sexta-feira, abril 02, 2010

Meu poeta me deixou nua!

Estava tomando o café da manhã no restaurante do hotel Ibis, no centro do Rio. Tinha viajado com a grife, de BH; durante dois dias participamos do Fashion Rio. Os desfiles atingiram incrível sucesso. Na última noite, arranjara um admirador. Não é de se espantar que eu sempre tenha muitos enamorados, mas o mais recente dizia ser poeta. Dali a pouco iríamos embarcar de volta para BH, mas enquanto o transporte para o aeroporto não chegava...

É Fábio o seu nome, diz ter assistido a todos os nossos desfiles, e que ficou apaixonadíssimo (foi essa a palavra usada por ele) ao me ver entrar e sair, cada vez com uma roupa diferente. É sua a canção: “a partir daquele momento já não consegui tirar-lhe os olhos, toda vez que deixava a passarela meu coração palpitava desejando vê-la mais uma vez, altiva e galharda”. Galharda? Há quanto tempo não ouvia essa palavra. Talvez num poema de Gregório de Matos, ainda nos bancos escolares.

Após o dia de desfile, enquanto aguardava o momento de voltar ao hotel, tal homem, digamos jovial, me abordou. Trazia em uma das mãos um ramalhete de flores amarelas. Desculpava-se por tê-lo comprado às pressas de um vendedor que cercava casais apaixonados. Aceitei o mimo. O extravagante poeta pôs-se a declamar veemente uns versos feitos em minha homenagem. Sou uma mulher desinibida, mas não nego que suas palavras cheias de ênfase me fizeram corar. A chegada do veículo interrompeu o idílio. Tivemos de entrar logo e partir, pois havia um enorme congestionamento nas cercanias.

Na porta do hotel, após saltar do automóvel, vi-me cercada de novo por ele. Apareceu não sei de onde. Disse em voz melódica: “Para tão longo amor tão curta a vida”. Apressou-se em completar: “é Camões, mas gostaria que fosse meu.” Enquanto a equipe e as outras modelos entravam no hotel, permaneci no passeio, sob um céu coberto de estrelas e uma lua em minguante. “Não vá se atrasar, Lena, amanhã partimos às 8;30h”, soltou melíflua uma das responsáveis pelo pessoal da grife. Seus olhos tinham uma ponta de escárnio. Oh, como se o assédio masculino aos nossos calcanhares e pernas já não nos fosse peculiar. Meu poeta, porém, era diferente. Seus olhos expressavam uma melancolia jamais vista; seu amor brotava de corações renascentistas apaixonados, homens que não tinham alternativa senão amar em silêncio suas senhoras, embora nem mesmo elas se soubessem muitas vezes objetos de ardores insuperáveis.

Em qualquer outro lugar, deixaria o apaixonado a ver navios, mas no Rio, apesar de cidade à beira mar, preferi navegar com ele em um mar liso, em que as estrelas nos apontavam o norte, ou o sul. Já não sei.

“O que propões? Não te demores, já que me custa o tempo, ainda que falemos ao modo do teu poeta maior, cantor de idílios e de viagens impossíveis.”

“Campos cheios de prazer, vós que estais reverdecendo, já me alegrei em vos ver; agora tenho a temer que entristeçais em me vendo.”

“Saiamos já daqui, leva-me, mas cuida, que sou louça fragílima.”

Entramos pela rua da Carioca. Meu poeta tomou de um táxi, embarque inesperado, visava estratégias inenarráveis.

Deslizamos, a princípio sem destino. O motorista, tal qual a guiar coche com moço disfarçado a ponto de tornar mulher moça última e breve, não ousou dizer palavra. Trafegava como navegante cordato e solitário.

“Se desejos fui já ter, serviram de atormentar-te?”, soou a voz apaixonada de meu raptor.

“Não me atormentas, embrutece-me o espírito a fome, e mancha-me a alma alguma vulgaridade.”

O veículo escorregava ligeiro por vias que nos levavam a céu aberto e com o mar à borda. Numa das transversais, meu poeta sinalizou, o homem entrou à direita, depois subiu uma rampa e nos deixou na antessala do que seria um restaurante. Feriram-me os olhos lustres altos e pingentes de cristal.

“A vida, si; que uma áspera mudança não me deixa viver tanto um coração”, atirou-me.

Devolvi-lhe:

“Se hei de viver, enfim forçadamente, para que quero a glória fugitiva duma esperança vã que me atormente?”

“Em mim podeis, Senhora, ir começando, que claro se conhece bem se entende amar-vos quanto devo e quanto posso”, ainda não foi aí que me tomou nos braços, mas o primeiro beijo fui eu a precipitar-lhe.

O jantar transcorreu ao tilintar vagaroso dos talheres. Coube a mim escolher apenas antepasto. Adoro salame, saboreei-o junto a poucos legumes em conserva. Molhou-me os lábios uma taça de champanha. Meu acompanhante, ainda ao gosto clássico, também comeu pouco e o que mais fez foi deleitar o olhar em direção à justa mulher.

Na saída, o mesmo automóvel veio a nos levar. Passeamos pela orla marítima. Relembramos raptos e piratas. Mas meu recente enamorado não me tocou. Em contrapartida, quis presenteá-lo com mais beijos. O vinho nos havia contaminado, mas disfarçávamos o desejo.

“Aflige-me, senhora, vossos olhos, esquecê-los não já me será amor.”

“Queres tocar-me?”, ainda arrisquei quase numa penumbra de silêncio.

“Desejaria-vos, por inteiro, entre meus braços e desejos.”

Sussurrei:

“Beija-me, pois não teremos muito tempo.”

“Levar-lhe-ei como clandestina.”

“Parto cedo, não ouso acompanhar-te, tens tempo ainda em movimento.”

Não devo relatar o que vivemos na noite curta. Mas foi intenso o ardor. Convenceu-me a pequeno apartamento. Após subirmos alguns degraus, deixei escapar a roupa, os braços, as pernas. Ele, pleno, contentou-me o desejo. Meu corpo era leite quente entre mãos trementes.

Às três e trinta entrei em meu hotel por porta de serviço, arquitetura de miragens. Não houve homem na vigia, dormia talvez, nem soou algum tipo de alarme. Antes, porém, na despedida, meu amante pediu-me mais um mimo.

“Já te ofertei todas as posses, pirata arredio, de que mais queres despojar-me?”

“A lembrança, senhora; sereis estátua de Afrodite em terra imerecida. Piedade! Antes, o mestre grego e seu ideário me contentavam; agora, já nada sei de meu triste fado.”

“Oferto-te minha pele rósea, fibra de puro algodão; experimenta-a; deposito-a sob tua guarda.”

“Não posso deixá-la desprotegida, minha senhora, nem pretendo-a em apuros.”

“Há quem pense que a uma mulher basta-lhe o corpo; mas é preciso que lhe sobre a alma.”

A seguir, soou sua voz de bardo:

“No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida.
Na terra tanta guerra e tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida.
Onde pode ocultar-se o fraco humano?
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”

“Lena, só falta você, a bagagem já está embarcada”, ouvi a voz da nossa responsável enquanto ainda sorvia a xícara de café. Levantei-me, deixei sobre a mesa o gole derradeiro.

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