segunda-feira, agosto 27, 2018

Certa hora da tarde era a mais perigosa

Certa hora da tarde era a mais perigosa. Acontecia quando ele me levava a um hotel. Desses do centro velho, onde se imagina que tipo de pessoa hospeda-se ali aquela hora. Uma ou duas vezes ao mês ele me convidava. Escolhia um apartamento de andar elevado. Não sei dizer por que ele gostava de alturas. A cama macia, apesar do lugar um tanto sórdido, os lençóis brancos cheiravam bem. Ao entrar eu ia ao banheiro, me levava e voltava enrolada na toalha, uma toalha de tecido grosso. Ele sorria, meu namorado de horas fugidias e de encontros furtados. Não sabia, como hoje ainda não sei, algo mais sobre ele. Deitava e esperava que viesse. Ele me tirava a toalha, me libertava para o amor. Nos envolvíamos em abraços demorados, desejávamos a quentura de nossos corpos. Por que a hora da tarde era a mais perigosa? Ah, talvez não seja difícil imaginar. A quentura era excessiva, principalmente dentro de mim, meu baixo ventre. Chegava a perder o controle. Dizia a ele coisas absurdas, histórias sem pé nem cabeça. Nessas horas predominava o desvario. Ele podia fazer de mim o que quisesse. Quaisquer de suas ações se transformavam na antecâmara do gozo. E eu gostava que o gozo demorasse, que viesse vagaroso, pairasse no quarto, tomasse todo o meu corpo. Pedia que me sussurrasse palavras obscenas, ações exageradas. Meu corpo numa inteireza de mulher plena de desejo. Não pensava se sairia ferida, se haveria dor ou como faria para voltar para casa. Aliás, quando se tem grande interesse por algo, não se pensa no depois. Se desejamos chegar a uma cidade, se a amamos e ela nos dá prazer, alegria de viver, não pensamos na volta. Basta a ida, é só o que desejamos. Para voltar já estamos aqui, não fará diferença. O amor é caminho apenas de ida. Não se pensa no momento seguinte. Na verdade, não há momento seguinte quando estou com meu homem numa cama de hotel. O que existe é o eterno presente. O homem sugava minha alma. Verdade. Eu pedia que continuasse. Me devore, diga aquelas coisas no meu ouvido, não pare, desejo mais e mais. Ele não esmorecia. Apesar da tarde se ir agravando, de ameaçar um começo de noite, ele continuava. Será que todas as janelas, cobertas por cortinas cinzentas, têm um casal por trás a desafiar as leis da vida e da morte? Eu sobrevivia. O gozo me levava a pontes cada vez mais compridas, pontes que ligam terras ainda mais distantes. Ele cuidava para não me ferir, mas era eu a culpada. Por que não nos amávamos como duas pessoas normais? Há duas pessoas normais sobretudo quando fazem amor? O amor é violento. Ainda que me rasgue as roupas, ainda que me arranhe, me dilacere a pele. Ou melhor, não há mais o tempo. Às vezes penso num mundo sem o tempo. É possível, sim, esse mundo. Um mundo sem o tempo, dois corpos a se tornarem um, tudo transformado em um. As janelas dos prédios de frente. Uma teoria do tempo não permitiria o fim do gozo. Seria o mundo dos mortos, ou dos eternos vivos, ou do eterno gozo. Todos os seres ali, das mais diversas épocas, vivendo seu momento único, sem princípio nem fim. O apartamento, minha volta ao mundo físico, minha volta ao tempo. Dezessete horas. Meu corpo a ocupar o espaço possível. Eu nua sobre a cama, meu homem onde? Certa hora da tarde é a mais perigosa. O perigo, no entanto, passa? Estaria num processo de latência, pronto a ser revivido talvez em outras tardes, outras tentativas, capaz mesmo de ser despertado a qualquer momento. Ainda não consigo o gozo perene. Levanto, sorrio ao meu homem. Eu, que pensei estar sozinha, sorrio e o beijo no rosto, beijo delicado, restinho de volúpia. Ando pelo quarto, à janela descubro uma fresta de vida lá fora. O tempo. Não se há nuvens ou se ainda o sol. O tempo do relógio; pessoas andando sobre as calçadas; uma mulher espera um táxi. Dentro do quarto, volto molhada, melada, à vida banal, agora de costas para a cidade. Onde minhas roupas?

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