quinta-feira, junho 24, 2010

Soltinha

O inverno faz lembrar namoros antigos, aconchegos, toques e roçar de corpos, passeios após o cinema já a madrugada a vingar, rostos colados, fumaça escapando junto a palavras, carícias, casacos macios, abraços e suspiros.

Certa vez, tive um namorado fantasista. Possuía uma imaginação... Fugíamos pela cidade escura, bairros boêmios, carros fechados, orla marítima; corríamos um após o outro até conseguir o abraço incansável, o beijo úmido, nossos hálitos mornos, noturnos. Numa noite de frio intenso, um frio de cortar a pele, de avermelhar os rostos, punhal a contrapelo capaz de suspender o arfar de peitos enamorados, pediu-me ele: “vista o casaco de peles, aquele que desce até abaixo dos joelhos.” “Sim”, comecei com a breve sílaba, respirei: “há muito não o tiro do armário.” “Há mais uma coisa”, continuou. “Qual?”, olhei para ele curiosa. “Vista só o casaco, nada mais, o casaco a roçar a pele lisa.” “Apenas o casaco?”, franzi-me assustada. “Isso, só o casaco, não basta? Com todo esse frio, o casaco e o calor do meu corpo”, sentenciou.

Saímos depois da meia-noite. Foi uma noite longa. Após bater a porta, confesso que tremi. Não de frio, mas devido a uma ponta de arrepio, ansiava pelo que estava por vir. Ia elegante, o corte do tecido acompanhava minha cintura, o casaco não deixava meu corpo indefinido, como normalmente acontece quando vestimos roupa de tecido grosso. Entramos num automóvel, um táxi com destino a um dos bares da Lagoa. “Sentes frio?”, quis saber. “Sou gelo sem as meias.” Enfiou então uma das mãos por entre os botões inferiores.

No bar, bebemos vodca, como os russos fazem no inverno deles. À volta homens e mulheres agasalhados com lã, xales e cachecóis. Olhei para o meu namorado e descobri que ele estava imaginando-me nua, sentada no mesmo lugar, de pernas cruzadas e levando o copo aos lábios para mais um gole de vodca. Ficamos no bar até às três da madrugada. Algumas pessoas entraram, outras saíram. O garçom, depois das duas, nos ofereceu uma mesa melhor, num local interno, onde havia uma mulher tocando piano. “Que tal?”, disse meu namorado. “À esquerda, após a entrada, há um lugar para a senhorita pendurar o casaco.” “Obrigada”, falei sem temor. Não deixei de sorrir. Depois de duas doses de vodca, estava soltinha, deslizando por sob o casaco de peles. Meu namorado não acreditou quando eu mesma sugeri: “Vamos, amor.” Entramos no salão aquecido.

Na volta, ainda no táxi, rimos muito. Tentávamos imitar os olhos arregalados do maître: “ senhorita, por favor, pense na sua saúde, lá fora está muito frio.” Eu a responder, como se fosse a mulher mais vestida do mundo: “mais uma vodca, por favor.”

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