quarta-feira, abril 12, 2017

À noite apareço pra devolver

Entre lençóis e almofadas acordo na casa do namorado. Oito horas, silêncio, manhã que começa dourada. Pouco a pouco vou recompondo o dia anterior, a noite de amor, as horas de prazer. Espreguiço-me, fecho os olhos, tento mais um pouquinho de sono, não quero renunciar ao paraíso. Mais um quarto de hora sinto vontade de tomar café, café fresco e bem quente, começar meu dia com disposição. Sento à beira da cama, os pés a tocar o chão, nua por inteiro, como costuma acontecer quando durmo com o namorado. Enfim, levanto-me, arrasto comigo um dos lençóis, como um grande manto, começo a juntar minhas roupas. Calça, calcinha, meias, top, casaquinho. Onde a blusa? Tenho problema com blusas, elas desaparecem sem deixar o menor vestígio. Há pessoas que não sabem, nós, mulheres, podemos perder algumas peças de roupa, mas morremos de vexo caso não encontremos a blusa. É certo que gostamos de exibir os seios. Mas há momentos próprios para isso. Ficar de seios à mostra ao inesperado é duro, muito duro. Junto a roupa toda sobre a poltrona do canto do quarto. Com meus próprios movimentos, deixo escorregar o lençol. Não há problema, melhor ir à cozinha, o café espera-me. Após dez minutos, estou sentada na mesinha da própria cozinha, xícara à frente, um pedaço de queijo, uma torrada, manteiga. Mas onde enfiei a blusa?, eu a pensar com os meus botões, aliás, a pensar sem pano e sem botões. Uma lembrança me vem à memória. Devia ter dezoito ou dezenove anos, uma festa como as que aconteciam naquele tempo. Acho que quando eu era bastante jovem todos eram loucos, isso mesmo, totalmente pirados. Não sei se a ideia fora tramada por antecipação ou alguém a gerou naquele mesmo momento. As garotas podem tirar a blusa, vamos apagar as luzes, todas ganham um prêmio. Caímos na história. Mas até que foi engraçada aquela noite. Tiramos blusas, tops, sutiãs, e houve quem ficasse nua por inteiro. De mais detalhes, não lembro. No final da tal festa, lá pelas quatro e tanto da madrugada, onde a minha blusa? Eu e Aninha sem a blusa. Como volto pra casa com os peitos de fora?, o que vou dizer à minha mãe?, Aninha desesperada. Suas palavras serviam para mim. Não sei de quem fora a brincadeira, mas eu e ela não encontramos o menor vestígio de nossas blusas. Tempos depois houve outro fato semelhante, mas com um homem com quem tive um caso. Ele me roubou a calcinha, o que me deixou furiosa durante alguns dias, mas depois esqueci. Melhor sem calcinha do que sem blusa!

O apartamento do namorado, tão bonito, ajudei a decorar, a comprar alguns objetos, tudo muito mimoso, requintado, há também muitos livros. Mas cadê minha blusa? Será que vai se repetir o desfecho daquela festa perdida no tempo? O namorado sai cedo, precisa trabalhar. Não acredito que levou minha. Por que desejaria minha a blusa consigo? A blusa na sua mochila, vez ou outra ele vai ao banheiro, tranca-se, pega o tecido fino nas mãos e o cheira, meu perfume o acompanhará durante boa parte do dia. Não acredito, ele há de me preferir ao vivo, conheço-o bem, não vai querer a namorada em segunda mão na pele de um pano de algodão. Ando pela casa. Banheiro, saleta, sala, escritório. Nada. Minha blusa criou asas e voou. Cubro-me com o lençol mais uma vez, um tomara-que-caia comprido, além dos pés, arrasto a cauda pelo chão da sala, chego à janela, olho os outros apartamentos, a rua defronte, uma marquise. Lógico que não há blusas em lugar algum. Volto à cama, aproveito e me deito de novo, enrolo-me no lençol, aperto o tecido junto aos seios. Como pode uma blusa desaparecer assim tão, tão, sei lá, tão de repente? Ah, sim, minha blusa abduzida. Vou dormir de novo, pode ser que ao acordar ela tenha aparecido. Caso isso não aconteça, o namorado tem dezenas de blusas, camisas, camisetas... Resolvido. Escolho uma e vou pra casa. À noite apareço pra devolver. À noite, aperto seu corpo quente, sua pele nua, seu abraço a me cobrir. Posso, então, perder a blusa novamente.

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