Para contar essa história, preciso ir devagar, como quem não
quer nada. E você para me ouvir, precisa ter toda a paciência do mundo. Vamos a
ela.
Tudo começa no Sushi Ipanema. Sabe onde fica? Numa daquelas
ruas transversais à Visconde de Pirajá, não sei se a Garcia ou a Aníbal. O
restaurante é requintado, parece feito todo de madeira. Há a parte externa, com
um pequeno tablado e algumas mesas sobre ele. Depois, o vidro, e o ambiente
continua do lado de dentro, com ar-condicionado, mais garçonetes e o balcão
do sushiman.
Fui com o meu namorado. Ainda não falei sobre ele, mas com o
passar da história você vai conhecendo-o pouco a pouco. Chegamos por volta das
dez da noite, uma quinta-feira, um bom dia para namorar. Havíamos, numa
outra vez, ficado sobre o tablado, naquela espécie de varanda. Mas, nesta, meu
namorado quis entrar. A garçonete desliza a porta e sorri para nós. Não é
função das garçonetes observar as roupas das clientes, mas aposto que depois
ficam conversando entre si sobre cada uma que frequenta o restaurante, e tenho certeza de que esta irá comentar com suas amigas
sobre o comprimento da minha saia. Pois é, visto uma saia curtíssima.
Destas que estão na moda. As pessoas olham e pensam que estamos de short, mas
na verdade se trata de uma saia. O tecido parece volumoso em algumas partes, o
corte não é totalmente regular, estreita-se e sobe um pouco na lateral externa
das pernas. É lógico que para sentar com tal roupa é preciso cruzar logo as
pernas, pois quanto mais curtas as extremidades tanto mais aparecem nossas
coxas. Alguém há de dizer: “que escândalo”, mas é assim que nos vestimos, é
assim que nós, mulheres, saímos à noite em Ipanema. A blusa branca de algodão tem alguns detalhes bordados, mas esses detalhes também brancos, em relevo, forçam o olhar das pessoas na minha direção. Ainda digo que essa minha blusa de algodão é muito fina, o branco é
quase uma transparência. Assim fico mais em foco, os homens desejam certificar-se se uso ou não sutiã. Para dar mais elegância à minha estatura, venho sobre saltos bem altos, comprados numa loja da Garcia D’Ávila, onde há as melhores marcas. O
sapato é revestido de veludo, mas as tiras são de um couro reluzente. Logo que
sentamos um funcionário vem em nossa direção. Entrega-nos dois cardápios
gigantescos; primeiro a mim, depois ao meu namorado. Olhamos minuciosamente o
que vem escrito. Há entradas, pequenas delícias como tira-gostos, depois vem os
pratos, uma série deles e, enfim, as sobremesas. As bebidas são oferecidas numa
carta à parte. Após percorremos várias páginas do cardápio, optamos pelo
sashimi. Tão delicado, o sashimi chega a ser uma refeição sensual. Imagine,
estou quase nua, a saia curtíssima e a blusa transparente, o sutiã indefinido
sob a roupa, imagine, eu vestida assim a
segurar aqueles dois palitos que os japoneses chamam de hashi, a seguir mordiscando o sashimi. Talvez pouca coisa seja tão sensual, ou mesmo sexual, como isso. Aproveito para enfeitiçar ainda mais o homem que está comigo. Não
demoram a vir as bebidas. Meu namorado não é muito de bebidas destiladas,
prefere cerveja, e nesses lugares elas são das melhores marcas. Não gosto de
cerveja, ou melhor, nenhuma mulher deveria gostar de cerveja. É uma bebida
deselegante. Além de logo tornar a pessoa aflita para ir ao toalete,
não custa para engordar. Uma mulher charmosa, conquistadora, deve beber algo
curto e estimulante. Talvez alguma bebida colorida, pouco álcool, apenas para
deixá-la um tantinho mais alegre, mais sorridente. Quero uma pequena dose de
saquê. Não me esqueço de alertar o garçom para pedir ao barman que borde as extremidades do recipiente com bastante sal, e que suavize a bebida com algumas
gotas de limão. Conversamos, eu e o namorado, enquanto esperamos os pedidos. Discreta,
observo as pessoas. Há outras mulheres nuas, além de mim. Todas se esforçam para serem muito sensuais, sexy, como se costuma dizer. Uma veio pintada de modo
exagerado. Mas a pintura até que lhe cai bem, dá-lhe aparência de personagem em peça
expressionista. Outra quase mostra os seios, a blusa cavada, um pouco acima do
umbigo, nada de top nem sutiã. De repente, meu namorado faz uma observação.
Você já reparou? As mulheres vestem pouca roupa apenas
quando saem de casa tarde da noite, e correm para voltar enquanto dura a madrugada, tentam segurar as últimas sombras, não querem que a claridade do dia as
surpreenda.
Isso mesmo, às vezes saímos quase nuas à noite mas temos de
voltar antes do nascer do sol. Já pensou, nua ao amanhecer? É a mesma coisa que
um homem abrir a porta do nosso quarto enquanto trocamos de roupa.
Já reparou?, volta a falar meu namorado, quando uma mulher sai de casa quase nua pensamos que se trata de um travesti.
É verdade, digo, as travestis gostam de andar mais nuas do que as mulheres.
Nuas ou nus?
Nuas. Porque há travestis muito
femininas; conheço uma que ninguém diz que nasceu com pênis.
Tenho um amigo que gosta de sair com travestis. Ele diz para
as mulheres mais íntimas que, caso conheçam algum, apresente a ele.
Você sabe que já perdi um namorado assim? Nunca pensei que
isso podia acontecer comigo, mas ele acabou indo com a travesti. E ela até
aquele dia era minha amiga. Tempos depois me encontrou e pediu desculpas. Mas
na verdade ela não teve culpa. Meu namorado era muito bonito e também um exímio conquistador.
Essa história deve ser interessante, diz meu namorado
enquanto a garçonete lhe completa o copo de cerveja.
Ela era, e ainda é, verdadeiramente linda. Até a voz é de
mulher. E se veste de tal forma, que os homens ficam encantados. Trata-se de
uma pessoa de talento, ela é arquiteta. Quando se fala em travesti, logo se imagina alguém extravagante, que vive de prostituição. Ela, ao contrário, tem uma
firma, faz desenhos de casas lindíssimas e de interiores, ganha uma fortuna com
esse trabalho.
Como você a conheceu?
Num coquetel, e através de uma amiga que a contratou para
uma reforma e ampliação da casa.
Ah, interessante.
Todos os homens na tal festa ficaram à sua volta, quase não
se conseguia falar com ela.
E como vocês se tornaram amigas?
Depois, no final, a dona da casa me chamou para acompanhá-la
na conversa com Suzane, a arquiteta. Então ficamos a sós. Identificamo-nos
tanto uma com a outra que marcamos de nos encontrar num dos dias que se
seguiram.
E ela, com tanta atribulação, compareceu?
Sim, com atraso de uma hora, mas compareceu. Continuamos
saindo. Foi então que um dia tive a infeliz ideia de levar o meu namorado.
Ele gostou dela?
Se gostou? Amou. Logo notei, e na primeira vez. Ainda fiz a
asneira de chamá-lo para mais um encontro com ela.
Como é a conversa de um travesti?
Nada de mais. Como a conversa de uma mulher. Primeiro falou sobre o trabalho. Muito depois, reclamou
de algum dos homens que teve. Como também ela era extravagante, disse que eles ficam excitadíssimo com o fato de ela usar roupas muito curtas. Falou também
que ter um pênis inflama muito o relacionamento.
Dizem que se operam, perdem a graça, observa meu namorado.
É, parece que sim. Contou também sobre homens que se tornam tão
excitados, que lhes roubam a calcinha para virem como elas farão para esconder o pênis solto sob a saia.
É mesmo?, meu namorado ri, surpreso.
Verdade. Disse que é preciso saber com quem se está saindo.
Caso contrário, há muitos que fazem maldade, espancam a travesti e a deixam nua
por aí.
Ela já passou por isso?
Não sei. Se já, não chegou a contar claramente, apenas falou
do namorado que lhe roubava a calcinha.
Mas há homens que roubam também a calcinha das mulheres, meu
namorado me sorri de novo.
Claro que há, e um
deles está à minha frente. E quer sua namorada apenas de casaco, sem
nada por baixo, ou nua por inteiro no banco do automóvel... O que mais mesmo? Mas
ouça, fazer isso com uma travesti é deixá-la numa situação constrangedora. Com uma
minissaia, assim como esta, onde vai esconder o pinto?, aponto à minha saia.
Eles dão um jeito.
Dão? Então você sabe mais do que eu e ela.
Meu namorado disfarça. Chega o garçom com um pequeno barco pleno
de sashimis. Peço mais uma dose de saquê.
Amor, comprei pra você uma lingerie linda, é uma meia
inteiriça, do tipo arrastão. Depois quero que você vista, fala ele.
Quer que eu vista aqui, no restaurante?
No restaurante, não. No toalete. As pessoas que já repararam
você vão ficar louquinhas, não vão entender nada, ele morde delicadamente um pedacinho de peixe cru.
Amor, já que estamos num jantar tão sensual, quero lhe
perguntar uma coisa, falo decidida.
Pois, pergunte.
Não notou nada de extravagante em mim, além da roupa?
Notei, mas não quis falar. Você veio sem, de novo, não?
Isso mesmo.
Você é corajosa...
Além de corajosa, sou muito feminina, você não acha?
Claro, como não achar?