Você devia ter corrido de volta. A frase ressoava em minha
mente. Uma amiga, tempos depois, me falaria a mesma coisa. Mas o problema era
que eu sentia uma ponta de atração pelo homem, por isso não corri, por isso até
mesmo fiquei. E, quem sabe, estaria naquela praia até hoje. Os dias eram tão
longos no verão, eram entediantes, a única saída era a praia. Corria para lá e
ouvia o murmúrio do mar, sentia na pele o vento, gostava do sol à tarde, depois
das quatro e meia. Escolhia um pedaço de areia onde sabia que não seria
incomodada. Pra lá do Pecado. Deitada então sobre a toalha, ou sobre as próprias roupas quando ia apenas com as do corpo. Me punha a voar. Isso mesmo,
e como era bom o voo. Conseguia alçar sobre as areias, planar junto ao mar,
respingos da maré às vezes me chegavam à pele. Como me arrepiava. Mas era um
arrepio de prazer. Surgiu, porém, numa dessas tarde o homem. A princípio, ficou
a distância. Logo percebi de quem se tratava. Já o vira outras vezes em algum
ponto da cidade, ou na noite de sábado, não sei. Ele sentou junto a uma pedra,
uma reentrância do mar. De onde estava não dava para saber se me olhava ou não.
Talvez imerso nos próprios pensamentos, talvez esperando alguém. Eu preferia a
solidão, não queria um ser que atrapalhasse meu prazer, que interrompesse minha
comunhão com a natureza. O ser humano, no entanto, não existe sozinho. Precisa
de alguém que o observe, que se admire dele. Foi o que começou a acontece
comigo. A presença do homem despertou em mim algo que eu não sabia existir nem até
então explicar. Ao caminhar para a beira d’água, pensei se me olhava ou não, se
suspirava com a minha presença. Os dias foram passando e o homem no mesmo
lugar. Eu imaginava se vinha nos dias em que eu não comparecia. Imaginava-o espreitando
ao redor, tentando encontrar minha silhueta distante. Quando sentava sobre as
areias brancas e já o reparava sobre a mesma pedra, respirava aliviada. Meu
admirador não faltara. Mas nada permanece imutável. Sempre há o dia em que algo
se move e o mundo fica fora do lugar. Deitei. Já não conseguia alçar voo nem
planar sobre a maré, o pensamento do homem a me olhar tirava minha
concentração. Na verdade eu planava, mas era outro tipo de voo. Talvez eu deva
procurar outra praia, um lugar mais retirado, cheguei a cogitar. Mas o corpo
começava a me pesar. Ao passar as mãos sobre o ventre, sobre uma coxa, ou mesmo
a abraçar-me contra o possível vento, percebia o desejo. Acho que ele conseguia,
mesmo a certa distância, descobrir minhas ânsias. Um dia, não contava com isso,
ele conseguiu me assustar. Estava deitada, numa dessas tentativas de me
desligar do mundo. Notei uma sombra. Mas não contava que fosse ele, achava que
eram minhas pálpebras ofuscadas pela luz do fim da tarde, uma luz que às vezes
encontra uma nuvem e muda de cor antes de chegar aos nossos olhos. Estava quase
ao meu lado, o homem. Não me movi. Fiz que não o via, fiz como não
existisse o invasor. Ele ficaria horas aguardando a minha reação. Eu tentava
ignorá-lo, assim como tentei muitas vezes planar sobre as águas. Umas com
sucesso, outras sem conseguir sair do chão. Mas ele espreitava. Ao abrir os
olhos, ainda estava lá. Sua presença contrastava com o vazio das areias, o
silêncio murmuroso da maré, e o grito longínquo de uma ave. Talvez fosse embora,
talvez esperasse uma eternidade, não sei. Eu tinha paciência para saber o que
aconteceria. Mas anoiteceu. Uma noite súbita, escura, como um eclipse. Eu não
quis dar a entender que me assustava. A noite pesava sobre o meu corpo, o vento
trazia rajadas de grãos de areia, chicotes finos sobre a pele. Você devia
ter corrido de volta, meu pensamento de novo. Mas seria vergonhoso. Depois de
tanta coragem, de aguardar o porvir, correr de volta? Qualquer ser humano tem seus
momentos de fraqueza, ele entenderia, mas como você não correu, como deixou que
a noite pesasse sobre seu corpo, ele percebeu o que deveria fazer, diria uma
amiga muito tempo depois. Se conseguiste suportar o peso de uma noite súbita,
conseguirias suportar o peso do seu corpo, entendeu como um convite, tanto mais
ao perceber que tu estavas nua, ainda a voz da amiga. Mas uma incógnita persiste, eu
deveria rebater, apresentar meu argumento, um enigma, eu replicava, ele não
apenas subiu sobre o meu corpo, mas quis saber como eu fazia, entende?, o que
me atraía tanto no lugar. É porque posso voar, falei simples e rápida, porque
posso planar sobre a maré. Planas nua também de volta pra casa?, mostrou-se
curioso. Ah, caso queiras o meu corpo, és teu, mas não me faças perguntas que
não sei responder. Ele veio, então, mais uma vez. Você devia ter corrido de
volta, minha amiga de novo, não é isso o amor, não é isso o sexo. No dia
seguinte voltei ao mesmo lugar. Ele não apareceu. E também não voltou nos outros dias. Meus voos, dali em diante, teriam de ser com o corpo
pleno, com todo o peso que eu trazia e deslocava, teria de comprimir meu ventre
e carregar minhas ânsias. A noite sobre os ombros. Ainda uma aflição. Não mais
voltaria nua pra casa.
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