Algumas histórias são inventadas, mas de modo tão
inteligente que são mais interessantes do que a vida real. Prefiro que meus
leitores acreditem que minhas narrativas sejam apenas invenções. Na maioria delas,
sempre acabo nua.
Outro dia andava pela praia. Os verões são propícios a
caminhadas e banhos de mar ao amanhecer. Nessas horas ainda vão poucas pessoas
pela orla, apenas esportistas e um ou outro jovem mais adiantado. Estava eu nas
proximidades do posto 5 quando um homem mais jovem do que eu me olhou
continuamente. Olhei também para ele, e durante uns bons dez segundos. Foi o
suficiente para ele me seguir. Quando o percebi às minhas costas, pensei, como
saio dessa? Mas será que eu queria sair mesmo? Ele começou com aquela conversa
de sempre.
Você é muito elegante, tem um corpo maravilhoso...
Para desfazer a mística em que ele me envolvia, perguntei:
Você contou direitinho quantos traços tenho no rosto?
Você é linda!
Acredito, ironizei.
Não estou mentindo, assegurou.
Jura?, eu queria certeza.
Paramos num dos bancos do calçadão. Ele trazia uma sacola. Sempre
curiosa, perguntei o que ia ali dentro.
Um livro, respondeu, quer dar uma olhada?
Sem que eu respondesse, tirou da bolsa um livro de Isaac
Bashevis Singer.
Você é judeu?, mostrei interesse.
Não, mas admiro o escritor, você já leu?
Respondi aquele livro não, mas li um de contos,
do mesmo autor.
Gostou?, quis ele saber.
Gostei, principalmente do jeito como conta as histórias,
sempre com um... com um... faltava-me a palavra.
Com um sabor todo especial, talvez amor e perplexidade,
acrescentou.
Isso mesmo, todo autor precisa sentir perplexidade para
contar uma história, é como se jamais houvesse outra semelhante.
Isso mesmo.
Ficamos em silêncio durante alguns segundos.
Você vive de quê?, perguntei.
Você é incisava, não?
Você acha?
Pelo jeito que você falou, sim. Mas vejamos, silenciou, fez
como se precisasse respirar um pouco mais fundo; vivo de leitura, continuou.
De leitura? Como alguém pode viver de leitura?
Pode sim, é perfeitamente possível, não vou dizer agora, mas
uma hora dessas conto.
Uma hora dessas?, será que vamos nos encontrar de novo?
Claro que vamos, assegurou o homem, ainda com o livro nas
mãos.
E como você pode ter certeza disso?
Tenho certeza absoluta, e o que me diz isso é a literatura.
Como você pode saber?, eu insistia.
Sei, porque você também é uma leitora, sei por causa da
literatura.
Literatura?, o que pode a literatura?, olhei para ele sem
desviar os olhos, senti que eu fazia uma pergunta crucial.
Na verdade, ponderou, a literatura nada pode, isso é
verdade. Mas é possível perceber quando duas pessoas vão passar a se encontrar
daqui pra frente, concluiu.
Continuamos a andar pela praia. O sol ia mais forte. Despedi-me
dele com um beijo no rosto. Entregou-me um pedacinho de papel com o
número do seu telefone.
Não vou atrapalhar sua leitura caso telefone?, ainda acrescentei.
Vai, mas não faz mal. Você parece ser uma pessoa especial.
Dois dias depois telefonei para ele. Marcamos encontro num café, na Rainha Elizabeth. Quando cheguei, ele já se sentara numa
mesa de canto, sobre o passeio. Nada pedira, esperava por mim. Trazia o mesmo
livro que carregava na praia no dia em que nos conhecemos. Beijamo-nos. Sentei
de frente para ele. A garçonete se aproximou. Fizemos-lhe os pedidos.
Já avançou muito na leitura?, perguntei.
Umas cinquenta páginas. Tirei parte dos dias para escrever,
sorriu meio sem graça após a última palavra.
Você também é escritor?, eu, como sempre curiosa.
Um escritor amador.
Você vive apenas para ler e escrever?
Não, também passeio, lembra que segui você na praia?
Lembro, mas também levava um livro.
Sempre levo um livro, isso é verdade, mas não quer dizer que
não goste de outras coisas.
Que tipo de histórias você gosta?, olhei diretamente seus
olhos.
De todas, caso sejam bem escritas.
Você não tem namorada?
Por que a pergunta? Por acaso você quer me namorar?
Rimos.
Às vezes tenho, sim. Mas acho melhor a amizade.
Amizade? Com homens ou mulheres? Minha face devia estar
transmitindo certo ar de suspeição.
Mulheres são melhores para se ter amizades.
Mas você não sente necessidade de namorar?
Namorar?, falou e voltou os olhos castanhos para mim. Namoro.
Sei muitas histórias engraçadas e interessantes sobre
namoradas. Você que gosta, poderia escrever um conto ou mesmo uma novela.
Por que você mesma não escreve? Às vezes prefiro histórias sobre
filosofia.
Filosofia? Não seria mais divertido uma narrativa sobre namorados?
E olhe o tanto de filosofia que há nisso.
Depende.
Como? Acaso você é paulista?
Por que está me perguntando isso?, mostrou-se indignado.
Os paulistas apelidaram esta cidade de balneário, acham e que cultura não pode nascer à beira mar.
Não, não sou paulista.
Escrevo também, falei.
Sobre o quê?, quis ele saber.
Sobre várias coisas. Algumas pessoas podem achar fútil o que
escrevo, mas acredito que há filosofia nas minhas histórias divertidas.
Você escreve sobre filósofos.
Claro que não. Escrevo contos ambientados aqui nas
proximidades.
Contos de que tipo?, ele ainda segurava a xícara e tomava
talvez o último gole.
Histórias de amor, histórias noturnas, às vezes algum sexo.
Sexo? Arregalou os olhos.
O que tem isso? Nunca leu um conto erótico?
Ah, sim, erótico, já li. Mas não acho muita graça nesse tipo
de literatura.
Então me fale agora sobre o que você escreve.
É difícil definir, silenciou e esperou que eu me manifestasse.
Permaneci também em silêncio.
Já passava das seis, mas a cafeteria continuava movimentada.
Era a hora do rush. O trânsito fluía barulhento pela Rainha Elizabeth. Vez ou
outra precisávamos aumentar o volume de nossas vozes. Tentei ouvir o que se
conversava nas outras mesas. Os assuntos pareciam versar sobre situações
corriqueiras, como compras num shopping, a perspectiva de uma viagem, ou um filme
concorrente ao Oscar. De repente, meu interlocutor voltou ao diálogo.
Escrevo uma espécie de autobiografia misturada com ideias
filosóficas; coloco em cena algum personagem baseado num amigo ou numa amiga, geralmente reflexões relacionadas a alguma conversa que travamos.
Já sei que vou virar personagem de suas histórias.
Será?, ele indicou hesitação.
Não mereço?, franzi o cenho.
Não é que não mereça. Acho que é o contrário disso. Talvez
seja difícil colocar no papel o que estamos conversando.
Não é difícil, não, adiantei, tudo que se fala ou que se
pensa é possível de ser colocado em palavras, afinal, os pensamentos não
existiriam sem as palavras, ou sem o idioma, quero dizer.
Você concorda que há obras sem conteúdo?, ele parecia aflito
com a questão.
Nada é sem conteúdo, afirmei.
Mas caso contemos apenas um fato acontecido, com isenção,
apenas a ação?
Toda ação para ser compreendida precisa de um embasamento.
Ao contar simplesmente um fato acontecido nessa esquina ou ouvido em algumas
dessas mesas você precisa que seu interlocutor tenha um repertório para
compreender. É isso que revelará a capacidade de passar o fato adiante.
Não falo nesse nível. Caso eu conte um atropelamento e ponto
final. Terá esse relato alguma graça?
Graça, não sei, mas terá um sentido e, dependendo como você
conte, revelará um dado da modernidade. Ela tornou os seres humanos
extremamente frágeis.
Os seres humanos sempre foram frágeis, insistiu.
Sempre foram. Uma carroça sempre foi mais forte do que um
humano; pode-se dizer o mesmo sobre a força de um cavalo. Mas cavalo e carroça
nunca correram tanto e jamais foram tantos como esses automóveis. A
industrialização criou a repetição, a multiplicação, e isso, na maioria das
vezes, gera o massacre.
Massacre?, repetiu parecendo não entender minhas palavras.
Lembra as guerras do passado, quando não havia arma de fogo?, insisti.
Isso vem ao caso?
Matar ou morrer era um ato entre uma pessoa e outra. Com a
modernidade, veio a bomba. Uma explosão é morte em massa, a morte em escala
industrial. Você é ou não um filósofo?
Ufa, falou e sorriu. Um sorriso triste.
Você quer ir embora?
Vamos andar um pouco, convidou.
Vamos, andemos pela orla.
Pagamos a despesa e fomos para a beira da praia.
Logo que começamos a caminhar pelo calçadão, falou:
Naquele nosso primeiro encontro, você vestia um biquíni que
era uma coisinha à toa.
Você gostou.
Ora, claro. Entusiasmou-se.
Você vai me ver de biquíni mais vezes. Sabia que já tomei
banho de mar nua, nessa praia?
Verdade?, arregalou os olhos.
Verdade. Caso você ande por aqui em torno das cinco e meia
ou seis horas da manhã, vai encontrar pessoas tomando banho de mar nuas. Não é
que elas o façam de propósito. É que estão por aqui andando, de repente sentem
vontade de mergulhar. Como não há quase ninguém na praia, é fácil tirar a roupa
por alguns minutos e mergulhar. Já fiz isso muitas vezes.
Jura?
Pra que jurar? Você não acredita em mim?
Acredito, falou.
Às vezes venho caminhar e resolvo dar um mergulho. Olho para
um lado, para o outro, tiro a roupa e entro. Se vejo alguém se aproximar, não
tardo, volto, visto o short e vou na direção oposta.
Você é mesmo muito engraçada. O rapaz demonstrava
entusiasmo.
Já aconteceu de grupos inteiros entrarem na água sem roupa,
num fim de madrugada. Mas isso já chama atenção. Acho melhor sozinha, e quando não
há ninguém perto. Quem sabe, você possa contar um episódio desses em suas
histórias.
Não vai ficar bom. O que as pessoas vão pensar de mim? Quero
escrever coisas sérias.
Você pode escrever coisas sérias, aproveitei suas palavras.
Coloque esse episódio como algo adjacente, as pessoas vão prestar atenção na seriedade
da história e também irão admirar o episódio.
Mas isso é possível?
Claro. Tudo depende da mão, quero dizer, não pode ser muito,
apenas sugestões. Já escrevi uma história com um fato excitante como algo que
pudesse ter acontecido ao acaso.
E como foi?
Você é escritor, não me devia fazer tais perguntas.
Você parece ser uma escritora mais capaz do que eu. Conte, por
favor.
Foi uma história mais ou menos assim. Um senhor (já passava
dos sessenta) paquerava uma mulher um pouquinho mais nova do que ele. Moravam
no mesmo prédio. Tarde da noite, ele começou a ir até às proximidades do
apartamento dela para espioná-la. Queria descobrir o que a mulher fazia, como
vivia etc. Numa dessas fugidas, deu com outra mulher batendo à porta da tal
senhora, só que a visitante estava nua. Ele teve tempo de se esconder, num
desses vãos de escada e observar. Seu coração batia tão forte, que parecia
querer saltar pela boca. Pôde perceber a senhora abrir a porta e acolher a
namorada nos braços, como um homem o faria. No final, descobriu que a mulher
que ele admirava tanto era lésbica. Acabou achando interessante a brincadeira
das duas. Tentou descobrir a mesma cena outras vezes. Mas não teve a mesma
sorte.
E o que ele fez da vida?
Nada. Continuou vivendo sua vida de solidão.
Sempre saía para passear no final da tarde.
Você tem razão, disse meu interlocutor, trata-se de uma
história séria. Uma história sobre a solidão.
Então, entendeu agora? Todos nós somos muito sós, às vezes
resolvemos nos divertir, assim a vida passa a ter algum sentido. Você não acha
que Shakespeare quis se divertir com todas aquelas histórias que escreveu?
Nunca tinha pensado nisso, mas agora começo a compreender.
Vamos, então, disse a ele, venha me pegar? Corri pela areia
na direção do mar. Ao chegar à beira, fingi que iria mergulhar, mas apenas gritei: venha, estou esperando por você!
Ele então me abraçou.
Ele então me abraçou.
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