quarta-feira, maio 21, 2008

Corpo e prazer

Outro dia apareceu na loja um rapaz. Não tinha a intenção de comprar coisa alguma. Foi até lá para conversar um pouco e me emprestar um livro. Havia uma ou duas semanas que o conhecera num dos bares da orla enquanto bebia ou comia alguma coisa com uma amiga. Na verdade, era um colega dela. Apresentou-me na ocasião e ele ficou um pouco entre nós. Soube que era professor de literatura. Perguntei que tipo de livros costumava passar para seus alunos. Ele me respondeu que dependia da série e da escola. Eu disse que gostava de ler, mas sem compromisso. Então apareceu na loja para me levar um livro.

“Você gosta muito de ler, todos deveriam ser como você, assim o mundo seria mais interessante”.

“Você acha?”, repliquei.

“Não acho, tenho certeza”.

“Os professores têm muitas certezas”, deixei escapar.

“Ora não pense assim, os professores são as pessoas mais confusas que existem, jamais confie neles!”.

Sorri e achei que ele poderia ser alguém interessante.

“Olha”, falei, “leio qualquer coisa que me caia nas mãos; outro dia li a vida de Charles Chaplin”.

“Deve ser muito interessante, nunca li nada sobre ele”.

“É interessante, sim”.

Ao observar que alguém entrava para ver alguma roupa, deixou o livro e se foi. Fez sinal que qualquer dia voltava.

Li o livro que ele me emprestou. Livro interessante. Nada tinha a ver, creio, com sua profissão, e não era um livro a ser aplicado em escola. Tratava-se de um romance de uma escritora inglesa. A história tinha algumas idas e vindas e eu me deliciei naquele clima tortuoso que envolvia vários personagens e vários períodos do século XX.

Dias depois, apareceu de novo. Mas não pudemos conversar muito porque a todo momento entrava alguém para perguntar alguma coisa. Deixou um bilhete com o número do telefone. Numa outra vez, quando ele apareceu para uma visita rápida, também dei o meu número.

Encontramo-nos fora dali para um passeio e um chope numa noite de sábado.

Enquanto bebericávamos, começamos a conversar sobre livros.

“É difícil encontrar alguém que leia bastante e saiba conversar sobre o que está lendo”, ele disse. “As pessoas estão mais ligadas nas imagens”.

“Imagens? Como assim?”

“As pessoas estão mais fascinadas pelo mundo do áudio-visual, como cinema, DVD, computador etc.”

“Quanto aos outros não sei, mas gosto muito dos livros. Se o assunto me agrada, leio; não tenho método, nem pretendo ter. Ah, outra coisa, não gosto de jornais, quase não os compro”.

Ele ficou a me olhar, depois seus olhos se puseram distantes. Comecei a pensar se me desejava ou se estava ali apenas para conversar.

“Os livros fazem as mulheres mais belas”, falou.

Fiz-me de desentendida. Levou o copo à boca e completou:

“As mulheres que leem muito são fascinantes”.

“Não são todos os homens que pensam assim. Tive um amigo que só gostava de mulher que bebia o tanto quanto ele. Se ela ficasse num bar horas a fio e saísse quase bêbada, ele se apaixonava. Nunca leu sequer um livro nem desejou mulher fora desse círculo”.

“É verdade, não se pode generalizar”.

“Sabe, às vezes não me agrada falar para as pessoas das coisas que gosto; isso revela como sou. Não desejo que as pessoas me invadam; guardo muito a minha privacidade. Quando revelamos o que lemos ainda é pior, a outra pessoa, caso seja um pouco inteligente, logo deduz o tipo de pessoa que somos”.

“Interessante seu raciocínio, não tinha pensado ainda sobre isso. Então, quer dizer que você não gosta de se revelar...”

“Não”.

“Dizendo isso, você já está se revelando. Sinto muito, não vou perguntar mais”.

“Não precisa ficar aborrecido, é apenas uma colocação que gosto de fazer; amo estar comigo mesma”.

“Você não se sente muito só, desse modo?”.

“Às vezes, sim, mas faz parte da vida”.

“Existem pessoas que não suportam a solidão”.

“Não é solidão”, repliquei, "trata-se de um estar-consigo, ter prazer pela própria companhia e fazer as coisas de modo gostoso, sem precisar preocupar-se...”

“Não seria muito egoísmo de sua parte pensar assim?”.

“Não acho, não estou fazendo mal a ninguém...”

“Não se trata de fazer bem ou mal; se alguém se interessar por você e desejar sua companhia?”

Comecei a perceber quais eram suas intenções. Sorri, acendi um cigarro, dei um longo trago e soltei a fumaça com a cabeça inclinada um pouco para cima, depois respondi:

“Não sei, por acaso há alguém aqui interessado em mim? Caso a resposta seja positiva, não precisamos de tantas máscaras ou tantos livros...”

“Bem, você está sendo um tanto rápida, eu não tinha pensado nisso”.

“Eu, rápida?”, sorri e desviei meu olhar para um ponto indefinido. Depois acrescentei: “me acho tão lenta, preguiçosa”.

“Não é isso, de modo algum. Não estou aqui com a intenção de dar uma cantada em você, no caso seria uma cantada um tanto intelectual; minha intenção é apenas conversar com alguém interessante e, no fundo, manter a amizade”.

O garçom chegou trazendo mais dois chopes. Experimentamos a bebida quase simultaneamente. Meu recente amigo falou, talvez sem pensar:

“Amanhã vou ao Rio, pensei em convidá-la, mas devido a seu trabalho acho que você não pode, não é mesmo?”.

“Não é que eu não possa, se a viagem for marcada com antecedência...

“Ah, me desculpe é que pensei que você trabalhasse todos os dias...”

“Lógico que trabalho, mas se você quer me convidar precisa perguntar com antecedência, posso dar um jeito”.

“Verdade?”

“Claro, por que não?"

Não sei se ele queria na verdade convidar-me, ou se falava aquilo apenas para esticar a conversa. Achei que poderia ter um compromisso com outra mulher e por isso não me desejava a seu lado no Rio. Quando voltou, alguns dias depois, foi à loja e deixou um embrulho, que veio numa bonita sacola. Eram livros que ele me trazia de presente. Abri o pacote e me pus a manuseá-los. No da seguinte, telefonou. Marcamos um novo encontro.

O dia fora quente. Apesar da brisa que vinha do oceano, o calor de todo não se dissipara naquele entardecer. O sol se punha, e seus raios, já avermelhados, brilhavam sobre a superfície do mar. Aves brancas planavam rente ao espelho d’água; vez ou outra uma delas mergulhava para reaparecer num voo leve e límpido alguns segundos depois.

Estávamos nas imediações do Tênis e caminhamos em direção ao Sul. Quando o passeio e a ciclovia terminam e dali em diante se estende a grande faixa de areia, paramos e ficamos a apreciar toda a paisagem. Incentivei-o a continuar a caminhada, agora sobre as areias; despi as sandálias e desci a pequena escada que separa o calçamento do trecho da praia. Ele acompanhou-me, mas continuou calçado; pisava devagar, mantendo um equilíbrio precário, tentava evitar que os sapatos se enchessem de areia. Adentramos por cerca de quinhentos metros a área deserta. Depois paramos, virados para o mar, enquanto a noite caía e as luzes da orla, já distantes, reluziam como vaga-lumes.

“Esse lugar me faz lembrar uma namorada que tive quanto comecei a trabalhar nessa cidade”.

Pelas palavras dele, percebi que não tinha outras intenções em relação a mim que não fosse apenas a amizade. Não traria outra mulher ao nosso encontro, mesmo que feita de palavras, caso me desejasse. Ou seria inábil ao extremo.

“Uma namorada?”, incentivei-o a falar.

“Isso; uma pessoa que conheci quando cheguei aqui”.

“E o que houve?”.

“A maioria dos homens não gosta de falar sobre os próprios fracassos; mas vou contar a você. Sabe, até pensei em escrever sobre isso, mas o tempo passou e tudo ficou apenas como lembrança”.

“Quem sabe, ainda é tempo”, quis incentivá-lo.

“Os romances de amor muitas vezes têm um tema muito banal, mas acabam por fazer sucesso, você não acha?”.

“Sim, é verdade”.

Ele então começou a contar sua história.

“Cheguei nessa cidade em março do ano 2000, vim sozinho, fiquei a princípio num hotel. Trabalhava três dias na semana, dias seguidos. No último, voltava ao Rio, porque tenho lá um apartamento. Na semana seguinte estava eu aqui de novo, me hospedava no mesmo hotel. Num encontro de professores, conheci uma mulher que também era professora e fora nomeada pela prefeitura havia pouco. Embora ela lecionasse em outra escola, ficamos amigos. Almoçamos juntos no primeiro encontro, ela me deu, então, o seu número. Passamos a conversar e marcamos outro encontro. Ela compareceu toda animada. Descobri que também se hospedava num hotel. Começamos a nos encontrar todas as semanas, de repente ela passou a ficar no mesmo hotel que eu. Vinha de Niterói, para cumprir o seu horário bastava dormir duas noites aqui na cidade. Logo começamos a ter um caso. Apesar de ser casada, como me contou à época, seu relacionamento com o marido não ia bem; estavam para se separar. Alguns meses depois, aluguei um pequeno imóvel num prédio residencial próximo ao centro. Aí  ela passou então a dormir comigo. As noites em que permanecíamos na cidade, vivíamos um relacionamento ardoroso. No final daquele mesmo ano, ela realmente se separou. Nosso namoro se tornou mais constante e ela começou também a frequentar o meu apartamento do Rio. Mas sua vontade era morar em definitivo em M. Começou a procurar apartamento, pois achava que não poderia ficar no mesmo lugar que eu. Alegou que deixaria de vez Niterói. Uma vez que possuía muitas coisas, traria tudo para cá. Conseguiu um imóvel pequeno, próximo ao meu, e se mudou. Continuamos a nos encontrar, ora no apartamento dela ora no meu. Mas depois houve um período em que nos distanciamos. Ela, então, conheceu outra pessoa, alguém que morava quase ao lado. Daí para ficarem juntos não passou muito tempo. Acho que hoje estão casados”.

“E você, não quis se casar com ela?”

“Acho que o problema foi esse. Eu tinha saído de um relacionamento difícil e não queria casamento, pelo menos naquele momento”.

“Você não sofreu com isso? Já passaram alguns anos e do jeito que você conta parece que ainda tem mágoa”.

“Sofri no começo, mas depois vieram outras mulheres e tudo se resolveu. Tive uma mulher melhor que ela”.

“Essa história, bem contada, dá um romance”.

“Na época pensei em escrevê-la, depois, porém, perdi o entusiasmo. Hoje, quando me lembro de tudo, sinto que seria interessante escrever um romance ambientado aqui na cidade; mas não sei se teria condições”.

Voltáramos a andar pela praia; envolvidos pela conversa, atingíramos o outro extremo da faixa de areia, quase junto à lagoa.

“Está deserto aqui”, falou.

“Não creio que tenhamos problemas”.

Começamos a fazer o caminho de volta.

“Sabe o que me atraiu muito nela?”, continuou.

Virei o rosto a ele para demonstrar que o ouvia.

“Numa de nossas noites, descobri que ela tinha mais prazer caso eu me tornasse violento?”

“Como assim?”

“Numa das primeiras vezes, dei-lhe um ligeiro tapa. Aí passou a pedir que eu lhe batesse com mais força, até mesmo com o cinto.”

Apenas sorri. Ele ainda acrescentou.

“Na manhã seguinte, dizia que estava muito dolorida. Pedia para ver se havia marcas sobre as partes do corpo que ficavam descobertas. À noite, no entanto, queria de novo que eu a maltratasse. Pedia sempre que eu fosse cada vez mais violento, sobretudo no momento do orgasmo”.

Quando beirávamos o hotel Confort, voltamos ao calçamento da orla. Permanecemos então num pesado silêncio.

“Espero não ter estragado nosso passeio contando a você estas coisas”.

“Não, não; achei interessante”.

“Jura?”, ele quis saber.

“Juro”.

“E você?, me fala alguma coisa...”

“Eu?, não sou muito de falar”.

“Vamos beber alguma coisa?”

“Vamos”, concordei.

Durante boa parte do tempo em que permanecemos no pequeno restaurante, não voltamos à história que me contara. Mudou de assunto, falou sobre romances que lera e acabou por dizer que a literatura não deveria ser ensinada nas escolas, pois concluiu que as escolas destruíam tudo o que era bom.

“Quando você começou a gostar de ler?”, ele quis saber.

“Quando era bem menina. Sempre procurei os livros por minha conta. Hoje não sei dizer o papel da escola na minha vida, ou dos professores; nem mesmo tenho uma profissão em que se precise ser intelectual”.

“Intelectual?”, ele riu. “Você acha que eu sou intelectual?”

“Todos que trabalham com o intelecto são intelectuais, não?”

Riu de novo e falou:

“Nesse sentido, sim. Mas você não acha que as pessoas hoje em dia estão muito ligadas no corpo?”

“Sempre estiveram; você, não está também? Pois acabou de contar sobre uma relação de amor entre um homem e a mulher em que o corpo e a dor estavam em primazia...”

“Boa palavra: primazia”.

Depois de ter bebido dois dedos do chope, acariciei-lhe um dos braços e disse, enfim:

“Olha, sabe de uma coisa, você precisa ser mais carinhoso!”, comecei a rir.

Mas não nos beijamos ainda naquela noite.

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