocava, então fiquei desconfiada de que não me convidaria para um contato mais íntimo. Não foi o que aconteceu. Saímos naquela mesma noite e ele não era mal; mas, como não tínhamos lugar para ficar, acabei levando-o para minha casa. Antes, porém, enquanto andávamos, nem mesmo me convidou para beber ou comer algo. Fui eu que o alertei que estava com sede e desejava beber água de coco.
Já naquela ocasião, pude perceber que tipo de homem ele era. Daí em diante, planejei me afastar e continuar minha vida de mulher livre.

Nos dias que se seguiram, continuou a aparecer e insinuou certo desejo de posse sobre mim. Tomei mais duas vezes café em sua companhia e fumei o meu cigarro. Não demorei a lhe dizer que não mais iria acompanhá-lo; poderíamos ser amigos, mas que não me assediasse, não desejava passear com ele todos os dias. Creio que ficou decepcionado. Desapareceu por uns quinze dias, até que ressurgiu e me acenou através da vitrine. Correspondi, mas não saí quando acabei de atender a cliente. Depois disso, nunca mais voltou.

Não sei dizer o motivo, mas na maioria das vezes quando estou sozinha, sinto-me a mulher mais feliz do mundo. Não preciso me preocupar com ninguém nem refletir se estou agindo de modo a ferir aquele que estaria ao meu lado. Passei assim uns dois meses. Trabalhava, saía para meu lanche, voltava para a loja, retornava a casa, lia algum livro, ouvia música e nada me incomodava. Às vezes ia à orla marítima, encontrava uma amiga, então sentávamos em algum restaurante para jantar ou mesmo para beber alguma coisa. Aos domingos havia vezes em que todos os meus amigos iam à praia; meu telefone não parava de tocar. Era normal eu não atender; dormia até tarde e só lá pelas três horas eu aparecia na praia. Mas mesmo assim não era para um banho de mar; às vezes para almoçar, outras para tomar um suco. É claro que eu não optava eternamente pela mais completa solidão. Às vezes eu aceitava algum convite para sair à noite ou mesmo me esforçava para acordar cedo, isto é, lá pelas dez, e ir à praia com alguém interessante.

Até que surgiu um senhor cerca de vinte ou vinte e cinco anos mais velho do que eu.

A primeira vez que o vi foi na própria loja. Entrara como todos em busca de uma roupa bonita para presentear alguém. Mostrei-lhe vários modelos. Tratei-o com o profissionalismo que costumo atender os clientes. Notei, porém, algo diferente nele. Olhava-me sorrateiro e não demorei a desconfiar de que ele tinha outro interesse além do presente que procurava. Comprou um vestido longo, traje para noite, um tanto formal, não era o que se usava com freqüência na cidade mesmo em ocasiões especiais. Mas não deixava de ser bonito. Alguns dias depois, voltou para me agradecer. Disse que a pessoa a quem presenteara adorou a roupa. Tentou retribuir-me com algum presente. Eu disse que não poderia aceitar; fizera o meu trabalho e não competia aos clientes pagarem nada a mais do que o preço da mercadoria. Não desistiu. Voltou outras vezes.

Andava sempre bem vestido. Como trabalho com roupas e as conheço, reparei que ele tinha bom gosto. Vestia roupa social de grife; às vezes quando o vi trajando algo mais esportivo, observei que as etiquetas eram de roupas caras, compradas no Rio ou em São Paulo. Era bastante ardiloso em conquistas amorosas. Percebia-se que dificilmente alguma mulher deixaria de cair em suas mãos caso ele assim o desejasse. Apesar de beirar os cinqüenta anos, era jovial; conversava sobre muitos assuntos e demonstrava ser pessoa de alguma cultura. Freqüentava vez ou outra a vida cultural do Rio e mostrava-se sempre atualizado em relação a peças de teatro e a filmes em cartaz naquela cidade.

Não desanimou ante a minha recusa. Continuou a aparecer na loja. Comprou mais alguma coisa e, num final de tarde, enquanto um vento suave acariciava a cidade, fez de conta que me encontrou ao acaso na porta de uma das saídas da galeria e me ofereceu carona. Eu tinha, na época, uma motocicleta, mas naquele dia não viera nela. Acabei por aceitar sua oferta. Foi então que ele me levou para jantar. Eu disse que não tinha fome, que tinha lanchado havia apenas uma hora; ofereceu-me então uma bebida e um passeio de carro pela orla. Levou-me mais tarde ao restaurante mais conceituado do local. Ficamos horas conversando. Percebi que era pessoa agradável. Daí em diante, não mais me mantive na defensiva e passei a tratá-lo com mais carinho.

Passamos a nos encontrar uma vez na semana. Eu não me incomodava, pois também tinha tempo para meus livros e CDs. Num dos encontros, presenteou-me com uma jóia. Olhei-a demoradamente e disse:

– Não posso aceitar seu presente.

– Não faça essa desfeita.

– Não é desfeita; não posso...

– Mas qual o motivo?

– Não posso.

Ele guardou a pequena embalagem em um dos bolsos do paletó e manteve-se como se nada tivesse acontecido. Quando nos despedimos, pela primeira vez tomei a iniciativa de beijá-lo; foi um longo beijo. Ele colocou a mão em um dos bolsos. Creio que tiraria o presente para me ofertar de novo. Mas segurei sua mão e não permiti que ele fosse além da intenção.

A seguir, durante três semanas desmarquei todos os encontros com ele. Ele aparecia na loja um ou dois dias depois ou telefonava, fingia que tudo ia bem e nada falava sobre nossas frustradas saídas.

Depois deixou de me convidar por algum tempo; passava, apenas acenava e seguia o próprio caminho.

– Você despreza uma grande oportunidade – disse-me a dona da loja.

– Você o conhece?

– É gente importante na Petrobras.

– E o que isso tem a ver?

– Qualquer mulher desejaria um homem desses, acho que você perde...

Nunca havia dado satisfações a ela, mas como era uma mulher inteligente, não deixou de observar as investidas dele.

Alguns dias depois, quando estava no mesmo restaurante que fora com ele, mas sozinha, avistei-o. Estava acompanhado de uma mulher muito bonita.

Após alguns dias, surgiu de novo na galeria. Chamou-me e fui tomar café naquela mesma cafeteria. Depois pedi que me acompanhasse até lá fora, porque queria fumar. Agiu com todo o cavalheirismo e acabou por me convidar para sair à noite. Pedi que marcássemos o encontro para o dia seguinte.

O encontro aconteceu, embora ele pensasse que eu não apareceria. Jantamos e bebemos vinho. Ele estava, como sempre, muito bem trajado. Ventava, e trouxera um pulôver verde musgo; sua calça era cinza e, sob o agasalho via-se uma blusa bege com a gola alta circundando o pescoço. Conversamos durante muito tempo. Nada falou sobre sua vida particular ou sobre a família. Também nada perguntei. O assunto girou em torno de uma exposição de livros que ocorria no Rio. Como soubera da minha paixão pela leitura, pôs-se a falar sobre uma infinidade de livros. Quando deixamos o restaurante, lá pelas onze horas, pedi que andássemos um pouco pelo passeio que beirava as areias da praia. A noite estava bonita e algumas pessoas também caminhavam. Ouvia-se o leve marulhar da maré baixa; e a iluminação da avenida, apesar de um tanto sóbria, esticava suas luzes até a beira d’água. Vez ou outro um cordão de restinga substituía as areias e se estendia em direção ao mar. Fomos até o último prédio, que era de um hotel; dali em diante, as areias e o mar enfiavam-se numa escuridão amenizada apenas pelas luzes que vinham do céu. De um lado, o terreno arenoso; de outro, o mar. Resolvi pregar-lhe uma peça. Tirei a sandália e comecei a correr areia adentro em direção ao pedaço da praia que ficava quase na escuridão total. Gritei para que me seguisse. Ele estava muito formal para descer à beira-mar; mas acabou vindo atrás de mim. Pus-me a correr e reparei que ele não me alcançaria. Quando quase tateava na escuridão, agarrei-o por trás e beijei-lhe a nuca. Ele virou-se, me abraçou e procurou com os lábios minha boca. Comecei então a tirar toda a roupa.

– Aqui não, pode ser perigoso.

Quando acabou de falar, eu já estava nua. Namoramos ali mesmo. Eu, sôfrega e ele, um tanto temeroso.
Depois desse dia, passou a vir à loja com mais freqüência. Deu-se quase o mesmo que ocorrera com o rapaz anterior. Comecei a me sentir tolhida. Ele nada falava, mas dava a impressão de que queria ter algum poder sobre mim. Agia como se eu já lhe pertencesse. Saímos mais duas vezes. Na última, eu disse que não queria mais.

– Mas o que está havendo? Você não está gostando de sair comigo? Eu não estou agradando?

– Não é isso, o problema deve ser meu – ainda amenizei.

Ele ficou muito decepcionado.

Um portador veio trazer-me um presente dois dias depois. Não quis receber. Devolvi-o sem olhar o que era e sem ler o bilhete que ele escrevera. Desapareceu por exato dois meses. Ressurgiu depois como se nada houvesse acontecido e me convidando para jantar. Mantive-me fria e resoluta. Disse que tinha outro compromisso.

Um mês e meio depois conheci um alagoano. Chegou sorridente à loja e disse que não desejava comprar absolutamente nada. Entrara porque jamais vira uma mulher tão linda como eu. Palavras dele. Era mergulhador. Trabalhava na exploração de petróleo no fundo do mar. Era um homem jovial e alegre. Convidou-me para um encontro mais tarde. Respondi que não poderia. Não queria aceitar seu convite logo numa primeira vez. Lamentou que só pudesse rever-me quinze dias depois, porque seu trabalho exigia que ele embarcasse no dia seguinte.

– Não há problema, depois, quem sabe, a gente se encontra.

Deixei assim uma porta aberta para o futuro. Ele sorriu debochado e esperançoso; seu rosto trazia uma luminosidade inexistente nos homens que eu conhecera até então. Deixou seu nome e telefone escrito num canto de papel.

– Eu posso telefonar de vez em quando da plataforma, se você quiser; não quero constrangê-la pedindo seu número; caso haja interesse seu, dê uma ligada que eu passo a telefonar.

O sorriso dele encerrou a conversa e a fisionomia altiva demonstrava certeza da conquista amorosa. Ainda sussurrou:

– Você é muito especial, não posso deixá-la escapar.

Mantive-me fria, resoluta; estava sozinha na loja, mas era uma profissional, talvez fosse esse o segredo de meu sucesso. Embora a presença dele e toda sua alegria tenham me contagiado, representei alguém que não se comovera.

Quando ele se foi, recortei o número do pequeno papel e coloquei na agenda.

Sabia que os homens que trabalham no mar, nas plataformas, ficam embarcados pelo menos durante quinze dias. Não quis precipitar-me, por isso deixei passar os primeiros dez dias. Então um dia à noite, telefonei. Alguém atendeu e pediu que eu esperasse um pouco. A mesma pessoa retornou:

– Por favor, deixe o recado, no momento ele não pode atender.

Deixei meu número.

No dia seguinte, ao amanhecer eu rolava ainda na cama, sonolenta, quando a campainha do telefone soou. Demorei a atender. Quando tomei nas mãos o aparelho e respondi, ouvi a voz dele, a mesma voz que me abordara na loja, numa inflexão jovial e alegre; do jeito que ele falava, até parecia estar em férias numa praia do nordeste.

– Oi, amor, como vai essa coisa deslumbrante?

– Coisa o quê? – eu não havia entendido a última palavra.

– Coisa deslumbrante.

– A, sim, se você visse o meu rosto agora, não iria me chamar assim.

– Gata, você é a coisa mais deliciosa desse mundo. Não há comparação. Nem as águas do mar, a luz do sol, o brilho prateado das estrelas são capazes de disputar com você.

– O brilho prateado de quê? – quis fazê-lo repetir.

– Das estrelas! O brilho prateado das estrelas!

– Alguém está ouvindo essa conversa aí?

– A plataforma inteira está exultante, me considera o homem mais feliz do mundo.

– Não diga.

– Eles têm inveja, dizem que eu sou assim porque sou do nordeste e que lá ou se morre de fome ou se vive para amar.

Conversamos durante quinze minutos. Falou então que não demorava a desembarcar e queria ficar comigo bastante tempo.

– Vamos devagar, ainda nem nos conhecemos...

– Nem é preciso; enquanto formos assim, nos amaremos sempre – percebi uma ruidosa gargalhada.

Ri também. E acabei achando que ele tinha razão.

Naquele dia senti, ao sair para trabalhar, que os meus olhos tinham outro brilho.

Após cinco dias, ele apareceu de surpresa na loja. Não telefonara para dizer que já estava em terra, nem havíamos marcado encontro algum.

– Meu amor, minha adorada criatura, estou aqui para lhe dizer que nunca vi uma deusa com tamanha beleza.

Ajoelhou e pôs-se a fazer mesuras.

– Levante-se, se alguém vir você nessa posição vai achar ridículo.

– Pois que ache; o amor na verdade é ridículo, mas não se deixa de amar por causa disso.

Saímos à noite.

Ele era intempestivo. Arranjou um carro com alguém e resolveu guiá-lo por vários lugares. Onde parava tinha um conhecido; ou passava a travar conhecimento imediatamente. Fomos a três lugares antes de pararmos para jantar num restaurante que ele achou adequado para me levar. Então começou a falar em voz baixa, a recitar versos, disse que estudara no ensino médio com um professor que o fizera gostar de literatura; falou-me sobre vários livros e emendava em versos de amor. Se ele já tivesse bebido, creio que diria que estava bêbado, mas não era verdade. Acho que ele possuía uma embriaguês natural. Conversamos, comemos e bebemos. Nessa noite, até exagerei; devido ao seu entusiasmo pela vida, ou mesmo por mim, como não cansava de dizer, acabei por beber um tanto além do que estava acostumada.

– E agora, o que vamos fazer? – perguntou enquanto íamos em busca do seu automóvel, após o jantar demorado.

– Acho que não consigo fazer mais nada – insinuei.

– Tem certeza?

– Acho que sim.

Então ele parou diante de mim, me abraçou e me beijou, num beijo longo e cheio de carinho.

– Temos tempo, não é mesmo?

– Talvez a vida inteira – eu disse.

– Isso, a vida inteira.


Os dias se passavam e nós acabamos por nos encontrar quase toda noite. Cada vez íamos a um local diferente. Comíamos e bebíamos; eu sempre preocupada em não exagerar. Sempre mantivera o equilíbrio na maioria das situações e não seria agora que eu me deixaria arrastar por uma paixão que não sabia até quando iria durar.

Em todas as noites em que saíamos, acabávamos um sobre o outro; às vezes na minha casa, outras em algum hotel. E não foi raro que namorássemos à vontade, ao ar livre, com as estrelas e o negrume da noite a cobrir nossos corpos. Ele me possuía com um ardor que eu jamais vira em outro homem.

No sábado seguinte fizemos um programa mais demorado. Fomos passar o fim de semana em Rio das Ostras, a próxima cidade na direção sul. Chegamos em torno das dez e trinta da manhã, percorremos várias praias, paramos na Costa Azul e resolvemos mergulhar. Depois permanecemos sob o sol; não demorou para que nos abraçássemos e começássemos um namoro, de início comportado. O mar estava calmo, as ondas deslizavam e desfaziam-se em grossas camadas de espuma quase junto à beira-mar. O céu era de um azul intenso, não havia sequer uma nuvem. Quando saí do primeiro mergulho e senti a luz dourada do sol em contato com o meu corpo frio devido à temperatura baixa da água, fui envolta num prazer quase táctil. O prazer foi tanto que eu nada quis beber nem dar alguns tragos no cigarro (não era tabaco) que meu companheiro trazia. Ficamos longos minutos em silêncio, a contemplar toda aquela paisagem. Às vezes, na vida da gente, acontecem alguns momentos que sabemos que ficarão registrados para sempre, por isso queremos aproveitá-los ao máximo.

Deitei num pedaço de areia sobre uma toalha grande. Ele se pôs a espalhar as gotículas que ainda insistiam e escorrer pelo meu corpo. Continuei deitada, os olhos fechados, como se estivesse adormecida e envolta num sonho do qual jamais desejaria despertar. Seus lábios, também frios, procuraram os meus, e nos tornamos mais juntos num beijo molhado, um beijo que comungava com o dia límpido, a água gelada, o sol ainda morno e uma alegria difícil de colocar em palavras. Depois ele tateou minhas costas, escorregou os dedos por minha cintura, margeou-me as ancas e tocou como quem não quer nada (ou quer tudo!) as tiras de meu biquíni. Eu pensei: “ai, meu deus, assim eu morro”.

Uma hora depois fomos para a praia da Joana. As outras pessoas ainda chegavam e o ambiente quase deserto predominava. Alguma barraca aqui, outra ali; mais adiante o vendedor de cerveja e alguns comestíveis; e, olhando na direção do horizonte, o mar infinito. Foi aí que aconteceu, mergulhamos mais uma vez. Éramos as únicas pessoas a nos banhar naquele pedaço de mar. Enfiávamos a cabeça por baixo d’água, procurávamos um ao outro; agarrávamos-nos, escapávamos um do outro, voltávamos a nos encontrar e depois nos separávamos mais uma vez; os cabelos a escorrerem a água quase prateada, nossas faces encharcadas refletiam os raios dourados do sol. Eu era uma sereia em corpo inteiro de mulher; leve, escapulia, deslizava, para logo em seguida ser envolta pelos braços dele. Uma de minhas escapadas foi mais demorada, submergi e, quando voltei à tona, ele me enlaçou de surpresa, mantendo-me atada ao seu corpo; então me deixou nua...

Até as duas horas ficamos ali; ora dentro d’água ora sobre as areias. Quando já estávamos embriagados de amor e da paisagem, ainda compramos algo para beber. Tomei uma caipirinha e ele bebeu cerveja. A bebida ainda nos tornou mais alegres e excitados, e fez que nossos corpos sempre tivessem necessidade de estarem juntos.

À tarde, procuramos um restaurante para saciar nossa fome. Encontramos um, bem de frente para o oceano, onde pudemos ficar num deck que nos proporcionava uma vista magnífica de todo o litoral. Pedi mais uma caipirinha e, em determinado momento, bebi alguns goles do chope dele. A comida, à base de peixe, contribuiu para que o dia continuasse envolto em mil maravilhas.

Quando acabamos, voltamos à praia, mas procuramos um lugar deserto, ou quase, já que o dia de sol havia atraído as pessoas para o banho de mar. Fomos até uma praia chamada Águas Lindas; permanecemos um pouco sobre o sol e depois entramos na água mais uma vez. Tudo o que vivêramos pela manhã se repetiu; naquele momento, no entanto, com mais intensidade, pois a bebida nos ascendera recantos inexplorados. Então ele, como num passe de mágica, fez desaparecer as duas pequenas peças que eu vestia. Em algum momento, sorrindo e adorando a situação, ainda soprei em seu ouvido:

– Quero ver como vou sair pelada daqui.

Ele nada falou, enganchou-me num longo beijo como se dissesse com brandura “tudo será resolvido”. Jamais eu vivera um fim de semana com tal intensidade.


Depois de uma semana, ele disse que tinha um compromisso em outro estado e que precisaria estar fora por alguns dias. Despediu-se aparentando uma terrível desolação por ter de me deixar. Falou que sofreria muito. Após ter conhecido alguém como eu, jamais sua vida seria plena durante o tempo em que estivéssemos afastados.

Animei-me – por louca que me chamem – depois que ele partiu. Assim eu poderia voltar ao normal. Trabalharia com a segurança e a tranqüilidade de sempre e depois teria tempo para me dedicar aos meus prazeres prediletos: ler, caminhar pela praia e ficar sozinha. Apesar de estar gostando muito dele e de sua companhia, não queria ter a minha vida toda modificada. Desejava reger meu destino; lógico que era bom ter um namorado, ou um companheiro, sei lá como nomear, mas, ao mesmo tempo, não desejava que minha vida se transformasse de modo tão avassalador.

Uns dias depois, após fechar a loja, encontrei uma amiga que me convidou para tomar um chá num bistrô recém inaugurado. Chamava-se Marlene.

– Graça, você precisa conhecer o namorado que arranjei! – ela disse entusiasmada.

– Olhe, não saia por aí contando para todo o mundo, dá azar, viu? – enfatizei.

– Não estou contando pra ninguém, só pra você.

– Obrigada pela confiança...

– Escute, estou a mil, nunca vivi um relacionamento assim.

Enquanto ela falava, eu pensava também em meu namorado. Será que ela nos havia visto junto e contava algo só para eu também falar sobre mim? Não falaria nada, apenas ouviria sua história.

– Olha, nunca tive ninguém assim, o cara me faz sentir coisas mirabolantes.

– Mirabolantes? Como? – eu incentivava.

– Nunca falei intimidades minhas para ninguém, porém como você é uma pessoa discreta, vive sempre calada, profissional, nunca se ouve nada a seu respeito, vou contar...

E desfiou uma conversa miúda. Começou pelo relacionamento que tivera antes.

– Lembra do Osvaldo? No começo eu pensei que ele era o homem ideal para mim, mas com tudo o que aconteceu...

– Você não disse que o amava, que era o homem da sua vida?

– Disse, mas me enganei; com o passar do tempo ele mudou, houve aqueles problemas que você sabe, ou já ouviu falar por outras bocas; ele passou a beber em excesso e se tornou um homem violento. Mas deixa eu te contar sobre meu novo namorado.

– Conta então; esqueçamos o passado.

– Isso mesmo. Nunca vi ninguém assim; ele me pega de maneira rude, mas depois se torna tão carinhoso, torna-se o homem mais carinhoso do mundo; e fica dentro de mim um tempo enorme; que prazer eu sinto!

– Que bom que você tenha encontrado alguém à sua altura...

– Isso mesmo, eu mereço um homem assim. E, olha, ele me despertou pra uma coisa que eu nunca tinha pensado.

– O quê? Me conta – eu a fazia falar, desse modo me mantinha incólume.

– Umas fantasias, sei lá; pensei que essas coisas aconteciam apenas em histórias, ou em filmes, mas sinto um enorme tesão quando as praticamos.

– O que, por exemplo?

– Coisas como sair de casa com ele, depois da meia-noite, quase nua!

– É mesmo?

– Isso. Outro dia saí com um vestido curtíssimo; não estou mais em idade de andar nua por aí, até lembrei uma vez quando eu era adolescência e terminei uma noite pelada, sem ter o que vestir. Saí com um vestidinho preto, bem justo ao corpo; e sem nada por baixo. Quase deixei o homem louco!

– E o que mais?

– Ah, são tantas as coisas. De outra vez fomos à praia do Pecado, também de madrugada. E ele me deixou nua... Namoramos sobre as areias, ventava, e quando acabou não encontrei minha roupa; ele disse: “calma, vamos encontrar”, e pôs-se a procurá-la. Quando eu não tinha mais esperança e pensava, ai meu deus, vou ter que voltar nua pra casa!, ele a achou; então me pegou no colo e me penetrou mais uma vez.

– Deve ter sido fascinante.

– Ora, se foi! Mas tem mais uma coisa; tenho um pouco de vergonha de contar; pra você, porém, acho que consigo. Quis que ele realizasse um sonho antigo...

– Qual?

– Escute, quem sabe não seja o sonho de toda mulher. Eu pedi pra que ele me deixasse nua, de madrugada, numa das margens da BR. Paramos o carro lá, uma escuridão só, e eu desci. Nua! Ele percorreria um quilômetro ou mais e voltaria pra me pegar. Fiquei ali, no maior breu; vez ou outra passava um carro ou um caminhão, então eu me abaixava junto ao mato para ficar escondida. Cheguei a pensar: se ele não volta, se se perde de mim, se o carro enguiça? Mas essas coisas me faziam trêmula e excitada. Até que ele voltou; trepamos num recanto em que ele parou. Eu ainda nua, toda molhada de emoção e de prazer; nunca gozei tanto. Só em falar fico excitada.

– Marlene, cuidado com essas coisas. Eu sei que são excitantes, mas se não der certo, se acontecer algum problema, você vai passar maus bocados; a cidade ainda é provinciana e se alguém encontra você nua por aí...

– Ai, isola, isso não vai acontecer. Mas fala de você, também tem alguém, não?

– Tenho. Você sabe como sou. Até gosto de namorar, gosto dessas coisas também; no fundo acho que todas nós gostamos. Porém, mantenho um certo domínio sobre mim mesma, não quero depender física nem emocionalmente de homem algum.

– Você é diferente, não é mesmo?

– Nem tanto, é questão de autocontrole. Gosto de ficar sozinha, de ler, de curtir a natureza em silêncio.

– Mas como te disse, estou a mil e super feliz.

– Fico feliz por você também. Vê se aparece lá na loja.

– Vou sim.

Ela se foi e eu voltei pra casa. Naquela noite acabei de ler um livro de uma escritora inglesa que contava uma história ambientada nos anos de 1960. Na verdade, um período muito mais avançado em matéria de sexo do que a época em que vivíamos.


O tempo passou. Meu namorado voltou outras vezes. Quando ele estava em terra, saíamos e aproveitávamos. Tivemos quase todas as experiências amorosas e sexuais. Fizemos amor nos locais mais improváveis. Talvez se minha amiga soubesse, ficaria de cabelos em pé. Mas nunca contei nada pra ninguém.

Ela viveu o seu romance de modo intenso, mas não conseguiu permanecer com seu homem por muito tempo. Não soube por ela, mas por suas conhecidas; vinham me falar da vida de outras pessoas sem que eu nada perguntasse.

Apesar de gostar muito de meu namorado, sempre procurei manter minha independência e individualidade. Mesmo nos dias que ele passava na minha casa. Também nunca perguntei nada o que fazia quando estava longe de mim. Ele, do mesmo modo, vivia apenas o momento; nada de interrogatórios ou atitudes que demonstrassem ciúme. Creio que foi isso que o manteve e o mantém junto a mim.

Amamo-nos muito, mas antes de tudo e em primeiro lugar, amamos a nós mesmos.

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