quarta-feira, agosto 12, 2015

Fogo

A moça respirava modesta, calma. Já esperava que tal surpresa não tardaria. Arriscava-se com frequência e, ultimamente, vinha até mesmo exagerando. Por isso teve tempo de pensar, de examinar suas possibilidades, e a respiração era o que havia de mais importante, seria ela que lhe daria o prumo, a altivez, um sorriso ainda que distante e frio, um nada de mais à nudez às duas da manhã junto ao portão de entrada da própria casa. O homem, na verdade, foi quem demonstrou maior surpresa, uma espécie de susto e êxtase; a princípio, nada conseguiu dizer. Ela sentiu que viria uma pergunta, talvez quisesse saber se ela precisava de ajuda. A resposta, já pronta, seria o silêncio. Ninguém pede ajuda em silêncio. Talvez o pior fosse o correr dos segundos e dos minutos, porque depois do torpor inicial, depois daquela espécie de breve congelamento, o tal sujeito, antes estupefato, perderia pouco a pouco a rigidez e começaria a pensar. Aí então a ponta do iceberg, isto é, do perigo. Não se deve temer as atitudes das pessoas tomadas pela surpresa, mas das pessoas quando pensam. E quando derretesse o cascalho de gelo que cobria o homem, ela já não teria domínio sobre os acontecimentos. Era necessário que tudo se resolvesse em frações de segundos, caso não fosse possível, em meio minuto, daí em diante estaria nas mãos dele. Uma pasta escura a lhe lambuzar o corpo. Não tinha nada pra dizer e sabia que não devia desculpas, pois nada fizera de mal que exigisse tal pedido. O homem, porém, era um homem, da espécie mais masculina, um macho como um cavalo ou mesmo um touro, e para essas espécies as palavras não servem. Talvez ele achasse que teve sorte, que algo caiu do céu a seu favor, era um bem aventurado. E isso tudo sem formulação alguma, nada de conceitos, apenas a pele como entendimento. Despejaria sua macheza assim como despeja as fezes ou a urina, assim como almoça e não precisa saber o nome do prato. Ela era uma estátua que esperava o movimento da casa, mas a casa era escura, quase inabitada e, quem sabe, ela poderia ser tomada por uma ladra que age sem deixar rastros, sem precisar de roupas que soltem fios de algodão e lhe revelem. Virou de frente, encarou o desconhecido. Ele chegou mais perto, cobriu a luz que vinha da rua com seu corpo imenso. A sombra dele subiu pelo ventre de Aparecida. O que houve, moça?, ele não falou mas ela podia ouvir, era o torpor que ainda o cobria. Não merecia resposta. Impávida, as mãos estendidas lateralmente e a expressão de que o nu era ele. Olhe sempre numa direção indefinida, assim nada será presente, ela lembrou um ensinamento básico. O que houve, moça?, repetia a voz inexistente. Ante o silêncio da casa, ante os ruídos longínquos da estrada, ela diria não estamos sós. A resposta o desarmaria por trinta segundos intermináveis, ela tinha certeza. O que tem estar ou não a sós?, ele desejaria saber. Ela moveria os ombros, como se dissesse nada, não tem nada. Você vem comigo, ele sugeriu numa meia ordem, estou lhe oferecendo ajuda. Tirou o paletó e o estendeu diante dela, ocultando a si o corpo da mulher. Mas ela meneou a cabeça em negativa, não precisava de paletós, assim como ele nada podia ofertar a ela, nenhuma ajuda, ninguém na verdade precisa de ajuda, ela chegou a dizer. Ele a empurrou em direção ao pequeno muro. Ela não teve como contrapor, apenas a parede gelada a lhe apalpar as nádegas. Aparecida não queria perder o carteado. Vamos, ligeiro, enquanto há sombra, ela acrescentou. Sempre há uma saída. O homem ocupou todo o espaço, não queria deixar a noite em aberto. E ela sabia dos riscos desde o começo, sabia também que a altivez era um modo de resistência, não podia recuar. Aparecida mostrou os olhos grandes pela primeira vez, encarou o homem com olhos enormes, assustou-o. Venha cá, não fuja, não sou louca. Ele tremeu ante a palavra louca, chegou a retroceder dois passos. Volte aqui, era ela agora quem ordenava. Ou você se abre ou se deixa queimar, tanto é o fogo, disse a si mesma. Reparou, então, que estava só.

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