Senti na alma uma espécie de calor que só me tomava em ocasiões especiais. O
pátio ainda estava úmido do orvalho da madrugada. Olavo, do portão, continuava
a me olhar.
“Por que você não veio mais cedo? Ou mesmo ontem à noite?”,
perguntei enquanto levantava a trava do portão, mas sem demonstrar que ia em brasas por causa dele.
“Eu bem que tentei, mas as estradas estão intransitáveis, a
tempestade... Não foi por mal.”
“Sei dos estragos, vi na TV, os prejuízos são grandes, há
muitos desalojados, parece que foram levados para as escolas. Dizem que duas pessoas
morreram.”
“É o que estão comentando na estação de trens.”
“Foi bom você ter vindo, mesmo a essa hora, as crianças
estão dormindo.”
“Então, é melhor eu não entrar, não quero incomodar”, ele
fez de conta que partiria.
Não, por favor, entre, você não incomoda. Eu queria receber
você em grande estilo, sozinha em casa, ter uma noite inteira para nós dois. Separei uma garrafa de vinho. Quando percebi que você não chegaria, peguei as
crianças na casa da Vânia.”
“Então vamos beber o vinho agora”, falou e sorriu.
“Entre, por favor.”
Passamos pela porta de vidro, atravessamos a sala e fomos
para a cozinha. Olavo sentou numa cadeira que havia na copa, mais adiante
ficava a área de serviço.
“Não está gelado, aí?”, perguntei.
“Não. Para quem veio lá de fora, está uma maravilha”, ele esticou os braços e cerrou os olhos, um gesto de quem se descontraía..
“Você não prefere café, no lugar do vinho?”
“Não. O vinho, por favor.”
Depois que servi duas taças, um pouco de queijo e umas
rodelas de pão, perguntei sobre seu trabalho.
“E a composição?, uma sonata, não?”
“Ah, está caminhando. Nesses dias conturbados não foi
possível ir adiante. Mas assim que as coisas estiverem nos devidos lugares acho que conseguirei terminar.”
“Que bom”, sorri, “sempre adorei sua música.”
“Você é minha musa inspiradora”, ele deu dois passos até onde eu estava, me
beijou e voltou para a cadeira.
“Musa, eu? Com quase quarenta anos, dois filhos
pré-adolescentes?”
“Isso não a impede de ser minha musa.”
Ri de novo. Que bom você pensar assim. Espero que seja
verdade.
“Está a duvidar de mim?”
“Não sei. Aprendi a desconfiar dos homens.”
“Depois vou ao piano e você canta aquela ária da Tosca? Pra
mim, você sempre foi a melhor nisso”, ele demonstrou certa ansiedade no final
da pergunta.
“A área da Tosca?”, é muito triste. Para eu cantar o trecho,
preciso de inspiração, fechei os olhos e fingi que me compenetrava.”
“Espere, vamos beber primeiro”, Olavo alertou.
“Sei, não vou cantar agora, na verdade nem sei se consigo
cantar em meio à catástrofe.”
“Catástrofes sempre vão ocorrer. Eu estava pensando quando
saltei na estação: daqui a cinquenta anos mais da metade das pessoa vivas hoje estarão mortas; mais cem anos e ainda haverá pessoas caminhando por
essas ruas, mas o restante das que vivem hoje também estarão mortas, inclusive nós.”
“Que conversa interessante”, ironizei. “Você se tornou um
filósofo existencialista depois do nosso último encontro?”
“Não. O que digo, porém, é verdade”,
sentenciou.
“Quer uma história engraçada para animar o ambiente, enquanto terminamos o vinho?”
“Engraçada?”
“Isso mesmo, e põe engraçada nisso; vamos nos divertir um
pouco. Sábado passado, a vizinha aqui do lado chegou pelada em casa.”
“Verdade?”
“Claro, por que eu mentiria?”, olhei para Olavo e levei
minha taça à boca.
“O que aconteceu?”
“Não sei, e ela não estava triste. Saiu do carro, abriu o
portão e correu para a porta de casa. Ainda mandou um beijo para quem lhe deu
carona.”
“Seria uma aposta?”, Olavo insinuou.
“Não sei. O que percebo é que se trata de uma pessoa muito
atirada.”
“Então foi isso, ela atirou as roupas fora.”
“Quem sabe? Certa vez ouvi falar de uma mulher que gostava
de ser deixada nua na estrada. Seu namorado dava umas voltas e depois voltava
para buscá-la. Acontecia sempre à noite.”
“Vai ver o namorado não voltou. E ela teve de recorrer a outra
pessoa. Talvez a um estranho.”
“Mas e o beijo? Ela lançou um beijo ao homem, toda animada.”
“É, então há um enigma”, Olavo falou enquanto tomava o
último gole de vinho.
“Vamos esperar as crianças acordarem, aí você senta ao piano
e eu canto a ária.”
“Ok. Que tal mais uma taça?”, Olavo levantou a garrafa e
encheu a sua, depois derramou mais vinho na minha.
“E então?", queria ainda saber sobre a vizinha.
“Não sei, não a vi mais. Mas é lógico que não vou ter
coragem de perguntar sobre isso.”
“Fique a espreita, quem sabe acontece outra vez?”
“Não, nada disso, não gosto de tomar conta da vida dos
outros. Eu a vi por mero acidente. E ela nem deu pela minha presença. Vamos
deixar a mulher andar nua o tanto que quiser!”
Brindamos a última taça. Sentei no colo de Olavo.
“Nada de mulher pelada dentro da noite. nem conversas comezinhas à beira do fogão”, acrescentou.
Rimos os dois e nos beijamos.